Em tempos de quarentena e distanciamento social provocado pela pandemia do Coronavírus, o mundo parece estar vivendo em uma cidade do interior do Brasil, como Guaíba/RS, minha terra natal.
A ilha deserta dada a cada jogador em Animal Crossing: New Horizons me lembra um pouco ela. Em um mundo encurralado por um vírus, sem capacidade de planejar até em curto prazo, o game exclusivo de Nintendo Switch promove uma bem-vinda sensação de controle, uma rotina com nível aceitável de serendipidade. Uma vida que lembra a pré-covid-19.
Feito para a pandemia
O novo Animal Crossing havia sido anunciado com previsão de lançamento em 2019. Postergado para março de 2020, chegou no momento mais adequado possível, com o mundo clamando por paz de espírito diante de condições de saúde severas.
A proposta é cuidar de uma ilha. Sem pressão. Há uma liberdade grande para escolher as tarefas (eu, por exemplo, foquei no museu da coruja Blathers). A falha mais grave resulta em perder um peixe ou inseto, sem grandes consequências. Não há tensão de nenhuma natureza, sexual, econômica, segurança ou sanitária.
Uma utopia, diriam alguns.
Mais ou menos. A ilha tem cara de colonização. O agiota Tom Nook encarna o capitalismo, com sua sanha desenvolvimentista e crédito farto para transformar a ilha numa metrópole.
Porém, isso talvez seja pensar além da conta. Não há prazo de pagamento. Nook serve de norteador de objetivos, para quem não encontrou o seu (sério que ajudar o museu não te motiva?).
O tempo certo
A filosofia lembra jogo de celular, com incentivos para acessar diariamente em pequenas doses. Como é marca da franquia, o tempo diegético (que corre dentro da narrativa) é o mesmo do mundo real. Se o relógio marca 16h20 aqui, é o mesmo horário no game; noite aqui, noite lá. Para uma árvore crescer ou uma construção ser concluída em ACNH, é preciso esperar um ou mais dias. Quando a tenda central entra em reforma, uma série de serviços ficam indisponíveis por um dia inteiro.
Na maioria dos outros jogos, Dying Light por exemplo, bastaria achar uma cama, dar um comando e um dia passaria dentro da narrativa em um piscar de olhos. ACNH não só pede, ele impõe calma e paciência.
Há quem engane o sistema alterando o relógio do console. É meio incompreensível a atitude. Não dá para zerar Animal Crossing, a recompensa é o caminho. Talvez a culpa seja da própria mídia. A maioria dos outros jogos doutrinam o jogador a adotar uma atitude pragmática.
Eu preferi aceitar a proposta. O começo do jogo é vagaroso. A falta de recursos limita o que fazer, o tutorial se arrasta por dias. Depois o ritmo é ditado de acordo com os interesses do protagonista.
O calendário também está sincronizado. Isso significa que para os habitantes do hemisfério sul, Animal Crossing NH está no outono, enquanto os jogadores do hemisfério norte estão na primavera, lidando com as devidas mudanças de fauna e flora.
Um acerto: o jogo não tem microtransações com dinheiro real, por mais que o contexto encaixe como uma luva para esta forma de gerar receita para a empresa. Por sorte, Animal Crossing é uma franquia da Nintendo e não da Electronic Arts.
Em meio ao encantamento, baixei Animal Crossing: Pocket Camp, o gratuito game de celular da franquia. É free to play, mas a grana causa rachaduras no clima idílico. Quando o jogador se depara com um inconveniente sinal de R$, daqueles que aparecerão na fatura do cartão de crédito, fica evidente que não dá para baixar a guarda. Não que isso seja injusto. A Nintendo não é uma entidade assistencial, precisa faturar de algum jeito.
Comunidade do bem
Joguei Animal Crossing: New Horizon no meio do furacão do hype e como é um jogo de comunidade, acompanhar as descobertas do círculo de amigos é parte da graça. Com a quarentena, visitar a ilha dos amigos é uma experiência poderosa de videogame.
O fator social nunca tinha sido o motivador de jogo nenhum para mim. Quando visitei a primeira ilha de um amigo, Beatrix, foi emocionante. Por solicitação minha, Beatrix e um amigo dela que a visitava me deram ferro suficiente para concluir a loja da minha ilha. De boa, sem pedir nada em troca, no clima do jogo.
Toda a comunidade de ACNH é assim? Não sei, improvável, mas o clima do jogo parece incentivar a solidariedade.
A visita e motivou a baixar o app de celular Nintendo Switch Online. Trocar mensagem em Animal Crossing é um tormento pelo limite exíguo de caracteres por mensagem, menor que um torpedo de celular das antigas. E escrever no Switch? Bem, nem vou falar muito disso em homenagem ao clima distendido do jogo. Apenas registro que é ruim.
O isolamento social da pandemia pede distanciamento físico das pessoas, mas não impede de vislumbrar como os amigos se expressam por meio do jogo.
A Nintendo ainda sofre em promover uma boa experiência online, é difícil de ir visitar a ilha de um amigo. É preciso ir ao aeroporto, passar por diversos menus e caixa de diálogo até finalmente entender que não há nenhuma ilha disponível. Oremos para a Nintendo arrumar isso nas próximas atualizações do jogo. Quero voltar à ilha Quebrada, do amigo Hoba, com espaço para festas da pesada:
O isolamento social da pandemia pede distanciamento físico das pessoas, mas não impede de vislumbrar como os amigos se expressam por meio do jogo. Junto de Plague Inc., Animal Crossing: New Horizon é o jogo símbolo dos tempos de pandemia. Se a OMS reconhece o videogame como um bom passatempo para o isolamento social, ACNH merecia uma medalha de honra ao mérito.
Fazendinha feliz
Animal Crossing: New Horizon é o primeiro jogo de fazendinha / life sim a me ganhar. Tentei outros. O mais recente foi no ano passado, quando experimentei o fenômeno indie Stardew Valley. Por mais admirável que seja a história da criação do jogo (é meu capítulo favorito do livro Sangue, Suor e Pixels, de Jason Schreier), achei muito bobo. A repetição das tarefas e a necessidade de fazer o personagem atravessar o mapa constantemente me cansou.
Queimei minha língua. ACNH tem esses mesmos defeitos.
O diferencial é o polimento da Nintendo, tão tradicional e esperado que chega a ser um pleonasmo.
ACNH é um triple A, embora não no senso comum de ver os recursos de produção indo para realizações gráficas impressionantes, set pieces épicas. ACNH direciona sua produção ao cuidado.
Conforme é tradição no Japão, a Nintendo consegue equilibrar progresso com tradição. Não joguei os jogos anteriores da série, mas pesquisando vi como ela surgiu na era do low poly, quando os gráficos tinham que se virar com poucos polígonos. Do primeiro jogo da franquia ao mais recente, são perceptíveis os passos à frente, sem esquecer do passado, do já construído.
A coesão de ACNH é sólida. Há harmonia entre os elementos visuais (como textura, luz, direção de arte), auditivos (efeitos sonoros, música, blips de representação de falas) e jogabilidade.
Esses acertos são oriundos do acúmulo de experiência. ACNH pode ser aproveitado por quem está chegando agora, como eu, mas há um passado ali.
Não se deixe enganar pela fofura. Em seu ritmo zen, ACNH desabrocha em um poderoso editor de decoração, urbanismo e customização de objetos. As possibilidades são amplas.
Casal que joga (ou tenta)
Tentei envolver minha esposa, Cecilia, na jogatina. Ela gosta de Tetris 99. Jogos de ação, como Nioh, a deixam nervosa. Já o indie Night in the woods ela encarou, mas sem muito entusiasmo. Seria ACNH um jogo para ela?
Em geral, não perco tempo com customização de personagens. Bacana, sr. Mass Effect, ferramentas lindas, mas vou com o padrão mesmo. Desbloqueei um monte de roupinha em Doom Eternal, mas fui até o final do jogo com o uniforme do início do jogo.
Deixei Cecilia a cargo da criação de seu próprio avatar, a personagem Ceci. Colocamos umas simpáticas pinturas no seu rosto. Batizamos nossa ilha de Tatuí, rua em que moramos.
Costumamos fazer uma boa dupla no trabalho, estimei que a química se repetiria no game. Ela tem um acurado senso estético, eu poderia extrair recursos mais rapidamente. Não que seja necessário muito dedo, mas consigo domar mais facilmente as imprecisões do controle — jogue a primeira argila quem nunca cavou um buraco sem querer ao lado de uma pedra.
Ela, no entanto, não comprou a proposta. Ficou incomodada com o excesso de feedback positivo, se sentiu manipulada. E a única vez que pegou o joystick sozinha, em menos de um minuto foi picada por um enxame que deixaram o rosto de Ceci cheio de hematomas.
Além disso, o editor do START, Renato Bueno, me passou o prazo de entrega deste texto. Assim como Blathers lida com insetos com um pouco de pânico, jornalistas lidam com deadline. Normal.
Quer saber? Fui reto pagar as dívidas, ir o mais longe possível no desenvolvimento da ilha, tentar extrair o máximo do jogo no pouco tempo que me restava antes de apertar o botão enviar do e-mail com este texto. Abracei o grind, iria pagar minha dívida com Tom Nook em tempo recorde, executando as tarefas mecânicas que renderiam mais bells, a moeda do jogo.
A fineza do game deixou de fazer efeito, os diálogos perderam a graça. A magia havia terminado. Obrigado, Animal Crossing: New Horizon, foi uma linda jornada.
Depois de uma madrugada de muito trabalho na ilha de Tatuí, batuquei no teclado os parágrafos deste texto. Liguei o Switch, faria uma despedida. Ao fazer seus tradicionais anúncios do dia, sempre declamados na primeira sessão de jogatina do dia, Tom Nook introduziu Isabelle, a mais conhecida personagem de Animal Crossing. Uma das mais simpáticas personagens da história dos videogames iria agora ajudar nos afazeres de Tatuí.
A tenda de serviços centrais se transformou em um prédio, com uma série de novas funções e planos audaciosos, incluindo um show do músico K.K. Slider (é um cachorro que canta logo no início do game, um dos destaques do elenco de Animal Crossing). Nem só de museu vivemos, música também é um alimento essencial para a alma. Ok, vamos nessa, a ficar na ilha, a ficar em casa. Afinal, temos uma pandemia a ser superada.
SIGA O START NAS REDES SOCIAIS
Twitter: https://twitter.com/start_uol
Instagram: https://www.instagram.com/start_uol/
Facebook: https://www.facebook.com/startuol/
TikTok: http://vm.tiktok.com/Rqwe2g/
Twitch: https://www.twitch.tv/start_uol
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.