A Comissão Europeia anunciou, em junho deste ano, o compromisso firmado com a empresa chinesa ByteDance, dona do aplicativo de vídeos curtos TikTok, para melhorar as práticas da big tech frente às diretrizes do bloco.
O compromisso veio após denúncia da Organização Europeia de Consumidores (BEUC), que culminou na instauração de procedimento pela Comissão Europeia para apurar anúncios ocultos direcionados a crianças e adolescentes no TikTok, prática vedada pela legislação do bloco europeu.
Dentre os principais compromissos estabelecidos, está a possibilidade de os usuários denunciarem anúncios não identificados e ofertas na plataforma que podem enganar crianças e levá-las a comprar bens ou serviços.
Considerações de ordem geopolítica quanto às pressões sobre a empresa chinesa à parte, tem-se constatado que as movimentações em prol dos direitos das crianças e adolescentes na Internet e nas redes sociais vêm se tornando mais frequentes e incisivas.
As revelações de Frances Haugen, ex-funcionária da Meta, no final do ano passado, parecem ter despertado a atenção das autoridades para o que ativistas pró-infância já apontam há anos: "as crianças são muito prejudicadas, pois usam aplicativos feitos por pessoas que sequer refletem sobre suas necessidades", valendo-nos aqui das declarações dadas pela própria Haugen em visita recente ao Brasil.
Nesse sentido, recentemente a Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) divulgou assinatura de compromisso com o Unicef para o desenvolvimento de ações de proteção das crianças online. Com o acordo, a AEPD busca conscientizar e divulgar materiais educativos.
Publicidade misturada com conteúdo
Se por um lado, portanto, há preocupações quanto à privacidade e o uso mais seguro das redes pelo público infantojuvenil, por outro, as preocupações da Comissão Europeia quanto à publicidade oculta no TikTok refletem, na realidade, tendência mais ampla à menor identificação da publicidade nas redes sociais como um todo - tendência, aliás, identificada pela mesma Comissão já em relatório publicado em 2018.
Em outras palavras, ao navegarmos pelas principais redes sociais, certamente nos depararemos com vídeos, posts e fotos que ofertam um sem-número de mercadorias e serviços (inclusive para crianças) estrategicamente desenvolvidos para que o produto ou a marca integre sutilmente o conteúdo, de forma a impactar o espectador, mas sem atrapalhar o entretenimento que é por ele consumido.
Basta compararmos, por exemplo, a publicidade veiculada nos intervalos comerciais da televisão com os "publiposts" de influenciadores digitais ou os anúncios que aparecem quando navegamos no Instagram, para que se constate que o ambiente digital favorece formas de comunicação mercadológica marcadas por uma maior integração e similaridade com os demais conteúdos ali veiculados, fazendo com que os usuários, de modo geral, não percebam que estão sendo impactados pela publicidade.
Essa tendência, porém, traz consigo uma série de riscos. Primeiro, porque a integração da publicidade à arquitetura das redes conduz a um aumento exponencial da quantidade de anúncios a que os consumidores são expostos. A organização Global Action Plan estimou, em 2021, que crianças e adolescentes de até 14 anos têm contato com mais de 1.200 anúncios todos os dias nas redes sociais, quantidade de 10 a 20 vezes maior que na televisão.
Segundo, porque a confusão da publicidade com outros conteúdos encontrados na Internet acaba por dificultar que os consumidores respondam a ela com maior senso crítico, à medida que sequer percebem de imediato as reais intenções por trás do conteúdo que se vale de uma linguagem tênue e que camufla o tom publicitário ali presente.
Além disso, a prática viola por completo a norma consumerista que determina a necessidade da identificação publicitária. O artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor indica que toda publicidade deve ser veiculada de modo que a pessoa fácil e imediatamente a identifique como tal. Isso significa, portanto, que uma comunicação que visa ofertar um produto ou serviço ao público não pode deixar qualquer dúvida quanto às suas intenções.
Criança vira "porta-voz" de fast-food
Isso é especialmente preocupante quando se trata do público infantil, que, como se sabe, frequenta massivamente as redes sociais e a Internet. As crianças, afinal, possuem maiores dificuldades em compreender qualquer forma de publicidade enquanto uma tentativa de persuadi-las ao consumo. Não à toa, o Código de Defesa do Consumidor também entende a publicidade que explora a deficiência de julgamento e experiência da criança como abusiva, reconhecendo a acentuada vulnerabilidade dessas pessoas à comunicação mercadológica.
Se a publicidade vem mascarada, então, essa dificuldade se aprofunda e se agrava, assim como fica dificultado o desenvolvimento gradual da compreensão da comunicação publicitária como algo essencialmente diferente de outros conteúdos aos quais as crianças têm acesso.
Um estudo recente conduzido por pesquisadores da Deakin University acrescenta, ainda, uma camada de complexidade a essas questões, ao apontar que não apenas as crianças estão expostas à publicidade mascarada nas redes, como ainda são transformadas, sem sequer perceber, em verdadeiras embaixadoras de marcas, muitas das quais comercializam produtos não saudáveis.
Analisando o conteúdo publicado por 16 empresas de fast-food no TikTok, eles localizaram diversas estratégias encorajando crianças a criarem e compartilharem vídeos divulgando a sua marca e produtos, aproveitando-se das famosas "trends" que dominam o aplicativo. Tais vídeos, por serem produzidos de forma "espontânea" pelas crianças (ou melhor, sem o amparo de uma relação contratual) dificilmente serão identificados como publicitários na plataforma.
Por todos esses fatores, o ambiente digital, como estruturado hoje, acaba por se converter em um verdadeiro cenário de exploração comercial infantil, no qual crianças são continuamente bombardeadas com estímulos ao consumo em formato mascarado e desrespeitoso à sua condição de pessoas em desenvolvimento e aos mais basilares princípios de proteção à infância e ao consumidor.
A publicidade infiltra-se, de maneira crescentemente insidiosa, em todos os desvãos da arquitetura da Internet, usurpando inclusive o próprio ímpeto criativo das crianças para se propagar. Se nada for feito, a tendência é que essa situação apenas piore.
Por todas essas razões, movimentações como as que têm ocorrido na Europa devem ser comemoradas e servir de exemplo para o Brasil. No país em que 94% das crianças e adolescentes são usuárias da Internet, a atuação das autoridades e de toda a sociedade para garantir que as plataformas digitais sejam mais respeitosas aos direitos das crianças e adolescentes é também imprescindível, e será por meio dessa atuação e da pressão regulatória que essas plataformas se adequarão aos direitos das crianças - inclusive o de não terem sua vulnerabilidade explorada para finalidades comerciais.
* João Francisco de Aguiar Coelho e Thaís Rugolo são advogados do do programa Criança e Consumo do Instituto Alana
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