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Mais que uma gripezinha: relembre a praga que assolou World of Warcraft

A raide Zul"Gurub, que causou a pandemia em 2005, está de volta em WoW Classic - Reprodução
A raide Zul'Gurub, que causou a pandemia em 2005, está de volta em WoW Classic Imagem: Reprodução

João Varella

Colaboração para o START

28/04/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Incidente no RPG online em 2005 causou "pandemia virtual" que dizimou exércitos de jogadores
  • Personagens ficavam contaminados e espalhavam a doença ao ressuscitar
  • O comportamento da praga gerou pesquisas científicas que podem ajudar no combate à Covid-19

Abrir World of Warcraft era uma tarefa penosa para o analista de sistemas Luis Alves Monteiro, de Fortaleza (CE). Com internet discada e um computador com memória RAM de 2 GB, a máquina que ele tinha em 2005 sofria sempre que seu personagem ia para Orgrimmar, o coração da civilização Orc no jogo. Um dia, no final de setembro, Monteiro notou que a imponente fortaleza cheia de espinhos carregou rápido.

Antes que pudesse comemorar o feito de seu rudimentar hardware, estarreceu-se ao entender a razão. Viu pilhas de corpos pelas ruas. "Na casa de leilão o chão estava branco de tanto esqueleto no chão", conta o jogador, então com um bruxo de nível 58. Imaginou um brutal ataque da Aliança, a união das raças inimigas dos Orcs. O inimigo, no entanto, era uma pandemia, parecida em alguns aspectos com a que o mundo enfrenta hoje. O comportamento da praga e dos jogadores gerou pesquisas científicas, conhecimento que pode ajudar no combate à Covid-19.

O Sangue Corrompido

Luis WoW - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"Na casa de leilão o chão estava branco de tanto esqueleto no chão", lembra Luis Alves
Imagem: Arquivo pessoal
A doença que balançou o WoW, então um jogo com 4 milhões de usuários, foi um acidente do patch 1.7. A atualização trouxe a raide Zul'gurub, missão desenhada para 20 jogadores com nível 60, o máximo da época. O décimo e último chefe era Hakkar the Soulflayer, uma espécie de dragão-serpente venerado pelos trolls. Ele disparava uma magia chamada Corrupted Blood, que causava cerca de mil pontos de dano imediatamente e outros 3.000 divididos em dez dolorosas prestações durante 10 segundos. Durante esse tempo, um jogador próximo a um alvo atingido também pegava a doença. Era uma pancada forte considerando os aproximados 4.000 pontos de HP máximo dos personagens.

Era para ser um efeito restrito à área final da aventura, a conclusão apoteótica da aventura. Mas a Blizzard, a desenvolvedora do MMORPG, não levou em consideração os ajudantes.

Classes como caçador controlam bichos que também pegavam o Corrupted Blood. Para evitar que os aliados morressem, os jogadores dispensavam os animais, enviando-os para um limbo que pausava o cronômetro da doença. Quando voltavam ao jogo, o Corrupted Blood continuava a causar seus efeitos de onde tinha parado. Ao retornar a cidades como Orgrimmar, os animais exerciam o papel de vetores, passando a doença adiante, inclusive a jogadores de nível baixo ou despreparados.

Mateus Abreu WoW - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"Lembro do chat enlouquecido tentando entender o que estava acontecendo", diz o ex-jogador Mateus Abreu
Imagem: Arquivo pessoal

"Lembro do chat enlouquecido tentando entender o que estava acontecendo", diz o ex-jogador Mateus Abreu, de Caxias do Sul, RS. Para evitar pegar a doença, ele migrou seu personagem ShionApolo para áreas menos populosas, evitando aglomeração. "Ficamos alguns dias sem acessar as cidades grandes, o problema demorou para ser resolvido", afirma Abreu. Era uma forma de evitar um novo tipo de inimigo: jogadores que propositadamente transmitiam a doença, que se provou muito mais que uma gripezinha.

Pesquisando a praga virtual

Epidemiologistas se baseiam em complexos modelos matemáticos para prever como as sociedades reagiriam a uma situação de pandemia. Fazem isso pois não é viável fazer experiências práticas, não dá para espalhar vírus em cidades para fins de estudo. O incidente do Corrupted Blood gerou reações tão similares à vida real que chamou a atenção dos cientistas. Os pesquisadores americanos Eric Lofgren e Nina Fefferman publicaram em 2007 na respeitada revista científica Lancet um estudo do caso.

"A capacidade de muitos personagens de se transportar instantaneamente de um local para outro foi o primeiro fator no jogo que inesperadamente preparou o terreno para a praga", escreveram os pesquisadores. O teletransporte (ainda) não foi inventado no mundo real, mas longas viagens foram causadores de diversos contágios globais na história. É o caso do novo coronavírus, originado na China, mas espalhado por todos os cantos do planeta terrestre em semanas.

WoW Esqueletos - Reprodução/PC Gamer - Reprodução/PC Gamer
Um mar de esqueletos tomou conta de World of Warcraft
Imagem: Reprodução/PC Gamer

O R0 do Corrupted Blood foi estimado em 10 por Lofgren e Fefferman. O Imperial College London calculou em janeiro que a Covid-19 tinha R0 de 2,6. O número precisa ser menor que 1 para a epidemia se encaminhar ao fim

Durante a pandemia virtual foi possível observar o comportamento altruísta de alguns médicos voluntários. "Auxiliou para a continuação da epidemia um ciclo envolvendo a ressurreição de personagens mais fracos por personagens com habilidade de cura, fazendo a população suscetível [ao vírus] ser continuamente reabastecida", escreveram os pesquisadores. Por mais bem intencionados que fossem os sacerdotes e paladinos, eles estavam ajudando a manter o Corrupted Blood em Azeroth, o planeta onde Wow acontece.

O estudo também compara os NPCs aos casos assintomáticos, que espalham o vírus apesar de aparentar normalidade.
A Corrupted Blood se espalhava com facilidade. Uma maneira usada por epidemiologistas para mensurar o contágio de uma doença é contar quantos novas infecções se originam, em média, a partir de um infectado. Esse é o número básico de reprodução, abreviado como R0.

O R0 do Corrupted Blood foi estimado em 10 por Lofgren e Fefferman. O Imperial College London calculou em janeiro que a Covid-19 tinha R0 de 2,6. O número precisa ser menor que 1 para a epidemia se encaminhar ao fim.

Há porém diferenças importantes entre videogame e realidade. Ran Balicer, da Ben-Gurion University, em Israel, pontuou em artigo na revista Epidemiology que a relação das pessoas com seus avatares virtuais é diferente da vida real, mas que mesmo assim há vantagens em estudar ambientes como o do MMORPG. "O comportamento observado no jogo pode ser precisamente medido e contabilizado", argumenta.

Hakkar - Reprodução/WoWHead - Reprodução/WoWHead
Jogadores enfrentam Hakkar em World of Warcraft
Imagem: Reprodução/WoWHead

Para salvar o mundo, a Blizzard não desenvolveu nenhuma vacina. Resolveu o problema ao resetar os servidores e lançar um novo patch, o 1.8. "Corrigido um bug que permitia que a habilidade Corrupted Blood de Hakkar atingisse ajudantes", dizia um tópico colocado sem destaque algum no texto da atualização. Essa talvez seja a mais extensa declaração oficial da Blizzard sobre o caso.

Oportuno, World of Warcraft Classic, modo de jogo análogo ao Wow antes do lançamento das expansões, recebeu a raide Zul'gurub na semana passada. Com mais de 2 milhões de infectados pela Covid-19, a circunstância inspira autoridades sanitárias a pedir que as pessoas a fiquem em casa, talvez aproveitando o tempo para se aventurar em Azeroth. Em tese, o problema do Corrupted Blood não se repetirá. Pelas dúvidas, é melhor lavar as mãos.

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