The Last of Us Parte II é um jogo tenso. Muito, muito tenso. Ainda que haja recursos o bastante para contornar muito dessa tensão também inerente ao gameplay em si (e não só a trama, espumando raiva a cada momento), é perfeitamente possível personalizar sua experiência para fazer dessa tensão o holofote central.
E o terror, de forma direta e visceral, faz parte do pacote como aquele diabo de vermelho e com chifrinhos sussurrando profanidades no ouvido: "vai, Ellie, só mais um - -mata só mais um".
O medo do desconhecido
"A emoção mais forte e primitiva do homem é o medo, e o medo mais forte e primitivo é o medo do desconhecido", já dizia o escritor de Providence, criador dos mitos mais populares da literatura de horror, Howard Phillips Lovecraft.
E por mais que já estejamos um tanto familiarizados aos horrores do universo de The Last of Us, Ellie, agora transformada em máquina assassina, deixa a segurança de um onírico lar, rumo ao desconhecido.
Houve o gatilho para a aventura acontecer, mais forte e pulsante do que nunca antes, mas o objetivo final encontra-se em terras não desbravadas, cujos perigosos são totalmente enuviados.
Os infectados por cordyceps são, sim, o pano de fundo para feridas mais profundas, mas, como dizia o cineasta George Romero: "sempre pensei nos zumbis como sendo a revolução, uma geração consumindo a próxima."
O desconhecido de Lovecraft, para Ellie, poderia alcançá-la a qualquer momento. Ela sempre soube do real intento de seu protetor, do momento que a mentira foi proferida antes de chegarem a Jackson, culminando no descer daquelas malditas escadas, rumo ao irreversível. Cada degrau, o peso de toda uma vida.
E faz todo sentido quando olhamos The Last of Us Parte II sob a lupa de um microscópio que já contemplou o macrocosmo do horror em suas mais diversas frentes. Quando o medo particular, queimando por dentro, controla suas ações como um títere débil, é quando o terror aflora e se torna produto de seu tempo, e um tanto orgulhoso.
A roteirista Halley Gross, da primeira temporada de Westworld e a grande responsável por tornar The Last of Us Parte II numa das maiores obras de videogame de nossos tempos, sabe disso melhor do que ninguém.
Nada é capaz de nos livrar do terror particular, nem a condição mais perfeita de vida, aquela idealizada em utopia, pois o passado sempre nos alcança e os pesadelos, ranger de dentes, gritos e sussurros jamais nos deixam. O ódio consome e não deixa nada para trás.
O significado da "Parte II"
Na brilhante matéria de Sam White para a GQ-Magazine, o diretor e corroteirista Neil Druckmann fala sobre seu filme favorito e como está atrelado ao "Parte II" do título.
Não vem à toa, pois trata-se de bem mais que singela homenagem ao capítulo do meio de uma das trilogias mais importantes da história do cinema: O Poderoso Chefão.
Nela, temos duas tramas acontecendo em paralelo: a ascensão de Michael Corleone como sucessor de seu pai, e a vida passada de Vito na Sicília. Vito Andolini se torna Vito Corleone porque os horrores da vida real chegaram até sua família —causa e consequência— e o forçaram a se tornar a força motriz de algo desenfreadamente cruel para uns —ação e reação. Mas só para uns. Pinhead sempre soube: "Anjo para uns, demônio para outros".
O terror lida com contrastes como nenhum outro gênero, o que faz dele um tanto turvo na hora de etiquetar e colocar no lugar devido da prateleira. É sempre "alguma coisa de drama + terror" ou então "aquele tanto de sobrevivência + um punhado de horror".
Parece ultrajante, um tanto desmoralizante, mesmo que os monstros sejam por minuto. Mas o terror também é pura subversão, muitíssimo além da mera subjetivação, o que torna esse pequeno ato de rebeldia ainda mais interessante, assim como os mafiosos italianos.
E por que fui do clássico de Francis Ford Coppola e Mario Puzo até a trajetória odiosa de Ellie? Porque, em ambos os casos, o fator humano, conquistado com muito esforço e um rastro de corpos e vísceras deixados para trás, se esvai por completo devido à eterna causa e consequência, a cobra que mordisca o próprio rabo num ciclo infinito de ação e reação.
E quase tão obscuro quanto o dito "mito familiar", de indivíduos cujo destino está traçado muito antes de chegarem ao mundo.
O terror lida com essa dificuldade de autoaceitação, auto entendimento, e faz alegoria (os cordyceps) para as camadas mais e mais profundas da psiquê humana/desumana (o ódio).
O terror em The Last of Us Part II
O mestre do terror, Stephen King, o mais prolífero e bem-sucedido escritor do gênero de toda a história, sempre gostou de categorizar o horror. É até contraditório, dada a vastidão das temáticas abordadas pela mente brilhante do Maine, mas vai fazer sentido para entender um pouco mais os horrores em The Last of Us Parte II. Prometo.
"O nojo: avistar uma cabeça decepada cambaleando escada abaixo, e é aí que as luzes se apagam e algo verde e pegajoso espirra em seu braço." O imaginário trazido pela leitura de uma linha dessas é uma constante na úmida Seattle.
Troque as peças (ou os membros) de lugar, ou a cor (e o grau de viscosidade) do líquido borrifado, e podemos começar a encontrar algum sentido no todo. Que fique claro o seguinte: não é sobre tripas ou vísceras, mas sobre sua importância na trama, a ênfase dada.
Quando Abby precisa de medicamentos, nem mesmo os perigosos desconhecidos de um porão infectado por anos e anos, seriam capazes de impedi-la de conseguir. Horror e terror, como dois lados de uma mesma moeda putrefata, são signos de antecipação e resposta, duas partes de um todo.
"O horror: o sobrenatural, aranhas do tamanho de ursos, os mortos levantando e andando por aí, é quando as luzes se apagam e alguma coisa com garras apanha você pelo braço." E quando o próximo se torna o "alguma coisa"? E quando a mão estendida vem com as tais garras?
Ficções sobre o fim do mundo, seja ela repleta de criaturas, desse ou de outro universo, ou de explosões e radiação, sempre oferecem abertura para que o mais horroroso da espécie humana, floresça.
É quando o sobrehumano, e a dita "violência pornográfica", se tornam tão banais que é, sim, o momento para uma autoanálise mais aprofundada (e com o auxílio de um profissional, evidentemente). Quando questionamos o real valor do terror em The Last of Us, é como se assumimos uma normalidade que, mais uma vez, reflete o ordinário de nossos tempos.
Stephen King, como ninguém, sabe das dificuldades de se assustar pessoas, ano após ano, década após década.
"E o último e pior de todos, o terror: que é quando você volta para casa e percebe que tudo aquilo que você possui, foi substituído por algo parecido. É quando as luzes se apagam e você sente algo logo atrás, você ouve, você sente sua respiração, e quando você se vira, não há nada lá".
Como Ellie poderia continuar a viver em Jackson depois do que aconteceu? Quando Ellie volta para casa, suas coisas estão todas lá. Ou não? O momento mais difícil em The Last of Us Parte II talvez seja o de despedida, quando Ellie assume o seu novo propósito e deixa para trás todas as mentiras reconfortantes, seja na forma de violão, de um moletom sujo ou de uma escultura de cavalo incompleta.
The Last of Us Parte II é, vez e de novo, um caminho sem volta e, quando se chega ao suposto objetivo final daquele ato ou daquela cena, nada mais é como antes. Nem mesmo quando Johnny Cash, com sua voz cheia de pesar, recita "eu só estou indo para casa". E, honestamente, não há nada mais aterrorizante do que isso, a perda do familiar.
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