Promessa da publicidade digital segmentada pode não ser isso tudo que dizem
GPT-3 (OpenAI), prótese da Neuralink, Apple One, vacinas de RNA. Entre tantos lançamentos, fajutos ou verdadeiros, coube a "O Dilema das Redes" (Netflix, 2020) o título de "trending topic" da tecnologia, entre os CEOs brasileiros e, arrisco dizer, do mundo todo, até aqui.
A razão para tanto é simples: o filme traz o depoimento de gente que trabalhou no desenvolvimento de diversas tecnologias digitais "viciantes" e dá livre vazão ao exagero, o que as pessoas de bom coração (bem como os cardíacos) adoram.
Que a ideia de que o vício em redes sociais é como o de cocaína, pois ambos ativam o sistema dopaminérgico no cérebro, é uma forçação de barra, não tenho dúvida —afinal, a expectativa de comer um pedaço de chocolate faz isso, bem como a de receber determinada ligação telefônica.
Caberia demonstrar que essa relação entre expectativa de curtidas e atividade no "sistema de recompensas" (eis o sentido da tal ativação dopaminérgica) é particularmente forte no contexto digital, o que permanece em aberto.
Muita gente flagrou o sensacionalismo e escreveu a respeito. Agora, se críticos sociais das mais diferentes matizes conseguem mostrar que essa ideia de manipulação extrema é equivocada, por que raios as próprias empresas de tecnologia não vêm a público e dizem: "olha gente, não é bem assim; não dá para confundir internautas com os cachorros que Ivan Pavlov treinava para salivar"? Eis a questão sobre a qual gostaria que pensássemos a respeito.
É bom que a manipulação seja superestimada
Comecemos pela solução a tal questão. O que é fundamental perceber é que a manipulação de que "O Dilema das Redes" trata é colocada em prática pelo mesmo conjunto de ferramentas que faz a "mágica" da propaganda customizada.
Dizer que as coisas não funcionam com o simplismo esquemático de que trata o filme — o que seria o mesmo de, por exemplo, rechaçar a tese de que a combinação de Cambridge Analytica com propaganda russa explica a eleição do Trump— significa assumir que o papo todo em torno da capacidade de entregar "o que interessa para quem interessa" precisa ser revisto.
Essa mística de fonte de todo o mal que o Facebook vem adquirindo (no que é secundado pelo Google e a Amazon) tornou-se central para o seu modelo de negócio. Respeitadas as exceções, a lógica é: "se essa rede, navegador ou marketplace de fato é capaz de fazer a Inglaterra abandonar a União Europeia, ou crianças famintas da Micronésia comprarem pirulitos azulados de arsênico, melhor a gente despejar dinheiro logo —e com mais ímpeto— que a concorrência".
Pois a bola da vez é o livro de Tim Hwang "Subprime Attention Crisis", disponível no Kindle desde o dia 13 de outubro. Apesar de não ter uma produção intelectual consolidada, nem ter feito qualquer coisa muito extraordinária no mundo da inovação, Hwang vem ganhando destaque no debate sobre consumo e tecnologia.
Isto porque é autor de uma tese no mínimo provocadora: a de que os anúncios customizados estão criando uma bolha especulativa que vai terminar numa bancarrota parecida com a de 2008, quando empresas "grandes demais para quebrarem" foram para o brejo, junto com milhões de pessoas, ao redor do mundo. Complexo? Eu explico.
Comecemos com uma rápida digressão histórica para contextualizar o que está em discussão.
A publicidade tem mais de 4.000 anos de idade, ao passo que o modelo de negócio em que empresas custeiam publicações de interesse da audiência por meio de anúncios é da primeira metade do século 19, período marcado pela rápida expansão na distribuição dos jornais.
Ao passo que as primeiras agências surgiram naquela época para negociar estes espaços publicitários (pense em classificados), a ideia de "mensagem publicitária", concebida e lapidada por profissionais especializados, é um fenômeno típico do século 20, que foi impulsionado pela televisão, a qual segue tendo papel hegemônico.
Nos primórdios da internet, as redes existentes não permitiam a divulgação de produtos e serviços. Isso explica o porquê da propaganda digital ter aparecido na forma de emails, ou seja, spam —que parece juntar as iniciais de termos longos e chatos, quando na verdade é uma abreviação de "spiced ham", um tipo de presunto enlatado da primeira metade do século passado, que todo mundo achava muito ruim. Isso foi durante a década de 1970.
Foram necessários quase 20 anos para que a lógica da publicidade de fato adentrasse a internet, o que se deu por meio de um formato típico da era dos classificados: o banner, que se tornou ubíquo.
É importante ter essa história em mente porque ela nos lembra que a internet revolucionou o consumo através de recursos alheios ao branding e outras noções criadas para reforçar o poder das marcas, no universo offline.
Isto não nega a existência de estratégias de posicionamento sofisticadas e branding no universo digital. Pelo contrário, basta considerar o caso de "The Hire", com Ang Lee, Wong Kar-Wai, Guy Ritchie e Alejandro González Iñárritu na direção, além de Clive Owen, Madonna e companhia limitada na outra ponta da câmera, para entender que a BMW não estava de brincadeira quando propôs essa série digital de conteúdo de marca, no começo deste século.
A internet oferece recursos muito mais flexíveis que a TV e a mídia impressa para quem quer investir em ter um posicionamento diferenciado e isso vem sendo amplamente explorado por algumas das principais marcas do planeta, há bastante tempo.
A única questão é que o modelo típico dos classificados é muito mais prevalente, mobiliza muito mais capital e ocupa lugar central nos negócios dos gigantes de tecnologia, que hoje conduzem a faixa do "grandes demais para quebrarem".
Enquanto na publicidade clássica fala-se muito na identificação dos "territórios de marca", isto é, na circunscrição dos entusiastas, a partir de características estilísticas e de personalidade que podem ser usadas para a ampliação de tal base, no universo digital fala-se mais na inferência da propensão ao consumo, associada à apresentação de estímulos capazes de catalisar o comportamento de compras diretamente. Menos inspiração, mais ação.
Três recursos principais dão o tom para as tentativas de induzir ao consumo imediato no universo digital:
- Mensagens publicitárias que aparecem para as pessoas que estão procurando um produto (por exemplo, tênis de cano alto) ou termo específico (p.ex., basquete);
- Mensagens que têm a ver com as páginas em que aparecem (p.ex., página sobre esportes carrega ofertas de tênis de cano alto)
- E mensagens que ficam tentando fazer a repescagem de quem quase comprou, mas desistiu.
Uma variação do primeiro tipo, sem banners e similares, ocorre quando o navegador ou rede social facilita que uma página seja encontrada em função da palavra-chave utilizada na busca. É ela que mobiliza a indústria do Adwords, que o Google inventou, além de diversas outras (SEO, SEM, etc.).
A eficácia do primeiro tipo depende de "behavioral targeting", que é a segmentação das pessoas a partir do seu comportamento, fazendo com que cada um veja os anúncios que lhe são mais relevantes.
No mundo do behavioral targeting, tudo gira em torno da capacidade de inferir preferências e propensão, enquanto o "alvo" pula de página em página.
Do ponto de vista da assertividade, a questão é conseguir identificar quem acaba de pousar numa página, enquanto do ponto de vista de negócios, cabe exibir a propaganda correta e, quem sabe, gerar clique e compra.
À primeira vista, parece uma relação fundamentalmente determinada pelo encontro de internautas com os produtores de conteúdo, que os atraíram em primeiro lugar. É aí que está o engano.
De acordo com um estudo da consultoria PwC, discutido em artigo recente do Financial Times, metade do dinheiro de toda essa indústria vai para os intermediários; de acordo com outro estudo, dessa vez da Harvard Business School, é bem mais.
Ou seja, para cada milhão colocado pela P&G ou Unilever, menos de R$ 500 mil vão parar nas mãos de quem criou o conteúdo que motivou o internauta a visualizar o anúncio. Não parece grave? Então pense que isso se aplica a cada microempreendedor do planeta —e que o mercado como um todo vale mais de R$ 700 bilhões.
Essa taxa cavalar de intermediação não ocorre apenas porque Google, Facebook e companhia limitada trabalham com margens atraentes (cerca de 16%, de acordo com a PwC), mas porque há lascas sendo tiradas por intermediários, que a maioria dos anunciantes sequer imagina que existam.
Em geral, são empresas que operam como brokers, comprando e vendendo espaço nas páginas alheias, por meio de pacotes. Tal produto é frequentemente reempacotado por outrem, antes de ser vendido para os anunciantes, criando um mercado que tem semelhanças com o de derivativos financeiros, onde os preços são determinados pela relação indireta com o ativo gerador de valor —no caso, o espaço na página de alguém, que sequer o vendeu para quem está repassando ao anunciante.
Mais do que simplesmente encarecer o tal ativo gerador de valor, a prática diminui a transparência. No meio de tanta complexidade, as empresas não conseguem ter clareza de onde seus anúncios foram parar, nem de quem os viu, o que o estudo da PwC corrobora: de 267 milhões de anúncios online, só 31 milhões puderam ter seu percurso mapeado de ponta a ponta.
Mas, afinal, qual a vantagem de deixar os anunciantes no escuro? Não seria melhor jogar o jogo de maneira mais cooperativa? Depende.
E se, na verdade, toda essa mística em torno da capacidade de identificar as pessoas, saber suas preferências, humor e tudo mais não passar de ilusão? E se, afinal, rede social não viciar como cocaína, nem os consumidores forem teleguiáveis?
Um dos artigos que Hwang cita em seu livro traz dados de um experimento recente, em behavioral targeting, conduzido na Austrália. Segundo os autores "a acurácia média na identificação de homens de 25-54 anos é 24,4%. Dado que a distribuição natural dos atributos é de 26.5%, o desempenho médio das ferramentas, de acordo com a nossa amostra é pior que o acaso" (Neumann, Tucker e Whitfield, 2019).
Corroborando o desconhecimento, um analista do Pivotal Research Group criou um anúncio no Facebook que, de acordo com a ferramenta, poderia alcançar 41 milhões de jovens de 18-24 anos, nos Estados Unidos. Detalhe: o país só tem 31 milhões de pessoas nessa faixa etária (para detalhes desta história, de 2017, acesse aqui).
Engana-se quem vê nisso pura má-fé. A realidade é que é muito difícil fazer esse tipo de inferência. Além de existirem limitações técnicas nada desprezíveis, cada vez mais gente se nega a aceitar cookies, que são fundamentais para o bom monitoramento.
Para piorar, empresas como a Apple, que têm pouco a ganhar com esse tipo de modelo, estão se mexendo para aumentar o controle dos usuários sobre seus dados de navegação. A partir do começo do ano que vem, a empresa de Cupertino vai exigir que anunciantes obtenham autorização de seus clientes (dotados de aparelhos com iOS14), para coletar dados pessoais.
A tese de Hwang é que esse tipo de coisa limita a capacidade de manipular o comportamento humano no universo digital. Simultaneamente, o valor cobrado dos anunciantes só cresce, em função da especulação e do fortalecimento da mística que a sustenta. Em breve, o descolamento vai se tornar grande demais, o mercado vai derreter. E o capitalismo nunca mais será o mesmo.
Para fechar
A ideia de que a relação entre preço e eficácia dos anúncios online tenha gerado uma bolha, com características análogas àquela que se formou em 2007-2008, convida-nos a reavaliar esse dogma supremo do capitalismo digital, que é a imagem do sujeito esvaziado de vontade própria.
O comportamento digital possui uma multiplicidade de efeitos que não se encaixa em simplificações e estereótipos. Por exemplo, as avaliações online de produtos vêm se tornando cada vez mais relevantes. Isso, entretanto, não se dá de maneira indiferenciada. Estas avaliações são bem mais importantes na decisão entre geladeiras do que entre livros, uma vez que se pressupõe que a comparação entre aquelas seja mais objetiva do que a comparação entre estes últimos. Não estou dizendo que isso seja facilmente explicável, mas sim que as pessoas entendem tal coisa na prática.
O mesmo princípio deve ser aplicado ao argumento de Hwang, inclinado a jogar ketchup na discussão sobre um eventual esfriamento da relação entre anunciantes e o trio Google/Facebook/Amazon.
Essas empresas entendem o risco e, justamente por isso, investem massivamente na diversificação de seus negócios, o que afasta o prognóstico de quebradeira.
Do mais, a sinuca aludida possui poucos paralelos com aquela em que se meteram os bancos, em 2007-2008: apesar das semelhanças aparentes, os derivativos que serviram de pivô à crise eram compostos por dívidas que jamais poderiam ser pagas, pelo simples fato de ultrapassarem em muitas vezes o valor das hipotecas que lhes serviam de lastro.
A quebradeira não se deu simplesmente porque o mercado viu a cilada e parou de injetar dinheiro, mas porque o produto em questão era uma bola monumental de dívidas.
No mundo da propaganda, pelo menos essa parte é mais simples. E há mais chance de que o bom senso prevaleça. A gente, que gosta de navegar na internet sem ser tão incomodado, agradece!
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