Muitas vezes, as discussões sobre IA (inteligência artificial) e trabalho focam só no desemprego —o que, de fato, é um problema complexo e sério. Mas há também outras questões que devem ser discutidas.
Nesta semana estive em Brasília, a convite do STF (Supremo Tribunal Federal) para falar sobre o impacto da IA no futuro do trabalho durante o Fórum Internacional de Justiça e Inovação. Para facilitar o debate, estruturei abaixo os três principais pontos de como a tecnologia muda o mundo do emprego.
O trabalho que treina a IA
Existe um trabalho invisível e muitas vezes mal remunerado no processo de treinamento da IA. São pessoas pagas não para desenvolver novos modelos, pensar novas arquiteturas ou programar, mas para fazer microtrabalhos, como anotação de dados para ensinar as máquinas.
A OpenAI é uma das empresas que utiliza esse tipo de trabalho no desenvolvimento de seus serviços. Para treinar o ChatGPT, usou uma técnica chamada aprendizado por reforço a partir do feedback humano, que coloca pessoas para mostrar para a máquina quais são as respostas mais apropriadas. Assim, a IA aprende o padrão de resposta preferível pelas pessoas e melhora a sua qualidade de saída, um dos motivos para o ChatGPT escrever tão bem e de maneira convincente.
Mas, para isso, é preciso colocar pessoas para repetirem essa tarefa milhares de vezes com uma baixa remuneração. Recentemente, diversos veículos noticiaram que a OpenAI pagou US$ 2 por hora a trabalhadores no Quênia para isso.
Em casos mais sensíveis, empresas colocam tarefas de treinamento de IA em plataformas como Amazon Mechanical Turk e pagam centavos para pessoas ao redor do mundo fazerem o serviço.
No Brasil, pesquisadores da UEMG, Instituto Politécnico de Paris e CNRS (da França) acabaram de publicar um relatório que dá um panorama do microtrabalho no país. Apesar de nem toda tarefa envolver necessariamente IA, alguns números chamam atenção:
- 1 em cada 3 dos trabalhadores não tem outra fonte de renda além das plataformas de microtrabalho;
- 15 horas e 30 minutos é o tempo médio mensal dedicado às atividades remuneradas nas plataformas;
- R$ 582,71 é a média mensal de rendimentos com o microtrabalho.
Além da baixa remuneração, outro problema é a qualidade do que é feito. Apesar de parecer uma tarefa simples e repetitiva, existem situações que demandam qualificações que os anotadores não têm para desempenhar o trabalho.
Vou dar um exemplo. O GoEmotion é um dos maiores conjuntos de dados sobre expressão de emoções em texto e bastante usado na área de pesquisa. Desenvolvido pelo Google, os dados foram anotados via plataforma Mechanical Turk por pessoas da Índia que, apesar de apresentar fluência no inglês, não detinham conhecimentos sobre psicologia, neurociência, antropologia, entre outras, para anotar dados sobre emoções.
Eu trabalhei bastante com esse conjunto de dados em minhas pesquisas e hoje sabemos que ele apresenta problemas de qualidade. Que outros conjuntos de dados foram anotados sem os devidos cuidados?
E o interessante é que muitos anotadores estão começando a usar a própria IA para ajudar no trabalho de anotação, o que pode criar um círculo vicioso que não se sabe onde vai dar.
O trabalho de que a IA se apropria
ChatGPT e Midjourney são ferramentas que produzem resultados incríveis. Os textos são bem escritos e as imagens, bem elaboradas. Mas qual a origem desta qualidade?
Uma parte da resposta está na arquitetura e no modelo, mas a outra está nos dados usados no treinamento. Sem uma grande e diversa quantidade de dados, mesmo um modelo suficientemente avançado apresentaria resultados medíocres.
As duas ferramentas foram treinadas com conteúdos criados por pessoas que talvez não tenham consentido com o uso ou que nem saibam disso, dada a falta de transparência das empresas. Mas o fato é que essas IAs são tão boas porque se apoiam no trabalho delas.
Então ficam algumas questões: isso deve ser permitido? Deve haver algum tipo de compensação financeira para os criadores dos conteúdos originais?
Esse é um assunto que está em debate. Enquanto o Japão se posicionou dizendo que não há direito autoral para treinar IA, empresas como Adobe estão discutindo em como remunerar os criadores que tiveram seus conteúdos usados no treinamento de IAs.
O trabalho que a IA pode destruir
empre que uma tecnologia é disponibilizada, seus efeitos e consequências são imprevisíveis. Os impactos no mercado de trabalho seguem a mesma ideia. A história econômica nos mostra que uma nova tecnologia rompe com modelos estabelecidos, destrói postos de trabalho, mas, ao mesmo tempo, cria posições e profissões.
O torneiro mecânico que trabalhava em fábricas no ABC paulista foi substituído por um robô, mas essa transformação tecnológica criou postos de trabalhos para engenheiros de automação, roboticistas, cientistas da computação e outros.
Alguns pesquisadores argumentam que algo parecido deve acontecer com a IA. Apesar do susto, ela deverá criar mais postos de trabalhos do que os destruídos. Não estou convencido disso.
A IA atual é uma tecnologia cognitiva que não vai substituir tarefas braçais ou físicas, mas atividades que demandam cognição. E isso traz uma velocidade e magnitude de impacto que não é comparável com as tecnologias anteriores. Pensa comigo. Uma única IA bem treinada para atendimento de uma empresa pode automatizar uma grande parte de um call center em pouquíssimo tempo.
O que iremos fazer com esse povo recém-desempregado?
Haverá tempo e oportunidade para realocação?
Recentemente, o Goldman Sachs soltou um relatório que 300 milhões de postos de trabalhos serão impactados pela IA nos próximos anos. Esse fenômeno começaria nas economias mais desenvolvidas, como EUA e Europa, e atingiria principalmente posições de "colarinho branco", as atividades administrativas e de escritório.
O curioso é que o mesmo relatório diz que essas inovações aumentariam o PIB global em 7%. Ou seja, o cenário desenhado pelo Goldman Sachs é de uma concentração de renda ainda maior. E esta é uma das minhas maiores preocupações.
As IAs utilizadas comercialmente no mundo todo estão na mão de pouquíssimas organizações do Vale do Silício. Além de concentrar informações e poder, podem acumular de maneira automatizada o trabalho de milhares de pessoas que perderão seus trabalhos para um serviço vendido na nuvem.
*Professor na PUC-SP e Pesquisador no NIC.br. Doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, com PhD fellowship pela Université Paris- Sorbonne. MBA em Economia Internacional pela USP e Especialista em Neurociência. Foi pesquisador visitante no laboratório de Ciência Cognitiva da Queen Mary University of London. Tem pesquisas na intersecção entre ciência cognitiva, design e tecnologia
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