Pessoas desconhecidas circulam por todos os jogos de mundo aberto, de GTA V a The Witcher III. É possível efetuar pequenas interações com eles, mas nada demais, estão lá mais como parte do cenário. Alguém, algum dia, em algum lugar da Ubisoft, teve uma ideia para reinventar isso: um mundo aberto em que qualquer NPC (non-playable character) pode ser recrutado e controlado.
Esse é o conceito central de Watch Dogs: Legion, terceiro volume da série de ação hacker. Não há protagonista na história. O jogador controla membros da célula rebelde DedSec, acusados injustamente de executar ataques terroristas em uma Londres futurista e distópica.
O conceito de "jogue com qualquer um" encaixa bem em Watch Dogs. Desde o primeiro título da série, de 2013, dá para fuçar na vida dos transeuntes —bastava apontar o celular a uma vítima para extrair dados pessoais, como nome, idade, renda etc. Agora há uma utilidade que vai além do voyeurismo: é possível saber que habilidades aquela pessoa tem, e se é algo que interessa à DedSec.
A inovação impressiona. Cada personagem tem voz própria, participam das cinemáticas (cutscenes), contam com um breve histórico próprio, habilidades, animações, indumentária e equipamentos. Um dispêndio de energia de produção colossal.
Porém, o efeito prático é baixo. Em termos de jogabilidade e narrativa, Watch Dogs: Legion soa ordinário. O game se comprometeu a atravessar a nado o canal da Mancha, mas se arrependeu no meio da jornada e agora luta para não se afogar.
Reivindicar nosso futuro exigirá ação coletiva, e se esperamos permanecer juntos, primeiro precisaremos ver os NPCs ao nosso redor como pessoas reais e nos colocar no lugar deles
Clint Hocking, Diretor criativo de Watch Dogs: Legion
Ubisoft, o jogo
Watch Dogs: Legion trilha um percurso conservador, mais ou menos dentro do que a Ubisoft fez e faz. A luta para desvendar quem é o responsável pelos ataques terroristas demanda inúmeras tarefas e afazeres, mas quem coloca a mão na massa mesmo é sempre o personagem controlado e ele sempre age sozinho.
Manja a sensação de ser o único trabalhando nas atividades em grupo da escola? Enquanto o personagem escolhido sua a camisa, os outros dão pitacos pelo comunicador. Essa é a principal forma de exposição do enredo, diálogos em que o personagem do jogador se limita a intervir com um punhado de frases genéricas. Falta agência à história. ("Agência" no sentido de possibilidade de agir, não de agência bancária, e nem agência secreta, combinado?).
Malvada & engraçadinho
Quem toma as rédeas da narrativa é Sabine, a líder do grupo hacker, sempre em tom duro e assertivo. O contraponto fica a cargo de Bagley, uma inteligência artificial aspirante a humorista.
Embora o tom de Sabine tente deixar tudo com ares de importância nervosa, o enredo de Watch Dogs: Legion não machuca ninguém. Os malvados são do mal, os bonzinhos são do bem, o chamado maniqueísmo. Há certos exageros, como a ênfase no uso de armas não letais por parte da Dedsec.
O arranjo poderia fomentar discussões de ordem política e social, mas esse potencial é desperdiçado. Os comentários de WD:L são mais leves do que as bobinhas queixas de redes sociais esboçadas em Watch Dogs 2. A franquia parece não ter coragem de dar um passo a mais, de assumir um ponto de vista —algo que até o novo Spider-Man fez melhor.
O enredo de Watch Dogs: Legion não machuca ninguém. Os malvados são do mal, os bonzinhos são do bem, o chamado maniqueísmo
A sensação de baixa interferência do jogador na história é consequência direta do "jogue com qualquer um", que ainda força os diálogos a evitar mencionar o nome do personagem da vez. Expressões faciais exíguas, problemas de sincronia labial e entonações estranhas em determinadas cenas são outros custos da proposta de Watch Dogs: Legion.
Valeu a pena? Se tem algo que pode ser dito em favor da mecânica é que as reuniões na base da DedSec parecem um revival da banda Village People, com policial, punks, operário da construção civil circulando pelo QG com clima de rave. Só falta música ou um videokê.
Tudo isso não faz de Watch Dogs: Legion um jogo ruim. Ele é sim, no cômputo geral, medíocre —na essência do significado da palavra, ou seja, comum, mediano
De médio mesmo
Watch Dogs: Legion não precisaria de grandes mudanças na jogabilidade para tirar proveito de sua mecânica inovadora. Do mesmo gênero, Grand Theft Auto V trabalhou seus três protagonistas de maneira mais articulada, seja em missões ou quando mostravam outras atividades que eles faziam em paralelo, enquanto o jogador se preocupava com outro personagem.
Algo simples como subir a dificuldade em certos pontos sem uma determinada habilidade já traria dinamismo. No entanto, o jogo dispensa o pensamento tático, permite que qualquer um resolva qualquer coisa. O cardápio de competências específicas não muda grande coisa no game. Consequência: não compensa gastar tempo e energia construindo um grande time.
Tudo isso não faz de Watch Dogs: Legion um jogo ruim. Ele é sim, no cômputo geral, medíocre —na essência do significado da palavra, ou seja, comum, mediano.
A mecânica para recrutar novos membros foi resolvida com um clichê. Você puxa conversa, a pessoa até topa participar da DedSec, mas antes pede um favor. É o típico toma lá dá cá tantas vezes visto em missões secundárias de inúmeros outros games. Após concluir a demanda, o novo personagem já entra para o grupo com imediato domínio do jargão da DedSec e passa a manejar com naturalidade as habilidades e equipamentos.
É uma dissonância ludonarrativa colocada em prol da simplicidade, mas que daria para ser explorada com um pouco mais de criatividade.
O combate afunda ainda mais o game no comum. Monótono, toma como base GTA no tiroteio e Assassin's Creed na furtividade. Deixa tudo mais mundano, como se fossem versões antigas das séries mencionadas.
Para jogadores que se sintam confiantes e que queiram aumentar um pouco a tensão, o jeito é ligar a opção de permadeath (morte permanente). Personagens derrotados são perdidos para sempre, e aí o jeito é circular por Londres em busca de mais gente. Sem essa opção, um integrante abatido volta depois de alguns minutos.
Vista aérea
O que salva o jogo é a ambientação. A cidade é convincente, com personalidade e diversificada. Adota um realismo, mas com um algo mais com seu estilo neon, pitadas cyberpunk. Principalmente à noite, com a paleta escurecida, o visual das luzes coloridas ganha destaque, uma armação meticulosa para fazer o ray tracing se destacar. Essa Londres é uma evolução imensa se comparada à insossa Chicago do primeiro Watch Dogs.
Jogo de transição de geração, o game coloca à prova recursos das novas máquinas Xbox Series X e PlayStation 5. A galera fã radical das marcas vai encontrar diferenças de desempenho nos aparelhos, mas que francamente não são perceptíveis para quem não está intencionalmente buscando por isso. Ambos carregam rápidos e deixam o jogo mais bonito.
Independentemente de guerra de consoles, a coleta de itens espalhados pelo cenário —atividade típica de jogos da Ubisoft, como Far Cry— é especialmente prazerosa em Watch Dogs: Legion.
Caixa de areia
Uma característica comum a jogos de mundo aberto é a ação sob roteiro rígido durante as missões, um contraste com a liberdade oferecida pelo gênero. Red Dead Redemption e GTA, os jogos da Rockstar que servem de referência, são exemplos dessa configuração. Legion tenta mudar isso.
A maior parte das missões do jogo se resumem a invadir lugar X para hackear computador Y. Fora um caso ou outro, há mais autonomia para o jogador resolver do seu jeito. Uma missão que envolve invadir um prédio para hackear um computador no terraço pode ser vencida no modo brucutu, tipo porrada e bomba (de preferência não letal, claro). Ou com furtividade, tirando proveito da baixa inteligência artificial dos inimigos. Ou, quem sabe, o jeito é pegar um drone de carga e ir direto no objetivo.
Fica a sensação de não ter chegado lá. Como as missões não variam muito e com locais repetitivos, acaba não exigindo soluções muito diferentes do jogador ou o rodízio de agentes
Criatividade também vence o jogo. E como não há recompensa por derrotar inimigos (os pontos de experiência são ganhos explorando e na conclusão de missões), há um incentivo a mais para o cérebro trabalhar.
Nesse sentido, Watch Dogs: Legion é o game mais sandbox da série, uma progressão ainda maior do que a efetuada entre o primeiro e o segundo jogos.
De novo, fica a sensação de não ter chegado lá. Como as missões não variam muito e com locais repetitivos, acaba não exigindo soluções muito diferentes do jogador ou o rodízio de agentes.
Bugsoft
Algumas semanas antes do lançamento de "Legion", a Ubisoft convidou a imprensa para experimentar um preview do jogo. Foi pedido que os jornalistas não se ativessem aos bugs, pois esses seriam corrigidos com atualizações.
O START cobriu o evento. As impressões esboçadas no texto se mostraram corretas —e não é querer puxar a sardinha, se houvesse algo a ser corrigido seria mencionado. Embora a data de entrega estivesse próxima, foi dado o benefício da dúvida em relação aos problemas. Pois agora fica constatado que os defeitos não só permanecem como foram agravados.
Os testes para para este review em um Xbox One S foram dolorosos. Em menos de uma hora, o jogo fechou sem explicações. Isso veio a se reprisar nove vezes ao longo da campanha de menos de 20 horas.
Mesmo nos consoles de nova geração, Xbox Series X e PlayStation 5, o game apresentava problemas. Em certas atualizações, ficava injogável.
Fora inúmeros problemas de polimento como instruções que piscam na tela, personagens correndo contra portas, pessoas levitando acima de buracos, comportamentos estranhos de inimigos.
Isso que Watch Dogs: Legion foi inicialmente prometido para março. Mais de meio ano depois, o jogo chega ao mercado nesse estado lastimável (para pegar leve).
Sem querer passar pano, é compreensível convivermos com alguns bugs nos próximos meses nos jogos multiplataforma. Títulos como WD:L devem se preocupar com PlayStation 4, 4 Pro, 5, Xbox One, One S, One X, Series S, X, PC. Sem contar os serviços de nuvem, como Stadia. Essa foi uma das razões apontadas para o mais recente atraso de Cyberpunk 2077.
Watch Dogs: Legion, porém, passou o limite do aceitável, ainda mais em se tratando de produção AAA.
Futuro do futurismo
Durante o período de análise para este texto, os recursos online não estavam disponíveis. Aparentemente, há planos intensos de fazer de WD:L um jogo como serviço, com missões cooperativas, PvP e outras surpresas.
Isso justifica a simplicidade da jogabilidade, uma forma de deixar o game palatável a um público mais amplo. Há casos em que isso foi bem-sucedido, como em Marvel's Avengers, da Crystal Dynamics/Square, outro "jogo como serviço", fez.
Porém, os hackers londrinos carecem do carisma e da diversidade de superpoderes de Capitão América e companhia. Apertar botões e bater num monte de soldados mantém o interessante. Mais cerebral, o game da Ubisoft parece ter um teto muito baixo em termos de demanda de habilidade sem muito a entregar quando esse limite é atingido.
O raciocínio de game online também explica a profusão de roupas disponíveis para customizar os personagens e uma ênfase no dinheiro para adquirir as mesmas. Para o jogador que não dá muita bola para moda virtual, não há motivações fortes para executar certas missões. Como era de se esperar, há também dinheiro virtual que sé é destravado com o cartão de crédito real do usuário.
Se esses sinais de foco no online estiverem corretos, era melhor ter atrasado ainda mais o jogo, apresentando a proposta correta desde o princípio. Ou ter mostrado uma proposta de jogador único mais corajosa, disposta a ir além do confortável mais do mesmo, com fôlego e audácia para nadar até a outra margem.
Lançamento: 29/10/2020
Plataforma: PlayStation 5, Xbox Series X, PlayStation 4, Xbox One e PC
Preço Sugerido: De R$ 249,99 a R$ 499,90, dependendo da plataforma e da versão.
Classificação Indicativa: 18 anos (Violência Extrema, Conteúdo Sexual, Drogas).
Desenvolvimento: Ubisoft Toronto
Publicação: Ubisoft
Jogue também: Grand Theft Auto, Saint Row, Assassin's Creed
SIGA O START NAS REDES SOCIAIS
Twitter: https://twitter.com/start_uol
Instagram: https://www.instagram.com/start_uol/
Facebook: https://www.facebook.com/startuol/
TikTok: https://www.tiktok.com/@start_uol/
Twitch: https://www.twitch.tv/start_uol
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.