Final Fantasy e Céline Dion: os bastidores da Gamers Book que marcou época
Final Fantasy VII Remake está chegando em 10 de abril, o que traz memórias nostálgicas para quem jogou o game original nos anos 1990. Falar do RPG nessa época é também lembrar da revista que ajudou a popularizar a série da Square Enix aqui no Brasil: a Gamers Book.
Um calhamaço de 100 páginas, quase todas dedicadas ao game da Square, a revista marcou jogadores por se tornar um guia não-oficial definitivo do jogo. O START conversou com os responsáveis pela Gamers Book, que contaram os bastidores da época de ouro das revistas de videogame. Tudo ao som de Céline Dion.
Os responsáveis
Fabio Santana, o Fabão
Era chefe de redação e editor das edições regulares da Gamers, trazendo a paixão por RPGs japoneses para as páginas da revista. Fabão também coordenava as outras publicações e derivados que eram produzidos da parceria entre a locadora Progames (dona da Gamers) e a editora Escala. Entre elas, claro, a Gamers Book. Fabão passou por diversas revistas de games, como EGM Brasil e Superdicas PlayStation, e atualmente trabalha como relações públicas em uma empresa de games.
Eric Araki
Creditado como diretor geral no expediente da Gamers Book. Araki ficou encarregado de montar todo o passo-a-passo do game e escreveu, diagramou e revisou boa parte da revista. Antes da publicação, foi o responsável pela análise da versão americana de Final Fantasy VII publicada na Gamers Nº 23. Atualmente, é chefe de produtos na BBL, empresa que cria conteúdos para games e eSports.
A criação da Gamers Book
Muito antes de a edição especial da Gamers Book chegar às bancas, a revista regular da Gamers realizou uma cobertura intensa e constante de Final Fantasy VII, sendo a primeira publicação brasileira a dar capa para o RPG Japonês.
Hoje em dia, a série é uma das mais populares do mundo, mas na época, dar tanta atenção assim ao jogo não era uma abordagem comum em revistas, que focavam mais em games de luta e ação.
Fabão diz que o empenho em falar tanto de Final Fantasy vinha do próprio gosto pessoal de quem trabalhava na Gamers, que era mais ou menos como funcionava a revista: escrever sobre aquilo de que gostavam, sem tanta preocupação com a popularidade dos games.
Queríamos mostrar como aquele gênero entregava histórias fascinantes com personagens marcantes, e desmistificar um pouco o conceito de que eram jogos chatos e complicados
Fabio Santana, ex-editor da revista Gamers
A cobertura de Final Fantasy VII começou pouco depois do lançamento japonês, no início de 1997, com um review de cinco páginas na Gamers Nº 17 e mais uma série de "detonados" divididos nas cinco edições seguintes. Tudo antes do lançamento americano do jogo.
Fabão foi o responsável por esse conteúdo na época. Ele tinha um conhecimento básico da língua japonesa suficiente para avançar no RPG, e acesso (escasso) à internet para vasculhar em sites como o GameFAQs, que compilava guias feitos por outros jogadores.
De certa forma, as revistas de games eram o YouTube daquele tempo
Fabio Santana, ex-editor da Gamers
Mesmo com uma cobertura tão ampla, eles sentiram que ainda havia conteúdo para ser falado de Final Fantasy VII, principalmente do enredo. A ideia de uma revista que se aproximasse de um livro e fosse um guia definitivo do jogo foi aceita pela editora, a Escala, e o projeto da Gamers Book teve início.
Fabão recrutou um ávido frequentador da locadora Progames (responsável pela Gamers) do Alto da Lapa, em São Paulo: Eric Araki. Na época um adolescente, ele era um ferrenho fã de Final Fantasy que tinha comprado a versão japonesa sem entender uma palavra de japonês ou mesmo ter um PlayStation para jogar, o que foi resolvido ao emprestar o console de um amigo.
Araki diz que a inspiração para Gamers Book veio dos Ultimania, os guias oficiais de Final Fantasy que só eram lançados no Japão. "A grande sacada dos Ultimanias era sua apresentação. Era um livro, repleto de tabelas, de detalhes, de informações relacionadas ao jogo e, principalmente, de artes. Fora todo o foco no enredo".
Eis a razão de as nossas revistas serem paredes de textos, com imagens pequenas e tipografia ridiculamente pequena. Qualquer editor de arte que olhasse pra qualquer edição da Gamers teria um treco
Eric Araki, ex-editor da Gamers Book
Parte do conteúdo da Gamers Book foi reaproveitada do que já tinha sido publicado na Gamers, como as listas com equipamentos, Materias e limit breaks, mas o resto foi todo refeito e ampliado para a edição especial.
Uma das característcas da Gamers era ter muito texto, vindo da filosofia de que cortar informação, por menor que fosse, era um pecado. Algo que se seguiu com a Gamers Book, mesmo com páginas de sobra. "Eis a razão das nossas revistas serem paredes de textos, com imagens pequenas e tipografia ridiculamente pequena", comenta Araki. "Qualquer editor de arte que olhasse pra qualquer edição da Gamers teria um treco".
Programada para acompanhar o lançamento americano de Final Fantasy VII, ainda em 1997, a Gamers Book acabou atrasando nove meses, dado o volume de trabalho e por ser algo que eles nunca tinham feito antes. Muitas etapas foram sendo aprendidas na prática, conforme a revista ganhava forma. Por fim, a edição chegou às bancas em meados de 1998. E fez história.
Olhando para trás, foi parte preciosismo, parte vontade de demonstrar a paixão pelo jogo fazendo algo único, parte ambição de mostrar - para mim mesmo e para todo mundo - o que podia sair daquele trabalho
Eric Araki, ex-editor da Gamers Book
Histórias de bastidores
Nos nove meses em que ficou em produção, a Gamers Book gerou diversas histórias que são também um retrato dos bastidores da "época de ouro" das revistas de videogame no Brasil.
A capa com Spoilers
Uma das características mais marcantes da Gamers Book é a capa, uma ilustração feita pelo artista Hector Gomez, que era famoso por assinar algumas das capas da revista SuperGamePower, e que dava o maior spoiler de Final Fantasy VII. Por quê?
Fabão: Queríamos uma ilustração original de capa, e tinha que ser um momento emblemático da história, que comunicasse o peso emocional daquele enredo, então esse momento decisivo acabou sendo a escolha óbvia. Acho melhor que colocar o herói segurando uma espada, como foi o padrão nas revistas da época, ainda preocupadas com vendas e apegadas às temáticas populares dos jogos de ação.
Eric Araki: Na época, nem ocorreu que este poderia ser um Spoiler. Veja bem, a Book levou nove meses para ficar pronta e foi feita em cima da versão international do jogo, que por si só já tinha saído quase em 98. Se formos transpor para os momentos atuais, seria o mesmo que um blog sair, hoje, com a chamada "Arya Stark [spoiler do final da série Game of Thrones]. O final de GOT já não é mais considerado Spoiler, certo?
Choro na madrugada
Os meses de trabalho na Gamers Book foram de muitas noites mal dormidas e consumo exagerado de Fanta Uva, mas também de bastante choro.
Eric Araki: É engraçado como todo o contexto de como ocorre a morte da Aeris ainda me afeta --e, felizmente, não estou sozinho nisso. A cena, a música, a despedida, a frustração do Cloud. Na época, lembro de um momento em que chorei loucamente, como uma criança, de soluçar alto e em desespero --mesmo tendo repassado aquela cena algumas dezenas de vezes.
Era tarde da noite, o Rômulo (Mathei, outro redator da Gamers na época) estava testando outro jogo na sala do lado, e apareceu ultrapreocupado achando que tinha acontecido algo gravíssimo. Ele levou alguns segundos pra processar o que estava acontecendo. Me abraçou e disse "vai ficar tudo bem, japonês. Eu entendo".
Céline Dion
Em 1997, além do lançamento de Final Fantasy VII, o mundo também viu a chegada de outro fenômeno cultural: o filme Titanic e, por consequência, o estouro na carreira da cantora Céline Dion interpretando a música tema do longa-metragem: My Heart Will Go On.
Essa poderia ser uma das explicações para algumas páginas da Gamers Book terem letras de algumas músicas da artista, além de trechos de canções de Blind Guardian, Guns 'n Roses e Alanis Morrissette.
A união entre games, cinema e músia, porém, tem outros motivos:
Eric Araki: Sabe, nem eu consigo explicar como alguém tão jovem conseguia ter um gosto musical tão medonho! Prefiro pensar que era outra pessoa, em outra vida, que achava "cool" colocar esse tipo de coisa e revelar para toda a fanbase de Final Fantasy seu gosto musical execrável.
Fabão: Adorávamos esconder easter eggs nas páginas da Gamers regular e muitas vezes fazíamos referências musicais nos textos e legendas, principalmente a Racionais MC's. Essas letras na Gamers Book são uma extensão disso, e digamos que o Eric estava apaixonado na época, então isso influenciou bastante na escolha das faixas, que também se relacionavam com os trechos da história do jogo.
Adorávamos esconder easter eggs nas páginas da Gamers regular e muitas vezes fazíamos referências musicais nos textos e legendas, principalmente a Racionais MC's
Fabio Santana, ex-editor da Gamers Book
Acompanhe o restante da entrevista sobre a Gamers Book (o texto foi alterado para melhor entendimento)
START: O trabalho na Gamers Book serve não só como dicas, mas também de tradução do jogo para português, explicando sistemas e o enredo. Quais foram as dificuldades que vocês enfrentaram na época?
Eric Araki: Como é um jogo extenso, com muitas idas e vindas e reviravoltas —para a época; depois de FF13 qualquer um ri da suposta complexidade de FF7—, o processo de criação foi quase como escrever um resumo de um livro: capítulo a capítulo. A cada trecho jogado (com um caderno a tira-colo para marcar o que não poderia faltar), uma nova etapa do guia era cumprida. E assim foi, de Midgar para o mundo, para as asas da Highwind, para os Weapons despertos, para a grande cratera.
START: Como foi a recepção dos leitores na época da Gamers Book? Foi uma aposta que eu certo?
Fabão: Não tínhamos acesso a números de vendas, mas, a julgar pelo número de cartas que chegavam à redação, e também pelo fato de a Editora Escala ter mantido a publicação por tanto tempo (foram sete edições bimestrais na época da Progames e mais uma posteriormente pelo estúdio KGB), é possível considerar que a Gamers Book foi um sucesso. Também é surpreendente o número de pessoas que hoje comenta que conheceu a série Final Fantasy pela revista Gamers, e que terminaram Final Fantasy VII e se apaixonaram pela história e pelos personagens com a Gamers Book.
START: Hoje, mais de vinte anos depois, com a importância que FF VII ganhou e a revista sendo bastante lembrada ainda, qual o seu sentimento ao olhar para trás e pensar na Gamers Book?
Fabão: O sentimento é de muito carinho, gratidão e nostalgia. Foi um tempo muito querido em que escrevíamos sobre as coisas que amávamos, e mesmo que trabalhássemos num ritmo não muito saudável, virando noites com frequência, adorávamos tudo aquilo e nos divertíamos tirando altos contras em jogos de luta, jogando partidas de RPG de mesa, descobrindo o prazer de disputar jogos de tiro em primeira pessoa nos computadores da redação em LAN, comendo fast food e escutando música para inspirar nosso trabalho, e saíamos muito juntos e frequentávamos as casas uns dos outros. Construímos memórias duradouras que nos unem até hoje, e acho que muitos dos leitores também se sentem assim com a Gamers e a Gamers Book. Mesmo que não assinássemos as matérias na época, as pessoas se identificavam com os textos, e até hoje é um tanto surreal e muito gratificante quando alguém vem compartilhar sua história pessoal e o papel que a revista teve em sua vida.
Eric Araki: Sinto orgulho, claro. A Book me remete a uma época em que tudo era mais simples, em que podíamos ser apenas fãs inveterados e escrever sobre o que gostávamos, sem precisar pensar no que a concorrência faz, se vai vender ou se vamos passar fome fazendo isso. Era uma época de jovens rebeldes brincando de jornalismo de games e quebrando todas as regras e etiquetas. Uma época em que todos nós daquela redação éramos mais unidos, tínhamos tempo uns para os outros e que podíamos dedicar nosso tempo em fazer algo que nos deixasse orgulhosos.
Foi um tempo muito querido em que escrevíamos sobre as coisas que amávamos, e mesmo que trabalhássemos num ritmo não muito saudável, virando noites com frequência, adorávamos tudo aquilo e nos divertíamos tirando altos contras em jogos de luta, jogando partidas de RPG de mesa, descobrindo o prazer de disputar jogos de tiro em primeira pessoa nos computadores da redação em LAN, comendo fast food e escutando música para inspirar nosso trabalho, e saíamos muito juntos e frequentávamos as casas uns dos outros
Fabio Santana, ex-editor da Gamers Book
START: Com o Remake de FF VII, vocês topariam fazer uma Gamers Book do novo jogo?
Eric Araki: Faria uma nova Gamers Book? Não sei. Me passou algumas vezes pela cabeça. Mas estou velho e tenho certeza de que, nos tempos em que vivemos, temos muito mais gente mais capaz —e dedicada!— que eu e que, definitivamente, faria tudo isso com o mesmo carinho e amor que tive quando montei a primeira edição. E um jogo como FF7 não merece menos que isso.
Fabão: Estou há quase 10 anos afastado das redações, mas nunca deixei de trabalhar com games e continuo apaixonado por RPGs japoneses, e estou curioso para jogar Final Fantasy VII Remake. Se as circunstâncias permitissem, teria prazer em me envolver num remake da Gamers Book também. O problema é que precisariam ser tantos guias quanto tiverem episódios do jogo até chegar à conclusão da história de Final Fantasy VII, então precisaríamos de muito mais que 100 páginas!
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