Gamers com deficiência desabafam: há mais recursos para jogar, mas sai caro
Aos dez anos, Jhonata Fargnolli, conhecido no cenário gamer como Firmezinha, ganhou um computador de uma equipe de jornalismo alemã que entrevistou sua mãe. Durante a gravidez, ela havia tomado talidomida por recomendação médica e isso restringiu o crescimento dos braços do filho.
O PC mudou sua vida. "Comecei a jogar Counter-Strike 1.6 e vi um outro universo", conta Firmezinha. Mas a adaptação não foi simples. "Na época, não me lembro de ter visto ninguém sem os braços jogando, então não tinha referência de como podia fazer isso."
A solução foi jogar com teclado e mouse em cima da mesa e esticar as pernas o máximo possível.
Depois de 13 anos nessa posição, Firmezinha teve um problema sério nos rins. Precisou de mais um ano para se adaptar à nova posição: mousepad sobre um tapete no chão e, mais acima, teclado e mouse.
Antes do acidente de moto que o deixou tetraplégico, o hoje streamer Neto "NoHands" Trindade era professor de inglês e técnico em informática.
"Eu tinha uma certa ideia dos equipamentos disponíveis para que eu pudesse jogar, como software de reconhecimento de voz e de controle de mouse pela câmera. Mas, mesmo assim, levei quatro anos pesquisando para chegar ao Quadstick [controle criado especificamente para tetraplégicos] e só depois conseguir ser financiado por uma ONG", conta ele, que agora pode jogar games de ação como Valorant.
Ao receber a doação, NoHands ainda teve que pagar a tributação alfandegária.
As histórias de Firmezinha e NoHands ilustram bem a realidade dos gamers PcDs (pessoas com deficiência) no Brasil: dificuldades básicas em meio a um mercado que já oferece soluções importantes para quem precisa.
"É frustrante, é cansativo. Dependemos de equipamentos que não são nem de longe acessíveis", desabafa NoHands.
"É uma possibilidade real você ter PcDs competindo em campeonatos. Mas, ao mesmo tempo, há uma distância considerável quando você leva em conta a questão financeira e a acessibilidade do conhecimento."
O que já existe
De acordo com o Censo 2010, cerca de 24% da população brasileira apresenta algum tipo de deficiência. Mas só uma empresa vende periféricos para pessoas com deficiência por aqui: a Microsoft, que desenvolveu o controle adaptável de Xbox para jogadores com mobilidade limitada.
Ele funciona como um hub onde é possível plugar periféricos em uma saída de fone de ouvido. Custa R$ 999, sem margem de lucro para a empresa.
Por ser único no mercado nacional, o controle se torna limitado para muitas pessoas. "Já existem outros produtos que se conectam ao nosso, mas que não estão disponíveis no Brasil", explica Bruno Motta, gerente sênior de Xbox no Brasil. "Mantemos conversas com o restante da indústria para viabilizar isso e precisamos trazê-los para jogar junto na pauta de acessibilidade".
A AbleGamers, organização sem fins lucrativos que promove acessibilidade nos games, trabalha justamente para conseguir isso. "Estamos em contato com algumas empresas localizadas no Brasil para que seja possível aumentar essa oferta de produtos", conta o presidente Christian R. Bernauer.
"Além disso, estamos trabalhando para conseguir a redução de impostos para acessórios de videogame para pessoas com deficiência, similar ao benefício que existe com carros, para tentar tornar estes produtos mais acessíveis e incentivar mais empresas a comercializá-los", complementa.
Inclusivo por design
As desenvolvedoras também estão se mexendo. Isso é fundamental, já que, por mais que o controle seja personalizável, é preciso que o jogo permita alteração nos comandos.
No caso dos deficientes auditivos, é importante ainda que haja audiodescrição. A Naughty Dog, por exemplo, oferece configurações de acessibilidade focadas em audição, baixa visão e habilidade motora em jogos como Uncharted 4 e The Last of Us Part II. Funciona tão bem que o streamer SightlessKombat, deficiente visual, já zerou o jogo.
Na Ubisoft, já há uma equipe com centenas de pessoas (e em crescimento) para pensar em questões como recapeamento de controle, narração de menu, legendas e closed captions. O resultado são jogos cada vez mais acessíveis, com destaque para Watch Dogs: Legion, Assassin?s Creed Valhalla, Immortals Fenyx Rising e Far Cry 6.
"Acreditamos que seja nossa responsabilidade garantir que não estamos, sem querer, excluindo qualquer pessoa dos nossos universos", afirma David Tisserand, senior manager de accessibility da Ubisoft.
"Agora já estamos em uma posição em que podemos ir além, pensando sobre acessibilidade desde a pré-produção do jogo, de maneira integrada", afirma. "O objetivo é não depender tanto das customizações e, sim, fornecer experiências acessíveis por design."
Outras frentes
"Nos últimos dois anos, o mercado tem dado passos mais largos", acredita a streamer Laís Faccin, que desenvolveu uma doença degenerativa e perdeu grande parte do movimento do corpo. Hoje, ela divide seu tempo nos games de horror entre o PC, mais barato e fácil de adaptar, e o console com kit personalizável que recebeu da AbleGamers.
"Vejo mais iniciativas, fundações e celebridades prestando atenção no tema." Além dos jogos adaptáveis e da mobilização por mais periféricos, já rolam no país , por exemplo, campeonatos no Brasil como a Liga dos Surdos e a Copa Rise Academia (de League of Legends).
"Quando falamos em acesso para PcDs e qualidade de vida, geralmente as pessoas pensam em educação, saúde, trabalho e acesso de ir e vir, mas isso é o básico. Não podemos viver só disso. Dependendo da situação e da realidade da pessoa, o videogame é a única situação em que ela vai ter contato com um grupo grande de pessoas", diz Laís.
"Não investir em acessibilidade é também uma questão de deixar uma fatia do mercado de lado", resume NoHands. "Porque se a gente para pra pensar, a acessibilidade na vida do ser humano é uma questão de tempo. Se você planeja chegar aos 90 anos, você vai ter que conviver com algum tipo de limitação física, seja de movimento, força, visão ou reflexo. E a acessibilidade serve pra isso também."
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