O meu histórico com videogames é no máximo casual. Na infância, tenho memórias douradas de um jogo do Sonic no Mega Drive. Mais tarde, passei pelos dois primeiros PlayStation com um interesse superficial —tão superficial que, quando o meu PS2 parou de funcionar, eu já não via motivo para comprar outro.
Gerações de consoles se passaram até este ano, quando eu me rendi e decidi gastar com um Xbox. Após começar esse retorno aos games com velhos favoritos, os títulos de The Walking Dead, da Telltale, chamaram minha atenção na lista do Game Pass.
Foi neles que eu encontrei em primeira mão, após anos de uma relação distanciada, o que finalmente me deixaria fascinado por essa forma de arte: uma velha conhecida minha, a narrativa.
"Still. Not. Bitten."
The Walking Dead é uma história sobre trauma, em todas as suas encarnações. A franquia é famosa por não economizar na brutalidade, arrastando os seus personagens por maratonas de perigos, perdas e violências. Todo o investimento emocional do consumidor de The Walking Dead, seja em que plataforma for, vem da tensão de assistir a esses personagens se moverem por um mundo extraordinariamente perigoso e desolado.
Nos jogos da Telltale, que foram finalizados pela Skybound após a falência da desenvolvedora, esse investimento é potencializado pela própria plataforma. Aqui, é óbvio, não somos só receptores dessa odisseia de personagens sujeitos a perigos, perdas e violência —somos os protagonistas, estamos dentro da história e agimos nela.
TODO O INVESTIMENTO EMOCIONAL DO CONSUMIDOR DE THE WALKING DEAD, SEJA EM QUE PLATAFORMA FOR, VEM DA TENSÃO DE ASSISTIR A ESSES PERSONAGENS SE MOVEREM POR UM MUNDO EXTRAORDINARIAMENTE PERIGOSO E DESOLADO
Mesmo que exista a separação entre o jogador e a tela, é impossível ignorar que há outro nível de envolvimento em uma história sobre trauma quando estamos controlando os receptores e/ou perpetuadores deste trauma.
O formato específico de The Walking Dead dentro dos gêneros de videogame é outro fator extenuante. Como outras produções da Telltale, aqui não há só a tensão das sequências de ação, mas principalmente das escolhas morais que o jogador precisa fazer, que revelam o seu compasso ético, moldam a personalidade do seu personagem e a percepção dele pelos outros.
Os momentos cruciais do jogo tendem a acontecer longe das hordas de zumbis, quando o impacto das escolhas do jogador molda a trama, muitas vezes fazendo a diferença entre a vida e a morte. Durante quatro temporadas, The Walking Dead, o jogo, se torna aos poucos uma angustiante negociação moral, atrelada espertamente a uma corrente temática muito clara sobre família, o papel da figura paterna/materna como protetora, e sua conexão com a violência.
COMO OUTRAS PRODUÇÕES DA TELLTALE, AQUI NÃO HÁ SÓ A TENSÃO DAS SEQUÊNCIAS DE AÇÃO, MAS PRINCIPALMENTE DAS ESCOLHAS MORAIS QUE O JOGADOR PRECISA FAZER
Se esta franquia toda é sempre sobre trauma, a sua manifestação nos videogames é sobre o que fazemos com o trauma, e para onde vamos com ele, como ele reverbera através de gerações. Com ou sem apocalipse zumbi, nós estamos sempre nos perguntando em quem confiar, ou como podemos nos mostrar dignos de confiança, ou o que devemos dizer para expressar o que achamos certo em uma situação difícil.
A discussão aqui é, de fato, sobre expressão. O jogo sabe, e confia que nós saibamos, o que é "certo" e o que é "errado" —o que nos pergunta é se temos a maturidade para não só colocar em prática esta separação, como expressá-la com propriedade para aqueles à nossa volta.
"Whatcha doin' there, goofball?"
(AVISO DE SPOILERS: Neste trecho do texto, alguns aspectos do final do jogo The Walking Dead são mencionados.)
Preciso confessar uma coisa: eu estava em desespero no final de The Walking Dead. E é estranho, porque o momento no capítulo final em que o pequeno AJ parece ceder aos pedidos da jovem que foi sua figura materna a vida toda, Clementine, e ergue um machado para matá-la antes que a mordida de zumbi que ela tem na perna a transforme em um dos "monstros", deveria ser, apesar de devastador de um ponto de vista emocional, satisfatório sob um ângulo narrativo.
Como consumidor de mídia, eu sempre soube conciliar as duas coisas. Sempre me pareceu que um final trágico, mesmo um final sem esperança, se justifica caso ele tenha algo a dizer sobre a história que foi contada —e este tinha.
Aquele era um momento circular para The Walking Dead, com AJ precisando fazer por sua figura materna algo que ela mesma precisou fazer por sua figura paterna, Lee, no final da primeira temporada. A mensagem era clara: em um mundo brutal, tudo o que podemos fazer é o nosso melhor para deixar um legado de lembranças e lições, porque um dia o nosso tempo termina.
No entanto, eu não consegui tirar nenhum tipo de apreciação artística daquela cena. De alguma forma, me parecia que aquela maratona de traumas e perdas pelas quais eu tive que passar, não como espectador e sim como ator na trama, havia sido banalizada na face de um último ato brutal, mesmo que necessário (ou misericordioso).
Quando uma história abarca tanta violência, terminá-la em mais violência, não importa quão significativa ela seja, é quase prosaico —é tomar o caminho fácil. Talvez por isso o epílogo de The Walking Dead tenha mexido tanto comigo.
No golpe fundamental de sabedoria que moldou todo esse jogo aos meus olhos, os roteiristas tiveram a coragem de descartar a facilidade do momento "circular" pela dificuldade de uma conclusão muito mais complexa. Como nos revela a cena final do game, ambientada meses depois, AJ não aceitou repetir a ação de Clementine com Lee, em vez disso cortando a perna mordida dela e arriscando a sua própria vida pela possibilidade de salvar a dela.
Embora alguns condenem a "salvação" da protagonista como uma capitulação vazia às vontades dos fãs, vejo nela algo muito mais interessante, que o próprio jogo sugere na conversa final entre Clementine e AJ.
Aqui, me parece, The Walking Dead reflete, após nos dar tantas escolhas morais para fazer, sobre a individualidade das decisões que tomamos, sobre como nem mesmo nossos protetores são capazes de simplificar o mundo, explicar como agir nele, apontar o que é melhor para nós ou até, às vezes, para eles mesmos.
EM UMA ERA ONDE O SUBGÊNERO DEIXOU PARA TRÁS SUAS ORIGENS COMO CRÍTICA SOCIAL, O THE WALKING DEAD DA TELLTALE MOSTRA O QUE ESSAS HISTÓRIAS TÊM PARA NOS DIZER EM UM MUNDO DE MORALIDADES CADA VEZ MAIS COMPLEXAS
Nesta fluidez de papéis (mentor e aprendiz, pai e filha, protetor e protegida), refletida até em quais personagens estão sob nosso controle em cada momento da trama, o jogo de The Walking Dead encontra uma perspectiva sincera e certeira sobre o trauma: que ele é nosso para carregar, e parte de quem somos, mas não a integridade das nossas pessoas —e nem um obstáculo intransponível para que sejamos amados, demonstremos generosidade, estabeleçamos trocas saudáveis com aqueles que se abrem para elas.
Filmes e séries de zumbis contemporâneos deveriam tomar nota. Em uma era onde o subgênero deixou para trás suas origens como crítica social, o The Walking Dead da Telltale mostra o que essas histórias têm para nos dizer em um mundo de moralidades cada vez mais complexas.
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