Opinião

Que bobagem, ô do divã! Psicanálise não é 'vaca sagrada' isenta de críticas

Em seu livro "Truth: A Guide to the Perplexed" ("Verdade: Um Guia para os Perplexos", em tradução livre), uma discussão crítica da questão do relativismo - a ideia de que todos os pontos de vista são válidos, todas as formas de produzir conhecimento se equivalem - o filósofo Simon Blackburn lança mão, seguidas vezes, da metáfora do mapa.

Um bom mapa, espera-se, corresponde ao território. Conhecidas as convenções usadas pelo cartógrafo, e suas intenções (se se trata de um mapa turístico, topográfico, econômico, rodoviário etc.) deve ser possível usar o mapa para estudar a área descrita e prever as características que vamos encontrar caso decidamos visitá-la. Se a visitarmos, torna-se possível conferir o mapa - verificar se a descrição que faz do terreno é fiel - e hierarquizar diferentes mapas de um mesmo tipo, dos melhores (mais fiéis) para os menos, chegando até os completamente falsos ou fantasiosos.

Claro, um mapa pode ser apreciado por outras razões que não sua fidelidade ao território - como os belíssimos mapas produzidos durante a época das Grandes Navegações na Europa, e que hoje são vistos como objetos de arte e de decoração - mas isso não muda o fato de que um mapa contendo erros ou imprecisões graves, se tratado como guia confiável, vai causar frustração ou, até mesmo, pôr vidas em perigo, não importa o quanto seja belo.

Essa metáfora cartográfica foi um dos princípios norteadores do projeto do livro "Que Bobagem!" As doze pseudociências tratadas ali têm em comum a característica de se oferecerem como mapas confiáveis para certos aspectos da realidade - seja o funcionamento da mente humana, no caso da psicanálise; as tramas do destino, no da astrologia; o caminho para a saúde, nas curas naturais; e assim por diante - mas que, quando confrontados com o território, mostram-se fatalmente inadequados, por razões expostas ao longo do livro e expandidas nas referências.

O fato de alguns desses mapas contarem com alto grau de prestígio no meio intelectual (psicanálise), na sociedade em geral (acupuntura), serem populares (astrologia), e outros terem sabor de sensacionalismo (discos voadores), serem esquemas comerciais (dietas da moda) ou parecerem meras excentricidades (antroposofia) não teve relevância no momento da seleção, guiada por nossa percepção do grau de enraizamento de cada um na cultura brasileira mais ampla, e em subculturas relevantes da era digital, como a das teorias de conspiração.

Natália Pasternak e Carlos Orsi
Natália Pasternak e Carlos Orsi Imagem: Divulgação

Talvez devêssemos ter previsto a perplexidade (quando não indignação) do fandom dos mapas de maior prestígio, ao se verem ao lado de outros menos cotados, no índice do livro. É de conhecimento público a reação intensa da comunidade psicanalítica, que no Brasil, especialmente, não está acostumada a ser questionada - nem mesmo dentro da academia. Se o brevíssimo recorte apresentado em "Que Bobagem!" for capaz de despertar a intelectualidade brasileira para a necessidade de parar de ignorar a densidade da crítica científica, histórica e filosófica à psicanálise - de Karl Jaspers e Karl Popper a Frank Cioffi e Adolf Grunbaum e Malcolm Mcmillan, entre tantos outros - teremos plantado uma semente muito importante. O "debate" da psicanálise nacional não é, ou não deveria ser, com Pasternak e Orsi, mas com eles.

Mas despertar o debate não se restringe à psicanálise, que ocupa apenas vinte páginas de um livro de mais de 300. "Que Bobagem!" traz doze grandes sistemas que ou se apresentam como ciência (acupuntura) ou, na prática, são tratados como se fossem em áreas importantes (exemplos são a astrologia, que penetra departamentos de Recursos Humanos e serviços de aconselhamento financeiro, e a antroposofia, que resiste em redutos importantes na saúde, sob a forma de medicina antroposófica, e na educação, com as escolas Waldorf).

Quantas pessoas usam homeopatia sem saber exatamente do que se trata? No livro, apresentamos ao leitor a pesquisa feita pelo Center for Inquiry, associação de promoção do ceticismo e pensamento crítico nos EUA, que entrevistou pessoas em farmácias por todo o país, enquanto estavam adquirindo preparados homeopáticos. A maior parte dos entrevistados acreditava estar comprando remédios "naturais ou de plantas". Quase ninguém sabia os princípios que norteiam a fabricação destes medicamentos, e quando foram devidamente informados, sentiram-se traídos e enganados. A pesquisa embasou ação judicial do CFI contra as grandes redes de farmácias nos EUA, como Walgreens, CVS e Wallmart, para que identificassem os produtos homeopáticos em prateleiras separadas dos remédios de verdade.

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O mesmo acontece com Medicina Tradicional Chinesa (MTC). Grande parte da população acredita tratar-se de arte milenar, comprovada cientificamente ou apoiada numa sabedoria destilada pelos séculos. Poucos sabem que o termo MTC foi cunhado por Mao Zedong quando prometeu levar saúde pública para toda a China. Por não ter os recursos disponíveis, o Grande Timoneiro optou por reunir práticas tradicionais e folclóricas dentro de um grande guarda-chuva que batizou de MTC, depois transformado pela máquina do Partido em ponto de orgulho nacionalista e produto de exportação.

No capítulo de curas naturais, o leitor é apresentado a um mercado perverso que vende estilo de vida e cobra uma devoção digna de seita religiosa de seus clientes. É um mercado que vende bem-estar e remédios desnecessários, construindo uma falsa equivalência entre uma inatingível saúde "perfeita" do corpo e iluminação espiritual.

Não pretendemos prescrever como as pessoas devem cuidar de sua saúde ou onde devem investir seu dinheiro. Uma pessoa pode ler "Que Bobagem!" e decidir que continua gostando de homeopatia, acupuntura, psicanálise. Mas não poderá dizer que não sabia do que se tratava. Acreditamos que todos têm direito à informação, e que nossa obrigação, como comunicadores de ciência, é fazer a informação correta circular.

Nosso objetivo é ajudar o leitor a construir para si mesmo uma bússola que ajude a navegar os mapas que encontra no dia-a-dia - que podem ser oferecidos de forma bem-intencionada por amigos e colegas, ofertados pela cultura do senso-comum ou empurrados goela abaixo em matérias pagas na mídia ou por esquemas de marketing digital. Se a navegação com o auxílio da bússola ficar estranha, é melhor dar um passo atrás e pensar no motivo.

Convidamos o público que se sinta intrigado pela inclusão desta ou daquela "vaca sagrada" no livro a refletir sobre o conteúdo apresentado, a buscar algumas das referências que indicamos e, claro, a refletir também sobre as críticas mais substanciais que recebemos - não há muito material para reflexão em ataques ad hominem - e as referências mobilizadas pelos críticos. O propósito fundamental de "Que Bobagem!", afinal, é permitir que o público tome decisões (e forme opiniões) de modo racional e bem-informado.

*Natalia Pasternak é presidente do Instituto Questão de Ciência, professora pesquisadora da Universidade de Columbia (EUA), escritora de ciência brasileira, autora de livros agraciada com o prêmio Jabuti e uma respeitada fonte de informações sobre saúde e ciência para jornalistas de todo o mundo. Durante a pandemia COVID-19, suas colunas em O Globo, contribuições para os mais importantes jornais do País, livros de divulgação científica, quadros na rádio CBN e aparições na TV trouxeram informações cruciais e que contribuíram para salvar as vidas de milhões de pessoas, principalmente no Brasil, mas também em todo o mundo. É microbiologista por formação, com doutorado em genética bacteriana pela Universidade de São Paulo.

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**Carlos Orsi é jornalista e escritor, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e fundador do Instituto Questão de Ciência. Jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, é autor das obras de divulgação científica Negacionismo & Desafios da Ciência, Livro dos Milagres, Pura Picaretagem. Livro da Astrologia e, em coautoria com Natalia Pasternak, Ciência no Cotidiano (vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Ciência) e Contra a Realidade. Foi repórter especial e colunista do Jornal da Unicamp, onde manteve a coluna "Telescópio"; repórter especial e colunista da revista Galileu, onde manteve a coluna "Olhar Cético", tratando de pseudociências e da análise de temas polêmicos sob uma ótica científica; e editor de Ciência, Saúde e Meio Ambiente do Portal Estadão.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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