Opinião

Efeito Bruxelas: o 'poder invisível' da Europa por trás do PL das Fake News

No livro "As ideias fora do lugar", o crítico literário Roberto Schwarz apresenta uma crítica aos romances de Machado de Assis (1839-1908), nos quais retratos de uma sociedade liberal inspirados em referências europeias não refletiam a realidade de um Brasil escravocrata. O argumento de Schwarz ilustra o mote deste artigo, que discute o "Efeito Bruxelas", a influência regulatória da União Europeia (UE) no Brasil e o debate em torno do PL 2630/2020, conhecido como "PL das Fake News".

Dando um passo atrás, torna-se necessário localizar o Projeto de Lei das Fake News como parte de uma onda global de revisão dos mecanismos de regulação das redes sociais. Com o avanço desses serviços como peças-chave na comunicação e sua importância para o debate de temas de interesse público, como os ciclos eleitorais, o paradigma começa a mudar.

Em 2014, época da aprovação do Marco Civil da Internet, a liberdade de expressão e inovação foram objetivos da regulação estatal, mas a euforia sobre os benefícios das redes e da web 2.0 eram a norma. Porém, em um contexto global de "techlash" (termo cunhado pela revista The Economist), alavancado após a eleição de Donald Trump (2016), observa-se o surgimento de propostas de regulação estatal mais rígidas, com os objetivos de promover a segurança online dos usuários e uma postura mais diligente das plataformas no combate a conteúdos ilegais e à circulação da desinformação.

A Lei de Serviços Digitais (DSA), aprovada pelo Parlamento Europeu no final de 2022 e em vigor desde agosto de 2023, é um exemplo dessa tendência regulatória. Em termos de conteúdo, o DSA traz medidas que ampliam direitos dos usuários, definem regras de transparência e incluem o conceito de gestão de riscos no uso de plataformas online. O DSA abrange todo o ecossistema de serviços online, mas impõe obrigações proporcionais ao tipo e tamanho do negócio. Serviços com mais de 45 milhões de usuários ativos na Europa são regulados pela Comissão Europeia, enquanto os demais serviços são regulados por uma autoridade independente nomeada por cada país membro.

Como parte do contexto de "techlash", o DSA e o Projeto das Fake News se conectam a partir de uma evidência textual.

O PL 2630/2020 tem três anos desde o início da sua relatoria no Senado e surge para combater a desinformação da covid-19. Em 2023, com a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP) e a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro, o tema voltou ao debate público na Câmara com sugestões do Executivo e sob a relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). Na versão de maio de 2023 (PRLP n.1), 25 menções ao DSA constam na justificativa do PL.

Apesar da tramitação acelerada em maio de 2023, a votação do PL foi retirada de pauta e não há indícios de retomada.

O Efeito Bruxelas

A influência regulatória da Europa é teorizada por Anu Bradford no livro "Brussels Effect", em que ela argumenta que a UE exerce um poder unilateral como agente regulador internacional.

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Esse efeito se manifesta de duas possíveis formas:

  • o efeito "de facto", em que empresas em conformidade com os padrões europeus exportam as regras para outros países;
  • ou por meio do efeito "de juri", que ocorre quando legisladores de outros países utilizam o padrão europeu para criar regras locais.

No campo digital, um estudo de caso do Efeito Bruxelas é a Lei Europeia de proteção de dados (GDPR), de 2016. A autora argumenta que, sob a perspectiva "de facto", a GDPR serviu como referência global para políticas de privacidade de empresas, como Apple e Meta. Do ponto de vista "de juri", ela argumenta que o regime europeu influenciou o conteúdo e acelerou a agenda de leis locais de proteção de dados pessoais, como a LGPD no Brasil.

O DSA e o Efeito Bruxelas no Brasil

Em minha tese de mestrado, investiguei a influência do regime europeu no debate em torno do PL das Fake News. Como método, fiz uma análise comparativa das leis e entrevistas em profundidade.

Os achados do estudo indicam um Efeito Bruxelas simbólico na discussão do Projeto de Lei no Brasil. Ou seja, a existência do regime europeu cria um argumento de autoridade e referência utilizado pelos que trabalhavam pela aprovação da lei.

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Contudo, a comparação normativa entre os textos sugere também um efeito limitado.

Regras de transparência para as redes sociais e o conceito de riscos sistêmicos são espelhados no DSA. No entanto, há divergência no escopo, que se limita a redes sociais com mais de 10 milhões de usuários. Também há diferença no regime de responsabilidade civil dos intermediários e no modelo de governança e supervisão, em que há indefinição sobre um possível órgão de supervisão.

Argumenta-se que esse efeito limitado é explicado, em parte, por uma adaptação a demandas locais e, em outra parte, por indefinições institucionais.

Exemplos destas demandas locais são a proposta de revisão do modelo de responsabilidade do artigo 19º do Marco Civil da Internet e a introdução de regras para aplicativos de mensagem como WhatsApp e Telegram.

Na raiz das indefinições, está o debate sobre a autoridade reguladora e seu eventual modelo de governança. Na publicação "Dilema da autoridade", especialistas do Instituto Vero & Data Privacy sugerem como caminhos preferenciais um modelo coordenado pela Ordem dos Advogados do Brasil ou a criação de uma agência reguladora similar à Agência Nacional de Dados Pessoais.

Por fim, sob uma perspectiva da iniciativa privada (as Big Techs alvo da regulação no Brasil), observa-se uma postura de espera quanto ao Efeito Bruxelas. Ou seja, entende-se que o processo de adequação ao DSA na Europa irá sinalizar se este será o modelo exportado para outros mercados, como foi a GDPR, ou se será uma regulação a ser evitada.

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O que podemos aprender com o Efeito Bruxelas?

Seja na possível retomada do ciclo de discussão do PL das Fake News ou na regulação da Lei de Inteligência Artificial, a Europa está na vanguarda de ambas as agendas ao construir marcos regulatórios robustos que influenciam o debate internacional no campo da economia digital. A região serve de laboratório para aplicação de uma regulação de serviços digitais com ênfase na proteção de direitos.

Compreender o Efeito Bruxelas e seu real impacto no Brasil nos leva a discutir os pontos positivos e negativos de utilizar o "modelo europeu" como solução ideal para problemas locais. Por um lado, a robustez do processo legislativo de Bruxelas pode fornecer argumentos técnicos e perspectivas que contribuem para antecipar e ampliar o debate local. No entanto, mesmo se tratando de temas digitais com natureza global, as regulamentações como o DSA foram desenhadas a partir de objetivos do mercado único europeu e não refletem o contexto social e regulatório do Brasil.

Com experiências participativas bem-sucedidas como o Marco Civil, o Brasil deve ter clareza dos seus objetivos, instituições e caminhos de convergência política antes de pegar atalhos aderindo a conceitos e modelos desenhados para as prioridades da UE.

Pois, se assim for, essas ideias estão fora de lugar.

*Thales Bueno é Mestre em Governança da Mídia e Comunicação pela London School of Economics (LSE) e Administrador Público (FGV-EAESP). Atua como consultor independente e pesquisa a influência regulatória da União Europeia em temas da economia digital.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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