Topo

Álvaro Machado Dias

Plano de Elon Musk de ligar cérebro e máquina pode ser pegadinha; entenda

Elon Musk apoia o Instituto para o Futuro da Humanidade, que promove pesquisas sobre os riscos existenciais apresentados pela IA - Jim Watson/AFP
Elon Musk apoia o Instituto para o Futuro da Humanidade, que promove pesquisas sobre os riscos existenciais apresentados pela IA Imagem: Jim Watson/AFP

15/09/2020 04h00

Entre todos os bilionários da cena da tecnologia nenhum tem a grandeza de Bill Gates. O pessoal da hive situa-o entre os maiores inventores da modernidade. Atrás de Thomas Edison e Nikola Tesla —o que faz todo sentido— mas também de Steve Jobs, o que me parece completamente equivocado.

Acredito que Gates seja muito mais importante para a definição do mundo em que vivemos, em todos os aspectos exceto marketing. Mas, verdade seja dita, essa é mais uma daquelas discussões que só servem para matar o tempo —ou estimular as pessoas a percorrerem quantidades massivas de anúncios em busca de uma verdade que não existe.

Uma outra discussão, essa sim inspiradora, é sobre o interesse em retribuir. Gates tornou-se grandioso pelo seu plano sênior de carreira (enquanto CEO da Microsoft ele teve atuações bem menos memoráveis, vide seu esforço obsessivo para proibir os navegadores da concorrência, no Windows, durante os anos 1990). Nas últimas décadas, ele vêm colocando energia crescente para tentar ajudar a mitigar alguns dos mais insidiosos problemas socioeconômicos e ambientais da era atual. O contraste com Jobs, bem como com Jeff Bezos, Larry Page, Larry Ellison, a média dos bilionários da cena tecnológica e os super-ricos do Brasil, não poderia ser maior. Tudo isso permite dizer: quando Gates fala que alguma coisa é séria para a humanidade, é porque ela tende a ser mesmo, vide a pandemia.

Acredito que o princípio se aplique ao bate-papo ao vivo (Q&A) que o bilionário americano teve com usuários anônimos do fórum Reddit em 2015, ocasião em que declarou acreditar que a inteligência artificial traz risco existencial para a humanidade. Nas suas palavras: "estou no campo dos que se preocupam com a superinteligência. Primeiro, máquinas vão fazer muitos serviços para a gente e não serão superinteligentes. Isso pode ser positivo, contanto que gerenciemos bem a situação. No entanto, algumas décadas à frente, este tipo de inteligência ficará forte o suficiente para se tornar um problema. Eu concordo com Elon Musk e alguns outros nisso e não entendo porque algumas pessoas não estão preocupadas". Acesse aqui para ler o bate-papo inteiro.

Minha visão diverge no sentido em que não acho que algo que possa ser identificado como "a superinteligência de máquina" servirá de pivô a esta transformação. O cenário tecnológico dos últimos anos sugere que manifestações na linha que Gates preconiza deverão ser geradas pela combinação de tecnologias que, isoladamente, permanecerão bem aquém de tal designação. Sempre vale lembrar que é deste modo que funciona o cérebro: um monte de células relativamente estereotipadas, que ao se coordenarem dão origem a isso tudo que vemos por aí.

É interessante notar o quanto a crença de que a singularidade tecnológica bateu à porta vem se popularizando, a despeito do fato das previsões mais otimistas situarem isso nas décadas de 2040-2050. Em contraste com tal empolgação, é fácil notar que ainda estamos a muitos anos de distância de tecnologias capazes de, por exemplo, escrever como Guimarães Rosa, uma vez que tal exige a formação de teses sobre como a vida se organiza regionalmente e como tal pode ser revelado por meio da linguagem, tendo como pano de fundo temáticas universais como o amor e os segredos inconfessáveis. O que temos, de maneira cada vez mais afiada, é a capacidade de imitar e mesmo plagiar o trabalho criativo das pessoas - coisa bem diferente. "Quando um autor humano comete plágio, dizemos que é coisa séria. Mas, quando as pessoas se juntam e escrevem um programa de computador que comete plágio, então dizemos que é progresso". Esse também é o caso dos deep fakes, simulacros que colonizam algo que alguém primeiramente gravou e publicou.

Para além desta diferença conceitual de pequena monta, acredito que não estejamos falando de uma ameaça indiferenciada, em termos geopolíticos, mas de um novo tomo na biblioteca da desigualdade, com características de fundo, como as diferenças locais de mentalidade e a importância atribuída ao acesso universal à educação de boa qualidade, as quais já eram conhecidas quando Adam Smith publicou "A Riqueza das Nações", mas que até hoje parecem ousadas demais para serem universalizadas, na linha do que, justamente, espera-se da superinteligência.

De qualquer maneira, Gates não está sozinho em sua abordagem, digamos, mais primeiro-mundista dos desafios que a inteligência artificial irá nos trazer. Ele seguiu em uma linha que pode ser traçada até Alan Turing —que, em 1951, publicou o primeiro artigo importante sobre o assunto— e que inclui gente do calibre de Stephen Hawking.

Inspirados por essa discussão, um grupo de cientistas, filósofos e empresários de tecnologia lançou o Instituto para o Futuro da Humanidade (2014), uma iniciativa sem fins lucrativos, que promove pesquisas sobre os riscos existenciais apresentados pela inteligência artificial e tecnologias associadas, bem como as possíveis ações de mitigação de risco a serem tomadas.

Robo inteligencia artificial - Peter Pieras/ Pixabay - Peter Pieras/ Pixabay
Imagem: Peter Pieras/ Pixabay

Uma das pontas de lança é Elon Musk, cuja notoriedade em parte tem a ver com o fato de puxar o bonde do carro autônomo que, justamente, vai eliminar montanhas de empregos - além, é claro, dos processadores de linguagem natural da Open AI, como o GPT-3. À primeira vista, parece contraditório, mas uma visão um pouco mais cuidadosa da coisa toda revela que não: faz todo o sentido Musk apoiar um instituto que persegue uma blindagem contra os riscos da existência da inteligência artificial geral, precisamente porque pobreza e desigualdade —os temas caros à Gates— não ocupam lugar central nesta cartela de problemas.

Aí está a pegadinha da coisa toda e o porquê de receber doações de vários outros empresários que, como Musk, perseguem obsessivamente a substituição do trabalho humano pela máquina. Eles sabem que, de uma hora para outra, a maré pode virar, atrapalhando seus negócios, especialmente se envolver protestos fortes o suficiente para mobilizar o congresso americano a agir, como aconteceu recentemente, em relação às câmeras de segurança. Melhor já ir dando uma grana para o problema da metade seguinte do século e posar de bonzinho nesta metade aqui.

À propósito, um esclarecimento: também sou entusiasta do carro autônomo, computação neuromórfica, processadores de linguagem natural (NLP) e outras invenções recentes. Do mais, não acho que devamos tentar barrar o progresso.

Sei que os esforços que fizemos ao longo destes últimos duzentos anos para aumentar a eficiência dos mercados globais tornam tentativas deste tipo infrutíferas, bem como tenho clareza que todo avanço tecnológico dá origem a uma série de novas profissões e oportunidades para que a maioria aproveite mais a vida, o que no longo prazo tende a se mostrar mais positivo do que negativo, a despeito de representar a miséria de outros tantos. Se você quer entender melhor isso, leia "O novo iluminismo ", de Steven Pinker.

Minha única questão é que as ações que importam aqui e agora —bem como pelos próximos 10, 20 anos— são as que se dirigem aos pobres: pessoas e países. O Instituto para o Futuro da Humanidade é a própria expressão da mentalidade dos futuristas que povoam nossas representações dessa parte do hoje que chamamos de amanhã (para os iniciados: das inovações com alto NPS). Pobreza e desigualdade, especialmente quando se manifestam fora dos Estados Unidos, quase nunca cabem no roteiro.

Porém Elon Musk é um capítulo à parte. Surfando na onda do medo causado pela ameaça existencial da superinteligência, que daqui a uns cinquenta anos vai inventar o próximo Diadorim, ele saiu com essa: já que não podemos vencê-la, o melhor a fazer é juntarmo-nos a ela —literalmente, neurônio com silício, conforme descrevi em primeira mão para vocês em abril de 2019.

Engana-se quem acha que era mero devaneio. A consequência "natural" do argumento foi a criação de uma nova empresa, a Neuralink, que se propõe a desenvolver implantes neurológicos capazes de cumprir o papel de ponte entre o mundo da tecnologia e o da seleção natural.

No último dia 28, a empresa fez sua primeira apresentação pública de resultados. Conforme o TILT reportou com precisão, foi um fiasco. Hoje, eu gostaria de convidar vocês a mergulharem no fiasco, para compreender um pouco melhor a lógica do futurismo neurocomputacional, do ponto de vista de seu expoente mais admirado.

Cérebro e circuito - Seanbatty/ Pixabay - Seanbatty/ Pixabay
Imagem: Seanbatty/ Pixabay

Perfurando o cérebro com a moral do Eufrasino

O "Livro de Yale de Citações" é o mais sério e completo compêndio de falas autorais existentes. Se um dia você quiser saber quais as são as 4 ou 5 coisas que Einstein realmente disse, dentre as centenas atribuídas a ele, olhe lá. Conforme lê-se ali, o provérbio "se não pode vencê-los, junte-se a eles" apareceu primeiramente nas páginas da revista Atlantic Monthly (1932), e foi elaborado pelo senador americano James Watson.

Na minha infância, foi introduzido pelo Eufrasino que, após tentar de todas as formas destruir o forte defendido pelo Pernalonga, decidiu se juntar ao mesmo. O tema de fundo é a batalha de Bunker Hill (1775), central para a revolução americana. Se der, assista.

Elon Musk decidiu aplicar o "princípio de Eufrasino" —ou dos britânicos, como sugere a Looney Tunes para a diversão da galera— à espécie humana, este império decadente. A ideia de fundo é que, se não formos pragmáticos, teremos que nos curvar à superinteligência. Aceita que dói menos.

A máquina superinteligente seria como uma espécie nova —tipo um microorganismo cultivado por gente maligna, longe de nossos olhos— mais ou menos como num daqueles episódios antigos da Sessão da Tarde, em que cientistas inescrupulosos liberam um vírus na atmosfera para provocar caos e alterar o jogo de poder internacional.

Como revelado pela borra no fundo do copo de Nescau, não há nada a fazer neste caso exceto mergulhar nas entranhas do perigo para tentar redirecionar seu poder destrutivo, usando a tática da arminha de raio laser contra o espelho, ou a do revolver de cano entortado, como demonstrou o Pernalonga.

Para isso, é preciso um herói. Alguém com a coragem de apontar para a ameaça e dizer: eu assumo essa bronca em nome de todos. Eu admito que estamos sob forte risco existencial e aceito o desafio de salvar a humanidade. Eu sou, enfim, o líder de todos nós!

Tá aí. Sem que pedíssemos um líder, ou sequer imaginássemos que, fora das matinês, o verdadeiro risco existencial fossem os robôs capazes de pensar por si sós —e não simplesmente os robôs que dão contornos a nossa commoditização produtiva— cá estamos nós à espera de instruções sobre como e quando devemos colocar o saca-rolhas no cocuruto e começar a girar. Brilhante é pouco.

Elon Musk segura implante cerebral da Neuralink - Reprodução/YouTube - Reprodução/YouTube
Elon Musk segura implante cerebral da Neuralink
Imagem: Reprodução/YouTube

O lado neurológico

A área em que a Neuralink atua, a das interfaces cérebro-máquina, é de grande importância para a humanidade. Ela vem permitindo que pessoas com diferentes tipos de paralisia readquiram seus movimentos. Após anos de avanços tímidos, a coisa literalmente começou a andar.

Quando vista por este ângulo, a demonstração merece aplausos. As cobaias (porcos) foram implantadas com dispositivos de inserção relativamente descomplicada, os quais permitem prever, com acurácia razoável, os movimentos do animal. Isto não é simples de se conseguir, até porque as áreas de planejamento motor utilizam diferentes padrões neurológicos para criar os chamados mapas motores, que "rascunham" os movimentos que serão feitos a seguir.

Por outro lado, tampouco representa uma inovação radical. Muitos laboratórios de neurociências já fizeram demonstrações equivalentes, além de outras, que dispensam a necessidade de furar a cabeça, o que ajuda bastante no quesito longevidade. Aqui vai uma revisão de estudos, com vários exemplos; aqui, a chamada para um ensaio clínico envolvendo um implante cerebral instalado por dentro do corpo; aqui, previsão de movimento e fala, pela leitura de ondas cerebrais com eletrodos sobre o escalpo (EEG).

Com tanto chão para correr e ajudar quem precisa, a porca torce o rabo na medida em que Musk alimenta expectativas que não têm na reabilitação motora seu ponto mais alto, mas que apontam em direção às ditas funções cognitivas superiores (pensamentos e sentimentos). A mensagem absorvida por boa parte dos milhões de fãs de Musk é que a Neuralink vai lançar uma linha de produtos relevante para "toda a humanidade", a qual será composta por dispositivos que irão nos permitir interagir com pensamentos específicos de fora, enriquecendo-os através de uploads e outros recursos. Tá aí o superpoder adquirido ao se passar de nível, neste "jogo da vida", tão filosófico quanto empresarial.

Mas, afinal, quem disse que pensamentos e sentimentos se organizam como o comportamento motor? Ninguém em sã consciência, arrisco dizer. As funções cognitivas superiores recebem este nome porque realmente têm algo de especial, que não se reduz ao mapeamento do corpo e do ambiente. Tal condição é atingida a partir do envolvimento de todo o córtex pré-frontal, além de áreas que processam memórias de longo prazo e afetos, as quais estão afundadas sob esta camada atingida pelos eletrodos que saem dos implantes da Neuralink.

É bastante claro que a invenção apresentada precisaria recobrir vastas áreas do córtex e de estruturas subcorticais para poder cumprir seu papel com excelência - isso, é claro, uma vez que conseguíssemos decodificar como a chamada linguagem do pensamento converte-se em experiência mental, coisa que vem sendo discutida por dez entre dez cientistas cognitivos, desde que o campo surgiu. Se você quiser conhecer um pouco dessa discussão, leia este artigo.

Sei que ficou claro, mas, não custa enfatizar que, do ponto de vista da tecnologia atual, estaríamos falando na multiplicação dos implantes de onde saem os eletrodos que tocam o córtex, além de estratégias alternativas para fazer os mesmos chegarem ao sistema límbico de quem deseja usufruir da invenção, sem ganhar uma lesão. Isso sim é jogada de risco.

Para escrever pela primeira vez sobre os planos de Musk e companhia, troquei uma ideia com Eric Kandel, prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 2000, que manifestou sua descrença na capacidade de realizar a façanha que de fato mantém a Neuralink no palco. Arrisco dizer que não deve ter mudado de opinião nestes 17 meses.

O que gera dúvidas é o porquê de Musk ter adentrado a narrativa do sujeito que salva a humanidade dos robôs superinteligentes por esse caminho tão radical. Não seria melhor ir pela linha da construção de uma ética ou, para dar uma pitada de grandiloquência, de uma constituição robótica, sob a qual se unissem governos e fabricantes? Em paralelo, poderia ter na Neuralink um braço de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias assistivas (voltadas à reabilitação).

Não, jamais. A grande questão é que toda alternativa minimamente viável para se contrapor ao avanço da superinteligência é bem menos divertida. É aí que reside a sua missão: acima de qualquer chance de sucesso clínico, a Neuralink existe para brilhar no domínio do imaginário.

Ela é a ponta que amarra a colonização de outros planetas, numa narrativa sem escalas.

Ela é a versão de colecionador dos túneis subterrâneos que Musk idealiza para o seu hyperloop (cápsulas de passageiros de alta velocidade).

Ela é, acima de tudo, o palco mais íntimo para aventuras que Musk interpreta como ninguém —e que nos fazem lembrar que, segundo o mapa-múndi disponível lá na banca de jornal, Vale do Silício e Hollywood não passam de uma coisa só.