Meu primeiro contato com Spiritfarer foi por meio de um trailer numa E3 passada, e a mensagem contida ali permaneceu comigo até a chegada do jogo. A simples ideia de lidar com pessoas —ainda que representadas por animais antropomórficos mas ainda assim, pessoas— após sua morte, como num rito de passagem entre existências, acalentando e reconfortando essas almas, me pareceu extremamente difícil, mesmo com aquele visual tão belo e convidativo.
Difícil porque, afinal de contas, todos já lidamos com a perda de alguém próximo, alguém querido. A verdade é que eu não estava preparado para Spiritfarer.
Todo esse tempo entre aquele trailer e, de fato, entender as motivações de Stella, a Barqueira dos Espíritos, seus afazeres e compromissos para com as almas passageiras daquela embarcação, foi um prazer. Tudo estava sob controle até conhecer uma doce senhora ouriço de nome Alice.
A partir daí, foi uma construção dentro de mim. Ou reconstrução, ainda não sei dizer ao certo, e aqui é o momento difícil deste texto: abrir meu coração, com olhos marejados.
Há anos, e por anos, meu avô foi vítima da Doença de Alzheimer. Não existe cura, e trata-se de um transtorno neurodegenerativo em que fragmentos de proteínas tóxicas se alojam entre neurônios, em especial nas regiões cerebrais do hipocampo e córtex. É aí onde reside nossa memória e raciocínio. É aí que somos o que somos. Sem essas partes tão específicas do cérebro em pleno funcionamento, deixamos de ser. A personalidade e toda bagagem de vida definham.
Alice, a senhora ouriço de Spiritfarer, faleceu de Alzheimer, assim como meu avô. É bastante difícil explicar o que é conviver com alguém vítima dessa doença, alguém que fez parte de sua vida de forma tão íntima e que, como num piscar de olhos, esquece quem é você, esquece quem é, o que é. Stella, em vida, foi uma enfermeira. Descobrimos no decorrer do jogo que Alice foi sua paciente e também sua primeira perda nessa profissão tão difícil. De forma extremamente delicada e respeitosa, descobrimos como Alice se foi, e como suas memórias estão confusas e embaralhadas em sua mente doente.
Primeiro, foi assim: "Alice é bem idosa e tem tido dificuldade em chegar até sua casa - você poderia construí-la mais próxima à proa?" foi o que me pediu Astrid, uma mulher representada por uma lince cujo passado se misturou com horrores de guerra. Depois, foi se agravando, pois ela sequer conseguia se locomover. Por fim, o esquecimento completo. Quem é você? Minha filha? Quem é Stella?
Nesses breves, porém impactantes, diálogos, eu simplesmente desabava enquanto jogava. Ou quando precisei vestir as roupas de sua filha Annie, o que talvez tenha sido o momento mais difícil de todos. Por anos, tive pesadelos com meu avô transformado, com sua forma desfigurada, assustado com estranhos —sua própria família— ao seu redor. Não há nada que possa preparar alguém para isso. Muitos anos após sua partida, os pesadelos foram se tornando mais raros, mas ainda acontecem eventualmente.
Jogar Spiritfarer, em especial a jornada de Alice, foi como assistir a Amor, de Michael Haneke, talvez o mais difícil dos filmes que já vi até hoje. Os terrores pessoais, construídos dentro de nós, são desfragmentados com o passar da vida, o tratamento advindo através de terapia ou numa canalização artística. Quando soube que Alice era uma personagem inspirada na avó de um dos criadores do jogo, tudo fez ainda mais sentido.
Alice, assim como meu avô, passou a existir dentro de mim através de minhas memórias mais recentes. As mais terríveis. Só coube a mim mesmo lidar com isso e transformá-las em toda vida que veio antes de a doença chegar. É ali que quero guardar meu avô. E tenho certeza que foi ali onde Stella guardou Alice, e sua filha Annie também.
Obrigado, Spiritfarer, por me ajudar a lidar com o fantasma do Alzheimer do meu avô.
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