Um RPG de "apontar e clicar", de mundo aberto, exploração livre e totalmente indie vindo da Estônia bombardeou o mundinho gamer no final do ano de 2019. "Disco Elysium", que até então não existia para muita gente, ganhou prêmios importantes no The Game Awards e passou a ser louvado como um dos jogos mais inovadores dos últimos anos.
Mas o que ele tem de tão especial assim?
Um degenerado lutando contra as vozes da própria cabeça
A amnésia é uma muleta, um recurso de linguagem bastante saturado em roteiros, seja nos filmes ou nos games. E também é o ponto de partida de "Disco Elysium".
Você não tem controle sobre o passado do policial protagonista, mas age ativamente daquela manhã em diante. Acorda de cuecas, cara no chão, gravata no ventilador. De onde veio e o que está fazendo ali? É o que vamos descobrir — se essas vozes na sua cabeça deixarem.
São vozes dentro da mente do policial lutando pelo holofote dos sentidos expositórios. Elas surgem como caixas de texto, como se fossem um típico personagem. Mas quem está falando? Devo ouvir ou pular fora?
Cada voz na cabeça do policial seria algo como a personalidade de um diferente mestre neste RPG da vida real? É uma forma de se pensar.
Substâncias ilícitas podem entrar na equação, afetando o resultado das conversas com efeitos reais, não só pontuais. É como se Arthur Conan Doyle desafiasse Shakespeare para uma disputa de braço de ferro, com tapa de luva de pelica e tudo.
Não subestime as palavras
Em "Disco Elysium" você vai ser soterrado por textos —até o momento, sem tradução para o português brasileiro. Mas não é um texto qualquer, cozinhado em três minutos para preencher missões.
O texto tem peso, as respostas transitam entre o mais puro fascismo grotesco e o ultra-liberalismo desmedido num mundo de ficção versus realidade. E nem pense em sair pulando diálogos, ou então é melhor nem começar o jogo. O impacto de uma caixa de texto vertical, e não horizontal, carrega valores de Rembrandt, Ilya Repin e, em especial, Jenny Saville. (Quer mais recomendações? Confira dicas no Steam.
Como num RPG tradicional, você ganha XP, distribui pontos e conceitos básicos de psiquê e força física, por exemplo. Você é testado, rolando "dados virtuais" que aparecem na tela, como se rolassem em uma mesa. Falhas e acertos dependem desses testes, mas o sistema de jogo não impõe barreiras.
Os NPCs são profundos e marcantes, assim como criptozoologia
Com exceção de um ou outro morador de rua bêbado demais para articular mais do que um par de linhas de raciocínio, todo e qualquer NPC em Disco Elysium é complexo o suficiente para ganhar seu próprio espaço no caderninho de anotações. E não só do excepcionalmente resoluto Kim Katsuragi, seu parceiro policial.
Criar qualquer tipo de vínculo com o dono da banquinha de jornais pode dizer muito mais sobre você mesmo. O policial, ora ingênuo, ora filosófico, pode derrubar paredes metalinguísticas irreversíveis. Afinal de contas, o cadáver não vai desfazer o nó da forca sozinho, as crianças não pretendem deixar de lado suas compulsões pelo mórbido e a senhorinha cadeirante, cujo marido é estudioso da arte da criptozoologia, não vai esquecer tão cedo (por mais que ela diga o contrário) do encontrão atrapalhado, com direito a câmera lenta e dois dedos do meio direcionados ao barman.
Não há cães para acariciar em Disco Elysium, mas você pode despejar toda essa ternura na caixa de correios (evidentemente que chutá-la também é opção).
O seu Forgotten Realms particular
"Planescape: Torment" é considerado por estudiosos da era de ouro dos RPGs de computador o manifesto do refinamento em texto, narrativa, roteiro, e do que esse tipo de mídia foi e seria capaz de criar.
Disco Elysium é condensado e formulado com os mesmíssimos fundamentos, mas a mensagem foge do medieval fantástico —o momento de karaokê bêbado não me deixa mentir.
Saúde física e mental precisam andar em dia, e aí entra o uso de substâncias psicotrópicas, ilícitas ou não. Para ganhar dinheiro, você precisa coletar garrafas para reciclá-las. Ao menos, é uma tentativa de fazer o mundo melhor.
Atitude de punk-rock estoniano: anárquico, caótico
Se David Lynch tirou inspiração para finalizar seu "Eraserhead" de uma citação bíblica (e jamais saberemos exatamente qual), as mentes pulsantes por trás de Disco Elysium consumiram punk-rock de sua terra-natal o suficiente para que o vírus do inconformismo anarquista fosse companhia constante, assim como os livros de Dungeons & Dragons ou o movimento Avant Garde russo.
Disco Elysium é um jogo nascido de cenário de RPG de mesa que virou novela para, então, ser concebido no formato de videogame - ou seja, estamos falando de criadores mais acostumados ao analógico que ao digital.
ZA/UM, o estúdio responsável pelo jogo, nasceu tão de garagem quanto as bandas ouvidas durante a adolescência tumultuada, dentro e fora de casa. E talvez fosse isso que o mercado de games estivesse precisando com tanta urgência para trazer um ar de novidade.
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