Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Buscamos líderes, mas liderança é característica que não existe de verdade
Um dos temas mais quentes da tão sonhada pós-pandemia é liderança. A pergunta "qual é o perfil de liderança que irá emergir quando isto acabar?" dá o tom de 10 entre 10 sessões de networking & tortura do Clubhouse.
O problema desse movimento atual é que não há sinal de consenso sobre as características que levam as pessoas a ascender por mérito nas hierarquias de status. Será que isso seria porque liderança não existe? O artigo de hoje discute isso.
Em janeiro de 2020, a escola de negócios do MIT, conhecida como Sloan, em parceira com a empresa de TI Cognizant, publicou um estudo sobre o futuro da liderança na era digital. Os envolvidos no projeto entrevistaram 4394 líderes globais, de 120 países, o que fez deste um dos mais completos e precisos estudos do tipo de muito tempo.
Aqui vão algumas conclusões que merecem consideração:
- Só 12% dos respondentes acreditam que seus próprios líderes têm o mindset adequado para liderá-los.
- Só 10% dos líderes acreditam que as suas organizações têm líderes com as competências certas para prosperar nesta era de digitalização total.
- 71% sentem-se plenamente preparados para liderar seus pares, aqui e agora.
A conclusão mais óbvia é de que o problema é certamente os outros, quando o assunto é liderança. Esta constatação serve de termômetro dos excessos de autoconfiança e, em muitos casos, da arrogância pura e simples, que circula no tal andar de cima.
Mas isso não é tudo. Na realidade, isso não é nada perto daquilo que podemos ler nas entrelinhas desta pesquisa, e de tantas outras, sobre a essência da liderança: somos todos muito bons em identificar as características que se sobressaem e as que parecem deficitárias nos outros —e isso parece ainda mais fácil quando se trata das pessoas que ocupam posições de destaque.
Porém, ninguém parece apto a identificar aquela coisa, cuja presença faz com que as pessoas subam nas hierarquias de status e lá a se mantenham. Por que será?
A minha tese é tão simples quanto radical. Isto ocorre pura e simplesmente porque tal coisa não está lá para ser encontrada. Liderança, em outras palavras, não existe.
Veja, se liderança fosse uma espécie de propriedade ou competência, iria se manter idêntica nos diferentes contextos, tais como dimensões da personalidade, tipo abertura à experiência ou neuroticismo. É aí que está o problema.
Pode se dizer que há um denominador comum sob os feitos de Genghis Khan, Alexandre o Grande e Júlio César, como a obstinação cega e a falta de pudor para atropelar todos aqueles que entrarem no seu caminho. Narcisismo, maquiavelismo e psicopatia. Não é mesmo?
Mas como acomodar Gandhi nessa história? Como explicar o fato de que o indiano pacifista figura em primeiro lugar em diversas listas de líderes mais influentes do século 20? Qual é, afinal, o denominador comum?
A resposta é óbvia: nenhum.
A liderança enquanto unidade cognitivo-comportamental é uma das grandes falácias da modernidade. Não vou dizer que seu papel seja o de manipular os que almejam liderar. Mas certamente é a solução fácil para quem tenta fazer isso se espelhando nos outros.
O fato de termos dezenas de modelos de liderança é evidência complementar do que estou falando: cada um deles representa uma maneira de emular o perfil de alguém que viveu e liderou bandos, times ou países.
Mas e se esse papel justamente refletiu a inexorabilidade de tudo o que esta pessoa viveu? E se o seu magnetismo for inteiramente dependente da sua singularidade, do seu caráter autêntico? Não digo do uso da palavra autenticidade pelo mercado —no qual significa busca—, mas da forma que se manifesta à revelia de tentativas? Eu acho isso.
É mais ou menos como se dá em relação à criatividade. É fácil identificar sujeitos criativos. Mozart, Einstein, Seinfeld. Mas ao tentarmos encapsular o aroma dessa manifestação comum, somos forçados a admitir que aquilo que os une é o fato de serem criativos de maneiras absolutamente distintas. É a habilidade de desafiarem tudo o que se entendia por criatividade até ali e de permanecerem sem paralelos.
Há pessoas mais criativas e menos criativas, mas isso não permite reduzir a criatividade a uma competência, já que criação é simplesmente a passagem do nada para alguma coisa, a um conjunto de competências.
O caso da liderança é parecido. Ora as pessoas mobilizam as massas e fazem coisas incríveis em função de alguns princípios; ora os fazem em função de outros. Assim como têm situações em que as pessoas são lançadas às chamadas posições de liderança, em que tudo o que fazem e deixam de fazer é visto sob essa ótica.
Com o golpe da maioridade, Pedro 2° tornou-se imperador aos 14 anos. Deste momento em diante, suas decisões tornaram-se a própria expressão da sua liderança. É lógico que isso não nos impede de julgar se foi um líder melhor ou pior, apenas nos lembra que não faz o menor sentido tratar a liderança como se fosse apenas uma questão de mérito ou competência.
Falando assim parece óbvio, né? A questão é que há uma espécie de manual invisível de liderança sendo compartilhado na vasta maioria das empresas. Ao longo do tempo, este foi adquirindo crescente poder de síntese, até culminar na definição que se tornou canônica: o líder é um Alfa.
Essa ideia tem profundo significado. Alfa é o animal que lidera o bando; em geral, é um macho, cuja exposição fetal à testosterona circundante garantiu-lhe níveis elevados de agressividade e abundantes traços sexuais secundários, voz grave, olhar de predador.
É, enfim, a representação zoológica de que disputas e sucessos devem ser compreendidos por prismas evolucionários. Hummm, seria um ponto de vista divertido, não fosse tão explicitamente sexista. Mas, será que funciona, pelo menos entre os homens?
Consideremos a voz. É notável como executivos vão baixando o tom médio da voz conforme sobem na escala corporativa, mais ou menos como um leão que amadurece. Hoje é raro encontrar CEO, CFO ou CTO que não pareça formado nessa escola de barítonos intimidantes.
Agora, olha que engraçado, Steve Jobs, o Alfa de todos os Alfas, tinha voz fina. Não só a voz, ele não tinha nenhum desses traços secundários saltando de seu peito peludo, nem olhar de predador.
É claro que podemos considerar que seja um outlier, ou que se adeque melhor a uma outra forma de liderança, junto com Gandhi e Madre Teresa de Calcutá, só para ficarmos entre os top of mind. Estes, afinal, são líderes carismáticos, cuja força vêm do fato de serem gente como a gente. Não é?
Espera, Steve Jobs? O cara tido como o mais insuportavelmente genioso a pisar a Califórnia, desde que esta se despediu do México? Difícil comprar essa.
A gente pode ir assim, indefinidamente, encontrando aqui e ali modelos de liderança que se encaixam para uns, mas não para outros, mais ou menos como quando procurávamos agrupar nuvens temáticas, no banco detrás do carro. Para isso existe até uma estratégia retórica que é dizer que o conceito de liderança é como o de persona. Para uns são 3, para outros são 4, alguns falam em 7 e outros preferem não fechar essa conta. Mas todos concordam que elas existem em si mesmas e nos permitem classificar toda a humanidade. Bom, se for assim, tudo bem. Liderança é work in progress. A ideia que se dissolve quando se cristaliza.
Mesmo admitindo isso, a verdadeira esquisitice da ideia de liderança como conjunto de competências persiste. Isso porque se este conjunto de fato existisse, seria o único entre todos a se espelhar perfeitamente nas hierarquias de status.
Se liderança fosse algo em si mesmo, poderíamos dizer que existe uma espécie de ordem misteriosa no mundo, que gera um acoplamento perfeito entre potencial e realização.
Assumir tal ponto de vista é ver o mundo como uma espécie de Olimpo, onde Zeus lidera porque têm os poderes mais tops. Afinal, liderança não é um conjunto de competências que favorece enormemente a chegada ao topo das hierarquias de status? Logo, só resta concluir que quem lidera tem esses traços, o que faz do mundo um lugar perfeitamente justo, do ponto de vista meritocrático.
Essa ideia nos forçaria a assumir também que os adolescentes mais populares são os mais legais, os músicos mais bem pagos são os melhores e os presidentes e senadores são as pessoas mais capazes da política de cada país. É óbvio que não funciona deste jeito. Só lembrar de Pedro 2° ou do filho do dono da empresa para notar a falácia deste raciocínio.
Mesmo quando as condições de saída não são tão discrepantes, essa ideia de alocação eficiente do que é mental nas hierarquias reais permanece meio furada. Ela é análoga a de que os cientistas mais capazes são os que ganharam o Nobel, ou os diretores mais incríveis, os que ganharam o Oscar. Mas, como a gente encaixa Stephen Hawking e Alfred Hitchcock nessa história?
"Um Corpo que Cai" está em primeiro lugar na lista de melhores filmes de todos os tempos, do Instituto Britânico de Cinema, entre outros. A teoria de Stephen Hawking sobre buracos negros mudou a física para sempre. Será mesmo justo considerar que lhes faltava algo para "chegarem lá"? Ou seria mais razoável considerar que foram julgados por pares pouco simpáticos, entre outras razões comezinhas?
Se é assim quando se trata dos dois prêmios de maior visibilidade pública da modernidade, é claro que também será o caso nas hierarquias muito menos transparentes das empresas e outras formas de organização.
Isso tudo não significa que liderança seja um conceito vazio de sentido. Pelo contrário, é só que o sentido não está no letreiro.
Liderança é uma noção que persiste pois funciona lindamente para galvanizar os ambiciosos, sob a premissa de que basta aprender alguns truques para virar a mesa. É também a noção organizadora de uma espécie de sistema de castas meritocráticas, que aparta as múltiplas hierarquias que convivem nas organizações, em contraste direto com o fato de que, em termos de ônus e bônus, há uma só.
Quer ver como isso é verdade? Então pense uma coisa: será que algum CEO de multinacional identifica entre os terceirizados, aqueles que têm mais liderança do que ele próprio? Será que existe o presidente do conselho que certa vez confessou à esposa: queria mesmo era ter o espírito de liderança do Ramos, que há um ano e meio era estagiário e agora já é analista sênior e que vem mudando o mindset dos colegas? Eu nunca vi isso. O que para mim é razão suficiente para não levar a ideia de que seja um conjunto de atributos universais muito a sério.
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