De tempos em tempos surge um jogo como medida, um patamar a ser comparado e atingido. Super Mario Bros. era o parâmetro para os jogos de plataforma nos anos 1980. Qualquer lançamento do gênero era imediatamente contrastado com o jogo da Nintendo. Street Fighter II exerceu o mesmo papel nos anos 1990 com games de luta, Doom no FPS e assim por diante.
Hades, do estúdio Supergiant Games, é um desses casos. O jogo que traz a história de um rapaz tentando escapar do inferno é o novo referencial de "roguelike", gênero surgido nos anos 80 e que tem mais de mil ocorrências só na loja Steam.
Começa-morre-recomeça
Para compreender os acertos de Hade precisamos olhar para os roguelikes e seus clichês.
O primeiro jogo do gênero foi Rogue. Lançado em 1980, o game trazia os elementos que seriam os pilares do gênero: exploração de masmorra, geração procedural de fases e morte permanente. Ou seja, pode esquecer o conceito de "número de vidas". Morreu? Perde tudo e volta pro começo.
E a nova partida será diferente, pois as fases são geradas por meio de algoritmos.
Há uma subdivisão para jogos que acumulam facilidades a cada tentativa, o roguelite —tão comum que se misturou com o roguelike, e na Steam muitos títulos estão nas duas categorias. É uma forma de recompensar o esforço: o jogador não sai de mãos abanando. Se formos levar ao pé da letra, Hades é um roguelite.
A punição extrema para a derrota, exigindo voltar desde o princípio, faz com que o conteúdo gere mais horas de jogatina. É um jeito que os produtores independentes encontraram para botar mais água no feijão.
Pela repetição, a jogabilidade é crucial nesses jogos. Não dá para ser meia boca, o ciclo precisa instigar. A estética do jogo, que será contemplada reiteradas vezes, também precisa ser pelo menos agradável.
A vala comum onde esses jogos caem é o enfado. A punição severa e a alta exigência em termos de dificuldade fazem com que a sensação das partidas tenha pouca variedade.
Sempre em alta tensão, exigindo atenção e reflexos, tem hora que a adrenalina já não bate. É uma observação que cabe a Enter the Gungeon, West of Dead, Neon Abyss, Dead Cells e tantos outros roguelikes.
Faz bem o que é para fazer bem
E aí chegamos a Hades. O jogo acerta nos predicados dos grandes títulos do gênero e tem jogabilidade deliciosa. A mistura de ação em perspectiva isométrica com elementos de RPG lembra Diablo, Darkside Genesis ou, para ficar no catálogo da Supergiant, Bastion.
Hades estabelece uma dinâmica de encontros por sala. O prêmio e a porta de saída abrem depois que todos os inimigos são derrotados.
O combate pede o uso dos quatro botões básicos do controle, com arrancada (dash), dois ataques (que mudam bastante de acordo com cada arma) e um disparo a distância. Esquema funcional, compreensível, familiar. Ideal para rastejar, uma vez mais, por masmorras.
Debaixo da jogabilidade com sabor de comida caseira há inúmeras personalizações e progressões. Os sistemas são introduzidos paulatinamente, para não assustar.
A curva de aprendizado é tranquila, e apesar da quantidade de sistemas e detalhes de gameplay, é uma estrutura simples de entender. Ao longo da partida, o jogador coleta diversos aprimoramentos que serão perdidos na próxima partida, como as abundantes bênçãos de deuses.
Para as melhorias permanentes, basta juntar tal quantidade de recurso X (sendo X uma gema, chave, néctar, entre outros) para destravar um benefício. Essa profusão de diferentes tipos de moeda lembra jogos gratuitos que forçam o jogador gastar dinheiro real para ganhar dinheiro virtual, o chamado "pay to win". Hades não caiu nesse canto da sereia: tudo é resolvido dentro do jogo sem o cartão de crédito.
Essas progressões recompensadoras incentivam o jogador a testar. Cada morte é uma oportunidade para arriscar algo diferente: vou com arco para atacar de longe ou agora escolho um escudo para entrar no meio da confusão? A sensação é de que sempre há uma novidade ou que falta pouco para uma nova habilidade ficar à disposição.
Até aqui, seria justo chamar Hades de um bom jogo. Mas ele vai além.
Manja Cavaleiros do Zodíaco?
Tamanha é a segurança da proposta que o game oferece um recurso de assistência, o modo deus. Nele o jogador ganha resistência a dano com efeito cumulativo, aumentando a cada morte. Não quebra o jogo.
Com isso, a Supergiant abre a porta de sua narrativa para um público mais amplo —quem não tem tanta habilidade ou tanto tempo está convidado. Afinal, Hades não é um mero jogo de ação.
Uma das artimanhas de Hades para não provocar enjoo é a história. Pela primeira vez, a Supergiant traz uma adaptação de uma narrativa conhecida, baseada na mitologia grega, velha conhecida dos videogames: God of War, Assassin's Creed Odyssey, Immortals Fenyx Rising (que nem foi lançado ainda), Altered Beast, por aí vai.
Está presente na cultura como um todo, do pop anime Cavaleiros do Zodíaco ao clássico da literatura Frankenstein, o "prometeu moderno". Como a Disney ainda não comprou os direitos desses personagens, cada um faz uma releitura livre das fábulas de Poseidon, Zeus e companhia.
Hades é protagonizado por Zagreu, um personagem obscuro das lendas —quem não quiser tomar um spoiler deve resistir à tentação de ler a Wikipédia.
O jogo mostra que Zagreu é o filho do deus Hades. Ele tenta escapar do submundo do papai, o reino dos mortos ou, para ser mais claro, o inferno. Conversas com outros personagens do jogo dão pistas sobre o porquê de o herói querer ir à superfície, entre outras tramas envolvendo a galera do Olimpo. Cada partida conta, personagens que aparecem pelo caminho comentam o resultado da batalha anterior, acompanham acontecimentos da narrativa.
Por mais que o game lide com deuses, o tom da narrativa foge da solenidade. Às vezes parece que Zagreu é um jovem querendo sair tarde da casa dos pais para uma balada (parecendo um Dante, de Devil May Cry), as brigas entre os deuses lembram uma grande treta de família no almoço de domingo.
O ritmo lento de exposição da história instiga, é uma das recompensas. Lembra nesse sentido a filosofia de Transistor, outro da Supergiant, que revelava um pouco mais de sua história conforme o jogador usava certas habilidades, coloca uma mecânica de revelar enredo.
Hades propõe tarefas típicas de simulador de relacionamentos, com conversas e presentes para os personagens, para avançar alguns núcleos dramáticos. Sim, até isso dá certo, até aí o jogo é refinado.
Geometria e balanceamento
A Supergiant está dedicada a manter uma experiência livre de desequilíbrios. Antes de chegar à versão 1.0, lançada em setembro, Hades ficou quase dois anos em early access —aliás, é a primeira vez que a Supergiant usa esse expediente. E o jogo recebe constantes atualizações: só em outubro foram três updates, ritmo digno de jogo competitivo.
As armas, responsáveis por grande parte da variedade de gameplay, parecem justas, com suas vantagens e desvantagens honestas, prontas para os jogadores acharem suas favoritas.
O game arquiteta um ambiente estimulante para o jogador criar suas próprias combinações, considerando, claro, que por sua natureza aleatória talvez não dê para obter as melhorias ideais. Há um pouco de rolar de dados.
Essa mistura de sorte com cálculo se soma a um vocabulário próprio de efeitos, o que gera uma sensação parecida a jogos de cartas colecionáveis. Um jogador de Magic entende o que é uma criatura vermelha 2/4 custo três, voar, ímpeto. São as informações necessárias para compreender sua qualidade e para quais tipos de baralhos serve — nome da carta e o desenho são perfumaria.
Hades exibe a finalidade de suas melhorias dessa forma, principalmente nas bênçãos, sempre acompanhados de caixinhas com o significado de "eletrificado", "fraqueza", "ataque especial", entre outros termos do jargão hadiano. O jogo, aliás, traz textos em português brasileiro.
A comparação com cartas também ilustra as possibilidades de combos. Determinadas habilidades podem num primeiro momento não parecer muito úteis, mas quando combinadas com outras geram impactos devastadores. Para descobrir é preciso tentar, experimentar e (você já sabe) morrer.
Hades e seus deuses
Super, gigante
Hades tem sabor conhecido para quem conhece os outros três títulos da Supergiant. Câmera, dubladores, trilha sonora, gráfico e estética em geral tem a marca autoral da desenvolvedora.
A direção de arte parece ser uma evolução natural do título anterior, Pyre, e se aproximar ainda mais de algum quadrinho contemporâneo de super-herói. Lembra artistas como Jorge Jiménez, membro da geração que reza no altar de Jack Kirby, mas que já desenha direto no iPad. Tanto nas imagens estáticas exibidas durante os diálogos quanto no visual do jogo em ação, nada parece ter sido feito nas coxas.
O áudio também é um deleite, tanto nos tons pausados das interpretações. As linhas espirituosas sem ser palhaçada funcionam, entregam um clima próprio para os momentos sem ação. Aspecto importante, pois como se trata de uma produção independente, não há grandes cinemáticas para avançar a trama.
HADES INVESTE EM HARMONIZAÇÕES DE CORDAS E STONER ROCK. EM ALGUNS MOMENTOS SOA COMO SE O QUEENS OF THE STONE AGE CONVIDASSE UMA ORQUESTRA PARA UMA JAM DIONISÍACA NO PARTENON
A música é quase um personagem. Hades investe em harmonizações de cordas e stoner rock. Em alguns momentos soa como se o Queens of The Stone Age convidasse uma orquestra para uma jam dionisíaca no Partenon. Elogiar uma trilha sonora assinada por Daren Korb beira o pleonasmo. Tão óbvio quanto dizer que dois mais dois dá quatro, que a água é líquida, que terra é redonda, que ? hmmmm? pelas dúvidas, sim, Korb mais uma vez acerta:
É tocante testemunhar a trajetória da Supergiant, estúdio independente de São Francisco. Estourou em sua estreia com Bastion, em 2011, e gradativamente perdeu prestígio e atenção com seus lançamentos seguintes, Transistor, de 2014, e Pyre, 2017. Parecia que iria trilhar um caminho de jogabilidade experimental.
Pois a Supergiant volta com uma proposta clara em Hades, que terá presença certa na disputa dos primeiros lugares das inevitáveis listas de melhores do ano. Vá para o inferno e agradeça por isso.
Lançamento: 17/09/2020
Plataforma: PC (Epic e Steam) e Switch
Preço Sugerido: R$ 47,49 (PC), US$ 25 (Nintendo eshop dos EUA)
Classificação Indicativa: 10 anos (violência)
Desenvolvimento: Supergiant Games
Publicação: Supergiant Games
Jogue também: Bastion, Transistor, Pyre, Dead Cells, ScourgeBringer
SIGA O START NAS REDES SOCIAIS
Twitter: https://twitter.com/start_uol
Instagram: https://www.instagram.com/start_uol/
Facebook: https://www.facebook.com/startuol/
TikTok: https://www.tiktok.com/@start_uol/
Twitch: https://www.twitch.tv/start_uol
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.