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Racismo nos eSports: jogadores brasileiros relatam casos de preconceito

Pro-players negros de Free Fire, LoL, CS:GO e R6 contam ao START como o racismo é uma barreira nos eSports - Arte/UOL
Pro-players negros de Free Fire, LoL, CS:GO e R6 contam ao START como o racismo é uma barreira nos eSports Imagem: Arte/UOL

Gabriel Oliveira

Colaboração para o START

10/06/2020 04h00

Quando pequeno, o pro-player de Free Fire Pedro "Peu" Landim ouvia repetidamente da mãe que seria discriminado pela cor da sua pele. Ela buscava prepará-lo para o racismo presente na sociedade brasileira.

Na adolescência e na vida adulta, os insultos e tratamentos racistas vieram, na internet e presencialmente. Uma triste realidade ainda enfrentada pelos negros no Brasil.

PEU e outros cyber-atletas, treinadores e executivos de eSports relataram ao START as situações de preconceito racial que vivenciam e como lidam com isso.

"Em live, me chamam de macaco e lixo"

Peu Free Fire  - Divulgação/Garena - Divulgação/Garena
Imagem: Divulgação/Garena

Campeão da 1ª Etapa da Liga Brasileira de Free Fire (LBFF) de 2020 pela Team Liquid, Peu conta que a mãe o alertava sobre a discriminação que sofreria.

"Minha mãe sempre falou que iriam ter preconceito comigo, dependendo de onde eu estivesse, que não me tratariam como os brancos e que eu teria de ser melhor que eles, entre outras coisas", relembra o jogador de 20 anos, morador de Nova Iguaçu (RJ).

Isso o ajudou a lidar com os xingamentos e atitudes discriminatórias que logo se tornariam parte do dia a dia do pro-player. "Você entra no mercado, o segurança te olha diferente. Você entra no ônibus, o povo esconde o celular. Dentro de jogo, dizem 'só podia ser preto'. Em live, me chamam de macaco e lixo".

Certo dia, ao sair para o almoço antes de mais um dia de competição na LBFF, Peu pediu carro por aplicativo de transporte. Ele estava na esquina sozinho, com o uniforme da Liquid, e entraria no veículo com companheiros de time. Ao vê-lo, o motorista chamado saiu do local e cancelou a corrida.

"Na hora eu associei a isso [preconceito], o cara achou que eu era ladrão", desabafa o jogador.

PEU diz que, por conta dos constantes alertas da mãe, consegue lidar bem com o racismo. "Isso não afeta, nunca me afetou. Se minha mãe nunca tivesse falado, eu pensaria o quê? Que eu era inferior", explica. "Eu procuro não ligar muito, eu xingo os caras e não estou nem aí".

A Garena, produtora do Free Fire, declarou que "não tolera nenhum comportamento hostil ou discriminatório em nossa plataforma". "Estamos comprometidos em trabalhar com nossas comunidades de jogadores para criar uma experiência divertida, inclusiva e acessível para todos".

"Por ser negro, eu ficava totalmente deslocado"

Elvis "sir" Gomes - Divulgação/CBCS - Divulgação/CBCS
Imagem: Divulgação/CBCS

Ex-jogador de Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO), Elvis "sir" Gomes sofreu preconceito com ofensas pela web e isolamento em eventos presenciais. "Já passei por muita coisa, não só por ser negro, mas também por ser pobre. Morava em periferia. Fui sempre discriminado por isso".

Nos tempos dos campeonatos em lan house da versão 1.6 do Counter-Strike, sir sentia-se excluído. Ele lembra de uma competição em Curitiba (PR) em 2011, na qual inclusive encontrou jogadores que o haviam xingado pela internet.

"Eu senti que, por ser negro, eu ficava totalmente deslocado. O pessoal tinha uma retração por eu estar ali", relata o ex-pro-player de 28 anos, que é de Salvador (BA) e atualmente comanda uma empresa de consultoria em apostas nos eSports.

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Os insultos racistas eram frequentes nas partidas pela internet. Sir cita um caso ocorrido já na época do CS:GO, em 2018, quando, após uma discussão, um jogador passou a ofendê-lo em um jogo que estava sendo transmitido por stream. "Ele começou a falar: 'você é negro, você é preto, você é a escória, a sociedade não gosta de você'. Ele realmente derramou o ódio em mim".

O ex-cyber-atleta também sofria discriminação racial na escola, mesmo morando na capital mais negra do Brasil. Em Salvador, 82,1% dos habitantes se declaram pretos ou pardos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "Eu passei por situações de preconceito por parte de quem era branco".

Elvis "sir" Gomes 2 - Divulgação/CBCS - Divulgação/CBCS
Imagem: Divulgação/CBCS

Ele admite que, com tantos casos dentro e fora do CS:GO, sentia-se inferior no passado. "Eu ficava com muita raiva, mas acabava meio que aceitando. Você pensa: é isso, realmente eu sou inferior. A raiva era transformada em inferioridade", comenta sir, que hoje recuperou a confiança. "Eu tive que correr atrás de entender que eu poderia estudar e ser bem de vida. Minha vida melhorou: consegui completar meus estudos, ter emprego bacana, iniciar uma faculdade, crescer profissional e intelectualmente. Isso me deu confiança".

Rir pra não chorar

dok CS:GO - Divulgação/CBCS - Divulgação/CBCS
Imagem: Divulgação/CBCS

O jogador de CS:GO da Redemption POA Michael "dok" Marques, de 24 anos, de Sumaré (SP), conta que sofreu insultos durante partidas e até mesmo em seu perfil no Steam.

"Tem todo tipo de xingamento racista para tentar me ofender. Foi sempre assim. Até hoje rola um pouco, mas muito mais pelas costas. Fico sabendo em off das coisas que acontecem", relata dok, que tenta ignorar as ofensas. "Não valeria a pena discutir com pessoas que ofendem pela cor da pele".

Fora do jogo, dok lembra que costumava ser seguido por seguranças em mercado e parado pela polícia para revista:

Michael "dok" Marques - Divulgação/CBCS - Divulgação/CBCS
Imagem: Divulgação/CBCS
Não me incomodava muito, eu só tinha um pouco de medo de fazerem alguma maldade na época. Eu e meus amigos, que também eram de cor, já sabíamos que essas coisas rolavam e não ligávamos. Nós aceitávamos que as coisas eram mais ou menos assim e conseguíamos até tirar graça disso. É o famoso rir pra não chorar

Michael "dok" Marques, pro-player de 24 anos, de Sumaré (SP)

Ele entende que "o preconceito já chegou no limite e finalmente o povo acordou". "Infelizmente um negro teve que ser assassinado e filmado, de novo, para isso acontecer", contextualiza dok, fazendo referência ao homicídio do segurança negro George Floyd, de 46 anos, pelo policial branco Derek Chauvin durante uma abordagem em Mineápolis, nos Estados Unidos, em 25 de maio.

O episódio provocou indignação e deu início a uma série de protestos contra o racismo e a violência policial que começaram nos Estados Unidos e se espalharam por outros países. Nos eSports, também houve manifestações de apoio ao movimento #VidasNegrasImportam.

Plataforma de jogo onde parte dos insultos a dok ocorreu, a Gamers Club explica que, quando há denúncia e é constatado o ato discriminatório, o autor do ataque é banido permanentemente.

Michael “dok” Marques 2 - Divulgação/CBCS - Divulgação/CBCS
Imagem: Divulgação/CBCS

A Gamers Club informa ainda que, recentemente, lançou uma campanha anti-toxicidade para combater não apenas o racismo, mas todos os atos discriminatórios ocorridos na plataforma.

Agressões

Dryx Rainbow Six INTZ  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

O técnico e jogador de Rainbow Six Marcos "Dryx" Vinícios conta que já chegou a ser agredido na escola, em meio às ofensas racistas que costumava ouvir na infância.

"Eu sou de uma família extremamente pobre. Minha mãe me criou sozinha e me colocou em um colégio particular. Eu sofria muita discriminação por ser preto. Quase todos os dias no recreio eu me via rodeado de garotos que eu não conhecia me zoando por eu ser negro. Faziam diversas piadinha como: todo preto é fedido, todo preto parece macaco", relembra, com muita tristeza. "Só de lembrar desses episódios eu sinto muita vontade de chorar, pois essas coisas mexeram demais com a minha cabeça".

O profissional, que treinou a INTZ e hoje retomou a carreira de pro-player, diz que, apesar de os insultos terem diminuído, continua sendo alvo de discriminação.

Dryx R6 - Saymon Sampaio/Ubisoft - Saymon Sampaio/Ubisoft
Imagem: Saymon Sampaio/Ubisoft
É notório o olhar das pessoas por onde quer que eu vá. Por mais arrumado que eu esteja, sempre vou ser taxado como alguém que trabalha na limpeza. Não existe problema algum em trabalhar com limpeza, porém sempre sou diminuído ou, pelo menos, me sinto assim

Dryx, pro-player de 27 anos, morador de São Gonçalo (RJ)

Ele aponta que cabe aos negros e aos que abraçam a luta contra o racismo se manifestarem, mas pondera que trata-se de uma tarefa muito difícil e dolorosa. "Como fazer isso cheio de cicatrizes da infância? Sem ter o básico em casa, como água? Sem ter o estudo necessário para se expressar para que as pessoas reflitam? Sem ter medo de expor quem você realmente é em um universo onde a maioria é branca?"

Dez anos de terapia

sand LoL - Divulgação/SuperLiga - Divulgação/SuperLiga
Imagem: Divulgação/SuperLiga

O treinador de LoL Pedro "Sand" Trindade, de 24 anos, de São Paulo, faz terapia há uma década por conta do preconceito que sofre desde criança.

"Estudei em uma escola onde só tinham brancos e sofri muito por ser o único negro. Eu era excluído e tive rejeição. Então, tenho problemas para socializar", revela o técnico, que comanda a equipe universitária da Falkol eSports.

Ele conta que via a internet como refúgio, mas que também acabou sendo atacado na web. Em 2017, ao triunfar em uma competição de acesso ao Circuito Desafiante (torneio da 2ª divisão do LoL brasileiro), o treinador chegou a ser ridicularizado em publicações no Facebook que usavam fotos dele. "Foi por conta da aparência principalmente, por eu ser gordo e preto".

Já em 2018, integrando a comissão técnica do Santos e-Sports, Sand sentiu-se discriminado na Super Liga ABCDE. "Pessoas chegavam e cumprimentavam os meninos, mas, para mim, era um olhar meio que dos pés à cabeça e um aceno bem discreto. No começo eu pensava que era por eu ser desconhecido. Mas, ao término da liga, continuavam me tratando como se eu fosse ninguém".

Ele observa que este é um tipo de racismo sutil, em que o negro não é atacado, mas sim discriminado. "Eu não esperava um acolhimento nos eSports, mas o desprezo me surpreendeu. Me senti igual quando sofri na escola: um completo estranho em um lugar ao qual eu não pertenço. Depois de um tempo, entendi que é assim que eles queriam que eu me sentisse. Foi quando eu comecei a me incomodar muito com isso tudo".

A maioria das pessoas não vê o que nós, pretos e pretas, temos de passar na mão de patrões abusivos e policiais agressivos e em jogos online. Não temos paz. E, mesmo que exista uma punição, os racistas continuam agindo

Pedro "Sand" Trindade, treinador de LoL

Ofensas na ranqueada

Natan "fNb" Braz - Divulgação/RiotGamesBrasil - Divulgação/RiotGamesBrasil
Imagem: Divulgação/RiotGamesBrasil

O pro-player Francisco Natan "fNb" Braz, de 20 anos, da equipe de LoL da PRG Esports, diz que se sente sortudo por não ter passado por situações de preconceito racial, considerando que constantemente via relatos de racismo.

Uma única vez fNb sofreu ofensas racistas, em uma partida ranqueada de LoL, no início do ano passado, quando, em meio em uma discussão, passou a ser xingado por um jogador.

Francisco Natan "fNb" Braz - Divulgação/PRG - Divulgação/PRG
Imagem: Divulgação/PRG
O cara começou a me chamar de macaco e a falar que minha mãe tinha de morrer e que eu não deveria estar jogando. Eu acredito que há xingamentos que dá para serem relevados, mas, a partir do momento que a pessoa é racista, não tem como

Francisco Natan "fNb" Braz, 20 anos, pro-player de LoL da PRG Esports

O cyber-atleta denunciou as falas e o autor dos insultos teve a conta banida. Ele é conhecido nas partidas ranqueadas, segundo fNb, por ter comportamento tóxico e ofensivo.

"Ele é famoso por praticar intolerância. Ele toma ban e simplesmente cria outra conta. Fica por isso mesmo", aponta o pro-player da PRG, que é de Teresina (PI) e hoje vive em São Paulo.

Desenvolvedora do LoL, a Riot Games declarou, em nota, que "repudia todos os atos de racismo, preconceito, assédio e manifestações de ódio" e que "se esforça para desencorajar comportamentos inadequados e desenvolver um ambiente saudável e maduro dentro de seus títulos e do cenário competitivo".

No caso de pro-players, o regulamento das competições oficiais de LoL do Brasil prevê que, quando regras forem quebradas, se faz necessário penalizar times ou cyber-atletas.

Já os jogadores amadores devem ler e concordar com os Termos de Serviço da Riot Games, segundo os quais a empresa pode tomar medidas disciplinares, de leves a severas, "no intuito de proteger a integridade e o espírito esportivo em seus jogos".

Na lanchonete

Wender Vivo Keyd - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

O head de Comunicação e Marketing da Vivo Keyd, Wender Roberto, de 27 anos, conta que sofreu preconceito em uma lanchonete, em 2016 ou 2017.

Wender Vivo Keyd 2 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal
O atendente estava demorando para me atender. Quando eu perguntei o que estava acontecendo, ouvi 'se olha, cara'. Ele estava nitidamente se referindo à minha cor. Fiquei um pouco em choque. Mas esperei ele fazer o meu pedido, disse que não iria comer mais e pedi para cancelar. Foi a forma que enxerguei para revidar

Wender Roberto, 27 anos, executivo da Vivo Keyd

Ele entende que, nos eSports, falas e comportamentos racistas não são comuns. "Fico extremamente feliz com isso".

Como acabar com o racismo?

Protesto Black Lives Matter - BRENDAN MCDERMID/REUTERS - BRENDAN MCDERMID/REUTERS
Imagem: BRENDAN MCDERMID/REUTERS

Mas como combater o racismo, ainda tão presente na sociedade brasileira?

Para sir, do CS:GO, o caminho é a conscientização. "O governo poderia ajudar, criando campanhas. Mas falar muito sobre isso também é ruim, apesar de ser importante. Quando for pra falar, tem de ser levado para o lado de aniquilar isso. Não existe negro ou branco, existe o ser humano. Temos que chegar neste ponto".

Já Peu, do Free Fire, destaca que os pais deveriam ensinar os filhos a não serem racistas. "Tem pais que são racistas e passam para os filhos, que passam para os netos, que passam para os bisnetos. O caminho deveria ser os pais educarem os filhos desde cedo sobre o que é a pessoa negra e que ela pode contribuir para a sociedade da mesma maneira que a pessoa branca".

Legislação criminal

Legislação criminal - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Há ainda o caminho da responsabilização criminal de quem comete discriminação pela cor da pele. A legislação brasileira prevê dois tipos de crime: injúria racial ou racismo.

Na injúria racial, quando a ofensa é dirigida a uma pessoa em específico, a pena é de 1 a 3 anos de prisão e multa, conforme o Código Penal. Já o crime de racismo tem lei própria e é caracterizado por conduta discriminatória dirigida a um grupo ou a coletividade. A punição varia de 1 a 5 anos de cadeia e multa, a depender do ato.

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