Joguei The Last of Us Parte II com os olhos fechados. Pela primeira vez, usei as ferramentas de acessibilidade oferecidas por um game.
Antes de relatar a experiência, dois avisos: os recursos de acessibilidade foram pensados para atender pessoas com deficiência visual. A intenção deste artigo é apontar para os jogadores em geral uma nova forma de se experienciar esse que é um dos grandes lançamentos recentes.
Segundo recado: falarei sobre as primeiras horas do jogo e algumas mecânicas, o que pode ser entendido como spoilers. Tentei deixar o relato de certos momentos do jogo sem muitos detalhes para não prejudicar quem ainda não jogou, mas com elementos suficientes para localizar quem já passou pelo game.
Anteriormente, em The Last of Us...
The Last of Us Parte II (ou TLOU2) é a continuação de um dos jogos mais importantes da década passada. Em 2013, o estúdio Naughty Dog adotou a base da jogabilidade de sua série Uncharted para contar a intensa jornada de Joel e Ellie em meio a uma América arrasada por um vírus que controla o comportamento dos humanos. Dá para chamar a ambientação de The Last of Us de apocalipse zumbi, porém com ênfase ao aspecto humano e social. Em termos cinematográficos, é mais David Cronenberg do que George A. Romero.
A continuação chamou a atenção por muitos aspectos, entre eles as ferramentas de acessibilidade, com dezenas de opções e configurações:
Por postagens como essa do Ruhan Gonçalves, fiquei motivado em experimentar jogar sem ver. Dá certo?
Não havia jogado TLOU2 antes, então teria uma experiência pura. Bem, já havia assistido aos trailers e conheço os jogos anteriores da desenvolvedora, portanto tenho familiaridade com as propostas da Naughty Dog. Fora isso, nada; não fiz parte do hype do lançamento, em junho deste ano.
Ao abrir o jogo pela primeira vez, surgem as opções de acessibilidade logo de início. Liguei o conjunto pré-estabelecido de configurações de acessibilidade recomendadas de visão e cobri os olhos.
Primeiros passos
No início, um homem adulto relata os acontecimentos do primeiro jogo. Joguei o original há alguns anos em inglês, mas como desta vez decidi jogar em português para escrever este texto, demorei um tempinho em reconhecer quem era o narrador. O que estava sendo dito não deixava dúvida: Joel.
Fui fisgado por esse início, mas por que eu estava sentado em frente à TV como se estivesse assistindo? Sem necessidade de o pescoço ficar alinhado com a tela, aproveitei para jogar o audiogame em diversas posturas e lugares da sala, contanto que o controle não perdesse a conexão. Deu até para aproveitar um sol que bate de tarde no meu apartamento.
Depois da fala de Joel, começa um deslocamento à cavalo por uma região de floresta — os sons não deixam dúvida quanto a isso. A trilha de Gustavo Santaolalla de fundo, os silêncios, ruídos ao redor são aspectos que mantém o interesse logo nos primeiros minutos.
Percebi, porém, que estava negligenciando o áudio não só como estética, mas enquanto meio de comunicação. Informações como distâncias são transmitidas pelo som 3D. Meu televisor não estava passando esses dados de maneira tão cristalina. Pluguei fones de ouvido no controle e obtive um salto de qualidade de vida imenso. Usei fones auriculares populares, mas imagino que a experiência fique ainda melhor com aparelhos headphone com isoladores.
O mais importante efeito sonoro é uma espécie de assobio metálico tocado sempre que o L3 é apertado. O botão passa a servir para alinhar o personagem rumo ao próximo objetivo. Nessa condição basta pressionar para cima na alavanca analógica esquerda para avançar. Um assobio similar surge ao chegar no ponto previsto, momento de apertar L3 novamente.
Por isso, na parte mais mundo aberto do game senti que a experiência foi mais guiada, próxima dos jogos anteriores da Naughty Dog. Embora ainda haja opções de recusar entrar em determinado prédio, de fazer o próprio caminho.
Informações como distâncias são transmitidas pelo som 3D. Meu televisor não estava passando esses dados de maneira tão cristalina. Pluguei fones de ouvido no controle e obtive um salto de qualidade de vida imenso
Outros barulhos indicam quando há algum obstáculo, como apertar X para passar por passagens apertadas. Com esses recursos, o analógico direito, usado para mover a câmera, fica praticamente inútil. Exceto em certo momento envolvendo um binóculo: fiquei uns minutos parado nele até entender que precisava mexer na alavanca direita.
Há um enorme glossário de sons no menu de pausa. Será que teria de decorar todos? Era hora de pedir ajuda.
Respeito pelo jogador
"O glossário está disponível a qualquer momento do jogo, você pode decorar os sons básicos que aparecem com frequência, o próprio jogo te ensina eles. Você pode visitar o glossário quando tiver dúvidas de um som que está tocando", ensina Ruhan Gonçalves, 25 anos, o autor do tuíte citado acima.
Ao longo da minha experiência, troquei meia dúzia de e-mails com ele. Contou que nos últimos anos focou em jogos que se preocupam em incluir o público com deficiência. "Isso é uma demonstração de respeito por parte do criador do jogo", diz ele, que não encontrou nenhum trabalho tão bem feito quanto o da Naughty Dog nesse sentido.
Nessa questão do domínio dos sons, ocorre uma curva de aprendizado natural, similar à de qualquer jogo. Os tutoriais e ferramentas de texto para voz são uma mão na roda.
Parte importante da proposta de The Last of Us é fuçar pelo cenário em busca de elementos que revelam um pouco mais da história ou dão pontos de habilidade, como os manuais de treinamento . Será que em The Last of Us Parte II de olhos fechadas dá para fazer isso? Sim. Gonçalves ensina: "Pressione e segure o botão R1 para começar o modo de escuta. Segurando R1, aperte círculo. O cenário ao redor do personagem será vasculhado". Mantendo o R1 pressionado, o L3 passa a estabelecer os itens como objetivo.
Valeu a pena aprender a escarafunchar os cenários. Tive muito mais paciência para consumir e me envolver com os textos espalhados pelos ambientes. A voz monocórdica de leitura parecia estranha no início, meio voz de GPS, mas depois me acostumei. Comecei a dar ênfase no sentido do que estava sendo LIDO. E TLOU2 diz muito dessa maneira. Um bilhete de uma pessoa desesperada por mantimentos foi particularmente marcante.
Nessa questão do domínio dos sons, ocorre uma curva de aprendizado natural, similar à de qualquer jogo. Os tutoriais e ferramentas de texto para voz são uma mão na roda
Mais que Rumble Pack
Entendida essa parte dos sons, percebi uma outra ferramenta de comunicação importante: a vibração do joystick. É por meio dela que é possível entender a posição das notas do violão logo no início do game, um puzzle simpático para tocar uma canção a Ellie. Mais adiante, essa mecânica abrirá espaço a dos momentos mais marcantes da narrativa, com Ellie tocando "Take On Me", o sucesso oitentista da banda norueguesa A-ha.
Considerava antes a vibração nos joysticks um aspecto secundário. O HD Rumble do controle do Switch foi destacado pelo marketing da Nintendo no lançamento, mas eles nunca proporcionaram nada muito diferente do que é feito desde o Rumble Pack, o acessório trambolhoso do Nintendo 64.
A Sony promete que o Dual Sense, o joystick do PlayStation 5, trará o chamado feedback háptico capaz de trazer novas possibilidades táteis nos jogos. Falando na próxima geração de consoles, tanto Xbox quanto PlayStation enfatizaram evoluções sonoras em seus aparelhos.
Por fim, outro recurso do joystick que TLOU2 faz bom uso é o polêmico touchpad. Ele é apontado como um elemento subutilizado do controle, mas a Naughty Dog encontrou uma utilidade para a acessibilidade: por meio dele é possível saber o status da personagem, se ela está de pé, atrás de uma mureta, que arma empunha, etc.
Rejogando, mas de olhos abertos
Depois de avançar sem enxergar até a parte em que acontece um beijo no jogo, comecei uma nova partida desde o princípio. Desta vez, com os aspectos padrão do game, enxergando.
TLOU2 como audiogame chega a ser mais imersivo em certos aspectos. Estranhei as paredes invisíveis, o caminhar da Ellie (parecia os gestos de corrida mesmo quando se desloca devagar) e algumas dissonâncias ludonarrativas, do tipo "você pode carregar três molotovs na mochila, mas apenas uma garrafa vazia". E de maneira geral estava imaginando que a comunidade de Jackson, onde Joel e Ellie residem, de outra maneira, mais decrépita. Mas fui além da parte que tinha parado no save vendado, avancei até a parte em que Ellie chega a Seattle. Voltei ao save que tenho sem olhar, a partir do polêmico beijo, que agora revelou um suave ranger de madeira ao fundo.
Outro detalhe que ficou mais claro ao rejogar: o breve silêncio que impera depois que Joel se apresenta para um pessoal. Uma sutileza importante. Nesse trecho, The Last of Us Parte II deixa claro que tudo pode acontecer, a incerteza dos rumos da narrativa é um fator central na composição da ambientação do jogo.
Ficou claro que o jogo tem pontos de controle abundantes. Só prestando atenção no som, sutilezas dos diálogos ficaram mais claras. Confirmada a suspeita: É um jeito diferente de voltar à jornada de The Last of Us Parte II.
"Encorajamos todos a aproveitarem essas opções para criar uma experiência de jogabilidade que se encaixa perfeitamente", disse Matthew Gallant em um texto no site oficial da PlayStation e eu assino embaixo.
Talvez até seja possível, no futuro, colocar troféus ou configurações para pessoas que enxergam experimentarem jogos em modo audiogame de maneira mais fácil. E com mais gente consumindo jogos dessa maneira, quem sabe seja o empurrão que falta para mais games trazerem esses recursos --grana é um fator importante nesse tal de capitalismo.
Talvez até seja possível, no futuro, colocar troféus ou configurações para pessoas que enxergam experimentarem jogos em modo audiogame de maneira mais fácil
Mesmo que jogar de olhos vendados não seja a sua praia, vale a pena passear pelos menus de acessibilidade do game. Tem muita opção para alterar o jeito de se jogar e rejogar a obra.
Reforçando o que foi dito lá no começo, meu relato passa uma ideia de como uma pessoa cega joga. Quem quiser se aprofundar no assunto e entender como é o relato de uma pessoa cega, recomendo a leitura do fio que o Ruahn postou no Twitter e os relatos (em inglês) de Steve Saylor, que trabalhou como consultor para a Naughty Dog.
Mas nem tudo foi de boinha nesses testes. Vamos ao que deu errado.
Falha 1: Co-piloto
"Como você conseguiu acertar o tiro?", perguntou Cecilia Arbolave, minha esposa, ao assistir uma cena em que lutava com zumbis. Expliquei que, seguindo as orientações de Gonçalves, estava jogando na dificuldade mais fácil e com mira automática. Os combates viram quase um jogo de ritmo.
O comentário de minha digníssima me deu uma ideia: como seria jogar sem ver, mas sob as orientações dela?
Não deu certo. Exceto por Tetris e Untitled Goose Game, Cecilia não tem o hábito de jogar. Então faltava para ela a noção de deslocamento de games 3D. Orientava para mexer para a direita, mas não deixava claro se queria que eu mexesse a câmera (analógico direito) ou a personagem (esquerdo).
Além disso, com as configurações padrão de acessibilidade visual, ela estava assistindo a um jogo adaptado para pessoas com baixa visão, com gráficos usando cores berrantes nos personagens e elementos importantes na partida, deixando mais esmaecido e acinzentado o cenário.
Falha 2: TV sem imagem
Testei tirar a venda e desligar a imagem da minha televisão. Fiquei alguns minutos jogando olhando apenas para minha estante de livros. Até que a Cecilia se aproximou para falar sobre algo nada a ver, como se eu estivesse fazendo nada, com o olhar perdido para a biblioteca. Tirei um dos plugs do fone para ouvi-la, e tentei lidar com o cotidiano do mundo real na orelha esquerda e infectados de um mundo pós-apocalíptico na direito. Não fiz bem nem uma coisa, nem outra.
Então fica a dica para usar um tapa-olhos. Além de evitar a tentação da espiadinha, a venda também sinaliza a quem está ao redor que você está jogando.
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