Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Como funciona o processo mental de arrependimento de um negacionista
A percepção de que hordas de negacionistas e cloroquiners vêm revendo as suas crenças tem gostinho de desforra para muita gente. Também, pudera, depois de tantas tentativas infrutíferas de atraí-los para a rota do bom senso, é natural que os sentimentos não sejam dos mais nobres.
Do mais, existe uma realidade de fundo duríssima para se absorver: nas cidades onde o negacionismo foi e segue sendo mais forte morreram muito mais pessoas, proporcionalmente, do que naquelas em que a consciência foi maior, já que o negacionismo materializa-se em rechaço do isolamento social, do uso de máscaras e de outras medidas de mitigação de risco cuja ausência leva à infecção, que por sua vez leva à morte.
Mesmo que não tenha sido de maneira direta e intencional, fato é que as pessoas que fizeram —e ainda fazem— pouco caso da covid-19 contribuíram para a morte de seus próprios familiares e amigos, além dos familiares e amigos dos outros.
Isto é especialmente verdade nos municípios em que a porcentagem de negacionistas é maior, já que este fator leva a uma explosão tão grande de casos, que mesmo quem se previne acaba exposto.
Está aí uma boa razão para não levar a percepção tardia do erro numa boa, por mais que seja um enorme avanço frente à perpetuação do discurso obscurantista, na linha do que vêm sendo noticiado. Por exemplo, requerimento entregue à CPI da Covid acusa missionários evangélicos de espalharem mentiras sobre a doença para dissuadir indígenas de tomar a vacina, conforme o UOL reportou.
A reportagem traz um depoimento de Milena Kokama, da Federação dos Povos Kokama, que são povos guaranis originários da tríplice fronteira, como é conhecida a fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.
Segundo ela, missionários dizem que a vacina chega contaminada da China e que Deus irá proteger quem não quiser se vacinar, enquanto pastores de algumas igrejas tentam impedir que os imunizantes cheguem às comunidades. O procedimento se repete no Maranhão e em outras partes.
Um dos legados mais duros da pandemia será o das pessoas que precisarão conviver com o fato de que suas posturas em relação à covid aumentaram a chance de outros sofrerem e morrerem. É duríssimo, mas é bom que tirem logo tal esqueleto do armário, uma vez que isto será inevitável.
Sinto muitíssimo por quem cometeu este equívoco colossal, mas não posso recomendar outro ponto de partida que não o da franqueza. Só ela permite uma reconciliação genuína consigo mesmo e com essa população sofrida do Brasil, levada ao desespero e à aniquilação nos braços da manipulação, do pouco caso ou de ambos.
O primeiro passo rumo à franqueza é simples: basta olhar-se no espelho e entrar em contato com o fato de que a responsabilidade pela tragédia não é só do presidente. Ela também é de cada um que ajudou a perpetrar a calamidade de maneira intencional. Com exceção de alguns poucos, sequer dá para dizer: "eu estava cumprindo ordens".
Faço estas considerações com verdadeiro pesar e a certeza de que o negacionismo da pandemia ainda está longe de ser bem compreendido.
Por trás de comportamentos reconhecidamente negacionistas podem existir prerrogativas comuns, parcialmente comuns ou mesmo completamente independentes.
O sujeito que tenta convencer indígenas do caráter diabólico da vacina tem muito pouco a ver com o que frequenta festas clandestinas e depois conversa sem máscara com a própria mãe. Esta multiplicidade torna a compreensão da situação que vivemos particularmente desafiadora.
Porém, é importante avançar neste entendimento com força total. Só assim poderemos combater a desinformação de maneira mais precisa e ajudar os negacionistas arrependidos a fazerem o seu luto, como no caso da tia de Bajaga Apurinã que se opunha à vacinação, até a filha contrair covid-19 e morrer da doença (relato do próprio ao UOL, em 26/06/2021).
As esferas do negacionismo
Prerrogativas negacionistas são concepções que embasam aqueles que negam a gravidade da covid-19, agem na contramão da prevenção e jogam contra os esforços para a imunização de todos, seja por não se vacinarem ou seja por persuadirem os outros a não o fazer. Em alguns casos, estas prerrogativas são conscientes, em outros não são.
No meu ponto de vista, a maneira mais simples e elegante para lhes representar é por meio dos chamados diagramas de Venn.
Conforme a imagem acima mostra, as partes mais centrais do diagrama possuem maior sobreposição, representando o epicentro do negacionismo. Este espaço central é formado pelo encontro de algumas prerrogativas, mas não de todas.
Esta forma de ver as coisas sugere que o negacionismo é uma via comum, adotada em função de diferentes prerrogativas, as quais tendem a se sobrepor, tal como no epicentro do diagrama de Venn acima. Em geral, quanto maior o número de sobreposições —de prerrogativas que nos levam a acreditar e a apoiar algo— mais arraigado o comportamento.
A ideia do artigo de hoje é aplicar esta lógica ao negacionismo da pandemia e, em seguida, ao negacionismo arrependido. Para isso, irei me ater aos diagramas principais, com a certeza de que podem ser acrescidos e modificados.
I. Cognições motivadas
Cognições motivadas são as ideias que defendemos porque são mais vantajosas ou convenientes.
A conveniência geralmente possui diversas dimensões ou "diagramas".
No caso do negacionismo da pandemia, as principais são:
I.a. Conveniência prática
Quando a covid-19 chegou aos Estados Unidos (janeiro de 2020), a economia estava em expansão, apesar do ambiente social conturbado. Donald Trump apostava na economia para manter —e mesmo elevar— sua popularidade até as eleições presidenciais (novembro de 2020).
Minimizar a seriedade da pandemia, defendendo tratamentos sem embasamento científico, tinha como objetivo primário desincentivar lockdowns, o que em sua visão ajudaria a manter a economia aquecida, aumentando as chances de reeleição.
Tanto é assim que, ao perceber que a estratégia havia naufragado levando consigo centenas de milhares de vidas americanas, Trump passou a investir massivamente em vacinas, através da operação Warp Speed, sobre a qual tratei aqui.
A conveniência prática tem muitas outras facetas. É de se entender que os protestos contra os lockdowns tenham sempre um número desproporcional de comerciantes e que jovens baladeiros acreditem que a severidade da covid-19 esteja sendo superdimensionada.
I.b. Conveniência ideológica
Um conceito fundamental para entender os nossos dias é o de ciência alternativa ou alt-science, no original. Este diz respeito às interpretações alternativas da ciência, que em última análise ignoram aquilo que os principais cientistas do mundo não cansam de repetir.
Artigo recente de Guilherme Casarões (FGV) e David Magalhães (PUC/FAAP) sobre a aliança de políticos e adeptos da alt-science na defesa da cloroquina lança luz sobre um aspecto fundamental da mesma: o papel do chamado populismo médico, que é uma maneira de opor "o povo" ao establishment, a partir do questionamento do discurso científico dominante.
Na prática quer dizer: aquele defendido pelos ganhadores do prêmio Nobel, pelos pesquisadores das principais universidades do mundo, pelos autores dos artigos de maior impacto, pela OMS, União Europeia, Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pelos editores de todos os periódicos de maior prestígio da história da ciência, como Nature, Science, PNAS, JAMA, Cell, New England Journal of Medicine e assim por diante.
A estratégia é tratar em pé de igualdade conclusões publicadas em revistas com fator de impacto maior do que 30 e menor do que 3, de modo a criar a ilusão de que o campo está dividido.
A partir daí, esta divisão é apresentada como mais uma expressão de um grande complô, do "nós contra eles", que supostamente define a sociedade (nós, o povo, contra eles, os cientistas malévolos, o Bill Gates comunista, as minorias autoritárias, etc.), o que reforça a coesão interna no polo do "nós".
Ou seja, não é que exista um silenciamento conveniente acerca do fato de que alguns poucos artigos de baixa credibilidade, publicados quando o conhecimento sobre a covid e seu manejo eram muito menores, estão sendo contrapostos a uma miríade de artigos mais recentes, que passaram pelo mais alto rigor editorial de que se tem conhecimento no mundo; é que a existência desta miríade de artigos atuais mostrando que a pandemia é seríssima, que o uso de máscaras é essencial, que cloroquina tem custo/benefício negativo para os pacientes nos diferentes estágios da doença e não tem eficácia preventiva é usada para dizer que o dragão contra o qual o povo precisa lutar é forte e está entranhado na ciência, na seção de saúde do The New York Times e onde mais for.
Quanto maior a ameaça, maior a coesão de grupo - eis aí a base do negacionismo por conveniência ideológica.
I.c. Conveniência cognitiva
Um dos conceitos mais importantes da psicologia do século 20 é o de dissonância cognitiva. Ele surgiu para descrever o fato de que contradições ou "dissonâncias" são mentalmente desfavoráveis e tendem a ser resolvidas pelas pessoas de maneira espontânea.
Por exemplo, quem apoia o governo em determinados campos, com o tempo, tende também a apoiá-lo em outros —por mais que isso se distancie do que pensava no passado— pois é mentalmente custoso manter uma visão com arestas e contradições internas sobre qualquer assunto complexo.
Por exemplo, conservadores nos costumes têm maior propensão a se alinhar ao discurso negacionista acerca da covid-19 dado que a convergência de opiniões abole a necessidade de se lidar com contradições e posicionamentos complexos.
Conforme David Graham escreveu para o The Atlantic, não é coincidência que as mesmas pessoas que questionam o uso de máscaras, também celebrem os tratamentos precoces e relativizem a importância da vacinação.
Outro vetor da conveniência cognitiva é o otimismo açucarado ou wishful thinking —um truque psicológico que aplicamos para evitar o sofrimento que advém do contato com as possibilidades sombrias que o futuro compreende.
A percepção de que existe uma ameaça biológica fortemente disseminada pelo país, a qual pode levar o sujeito e sua família à morte, é exasperante. Muito mais conveniente é concordar com quem diz que não é tudo isso. O otimismo açucarado está por trás da crença de que "no final, vai dar tudo certo", a qual mitiga o risco percebido às custas de sua ampliação vivenciada.
Tim Hartford escreveu para o Financial Times: "houve um momento no verão em que as pessoas começaram a perceber que, algumas vezes, os testes para covid-19 apresentavam uma taxa de falsos-positivos. A partir deste perigoso trechinho informacional surgiu uma teoria reconfortante: conforme a primeira onda passava pela Europa, talvez nunca houvesse uma segunda onda".
Eis aí um exemplo de como a negação amedrontada conduz as pessoas aos braços de seus maiores pavores.
I.d. Satisfação do desejo de pertencimento
Uma das vantagens oferecidas pela adesão a um ideário qualquer é a sensação de pertencimento. O caso não é diferente para o negacionismo da pandemia.
Muita gente fica estupefata com a presença de cientistas biomédicos e outros em grupos que propagam discursos contrários ao isolamento social, ao uso de máscaras e à vacinação.
Esta perplexidade costuma emergir da percepção de que o custo pessoal da adoção de posições contrárias à ciência mainstream (aquela dos prêmios Nobel, de 10 entre 10 editores de revistas de impacto, da AAAS, SBPC, OMS, etc.) é elevado.
Uma das maneiras de se entender isso é pela ótica do desejo de pertencimento, cuja intensidade manifesta-se como propensão a não tomar as posições de grupo pela crítica social que dele é feita, mas pelo seu sentido interpessoal e impacto subjetivo.
II. Eixo das prerrogativas epistemológicas
O avanço da ciência contemporânea envolve uma das mais completas mudanças de mentalidade da história. Singularidade, gravidade repulsiva, biologia sintética e muito mais exigem verdadeiras manobras intelectuais para serem compreendidas, da mesma forma como a compreensão da própria dinâmica da credibilidade do que se diz ou publica.
Não estamos mais na era dos gênios solitários, com seus pensamentos revoltosos e Frankensteins de estimação. Experimentos científicos de relevo são empreitadas colaborativas, que têm nos comitês de ética suas portas de entrada e nas revistas científicas de alto impacto suas saídas de volta à sociedade.
A descentralização das atividades decisórias e a profusão dos estudos que testam as hipóteses dos outros refinaram o sentido de validade. Especialmente nas ciências biológicas e da saúde, as conclusões mais válidas são aquelas com replicações maiores e rigorosas.
A transparência é muito maior do que no passado, mas ela não é inteiramente dada pelo estudo e seu resultado; ela surge como uma espécie de impressão quando tomamos vários outros trabalhos, com o cuidado de não considerar aqueles que foram mal desenhados ou conduzidos, por exemplo, através de meta-análise.
Estas ideias parecem simples de se entender mas, quando tiradas de contexto, tendem a revelar o contrário. Isto acontece porque tensionam uma outra forma de pensar, muito mais espontânea: o intuicionismo.
Intuicionismo é a crença na máxima de que é preciso ver para crer. É ele que insufla os terraplanistas, afinal, o que a gente vê, olhando para o horizonte, não sugere em nada que o planeta seja curvo.
O desafio do intuicionismo é inibitório. Tal como a teoria da Gestalt mostrou, certas percepções são muito fortes, não podendo ser diretamente combatidas.
Por exemplo, todos nós vemos uma estrela na imagem abaixo, ainda que à rigor ele não exista:
A questão é que a separação do joio do trigo exige que atribuamos menos importância aos eventos solitários que nos ocorrem e às conclusões pouco replicadas (em ambos os casos, em função do chamado viés amostral), em prol das mais replicadas, de maneira independente.
O intuicionismo reforça o negacionismo da pandemia de três maneiras: aumentando as chances da pessoa formar suas próprias conclusões acerca do vírus e da pandemia como um todo. Por exemplo, o sujeito dá carona para uma pessoa com covid-19 e não pega a doença; aí conclui que ela não é contagiosa (posto que esta conclusão é conveniente, conforme descrito em I.c.).
Outro é convencido que "a ciência diz" que máscaras não funcionam, dado que algo do gênero saiu em uma revista científica predatória, ignorando o fato de que todos os estudos sérios e grandes indicam o contrário.
Já um terceiro compra a ideia de que existe um complô (ver IV.b.), já que não consegue entender que raios o "pessoal da ciência" está falando.
III. Predisposições cognitivas
Predisposições cognitivas são formas básicas de pensar que facilitam a assimilação de uma ou mais proposições. No caso do negacionismo da pandemia, as principais predisposições cognitivas são:
III.a. Dificuldade na atualização de crenças
A capacidade de compreender uma situação qualquer e decidir por aquilo que é pessoal ou coletivamente vantajoso depende do mapeamento das circunstâncias, as quais costumam estar em constante transição.
Para dar conta do recado, as diferentes espécies tendem a avaliar o contexto ou background de suas ações, de maneira contínua. É assim que, por exemplo, um animal qualquer detecta a presença de um predador camuflado ou uma criança percebe que uma brincadeira está se convertendo em agressão. E chora.
Em humanos, a capacidade de atualizar crenças não serve apenas para ações pontuais como estas descritas acima, mas também para levar a cabo mudanças mais lentas, dependentes de fluxos de informação mais sutis.
Muita gente minimizou os perigos da covid-19, num primeiro momento; um grupo menor manteve esta postura pelos meses seguintes e outro, que não passa de uma fração do segundo, mantém esta postura até hoje.
Um traço cognitivo comum ao terceiro tipo é a dificuldade de atualizar crenças, tal como medido em testes de flexibilidade cognitiva, assunto que discuto em maiores detalhes neste outro artigo, aqui do UOL.
III.b. Falhas em processos metacognitivos
O pensamento tem como função biológica essencial aumentar a chance de que os comportamentos sejam acertados. Por isso, a grande maioria das nossas ideias envolve representações mentais que possuem referenciais externos ao nosso cérebro. Vejo um carro passando e penso que está indo rápido. Numa outra situação, tento lembrar o que disse para fulano, na situação x, ou avalio opções para uma tomada de decisão.
Estas formas de pensar que envolvem referenciais extrínsecos ao Eu já foram consideradas as únicas existentes, mas há tempos sabemos que não é bem assim, que existe uma forma de pensamento que toma o próprio pensamento como objeto. Esta é chamada de metacognição.
É incerto se a metacognição é um truque cognitivo que veio de graça com a evolução do pensamento abstrato (um epifenômeno da evolução de outros recursos cognitivos) ou se existe em função das vantagens diretas que traz. Independentemente disso, possui papel psicológico certeiro: ela permite que cada um se veja em terceira pessoa. Esta visão facilita a comparação com as outras pessoas, reforçando o senso crítico.
Diferentes estudos mostram que negacionistas, extremistas e seus pares têm menor propensão ao uso da metacognição ou, simplesmente, àquilo que os testes metacognitivos medem.
IV. Predisposições estilísticas
Predisposições estilísticas ou "de personalidade" são aquelas que emergem da relação entre afetos e personalidade.
IV.a. Intolerância à mudança
As grandes linhas de forças ideológicas organizam-se em dois eixos principais: o eixo da economia e o eixo dos costumes.
O vetor do eixo econômico é a intolerância à desigualdade. Quando depuramos tudo o que existe para se depurar, a principal diferença entre posturas mais à esquerda e mais à direita é que as primeiras são mais refratárias às assimetrias nas condições de vida.
O pensamento mais à esquerda tende a considerar que é obrigação "da sociedade" atuar para reduzir estas assimetrias, ao passo que o pensamento mais à direita tende a considerar que não é. Em se tratando de representação da sociedade e sua lógica, o primeiro grupo é menos tolerante à desigualdade do que o segundo.
O segundo eixo é o dos costumes. Neste, o vetor é a intolerância à mudança. A essência da diferença entre conservadores e liberais nos costumes é que os primeiros valorizam mais as recompensas oriundas da manutenção do status quo, enquanto os segundos valorizam mais as que o contínuo processo de se moldar ao futuro promete.
Existe uma forte correlação entre tolerância à mudança e um traço de personalidade conhecido como abertura à experiência. Em contraste, existe correlação inversa entre o mesmo e o conservadorismo.
Dado que o conservadorismo forma um cluster de sentidos, onde a presença do negacionismo da pandemia tem maior probabilidade de se manifestar (veja em I.c), segue que a intolerância à mudança emerge como prerrogativa de natureza convergente.
IV.b. Sentimentos paranoides
As funções elementares do cérebro humano evoluíram de fortes pressões evolucionárias. Um dia é da caça, outro dia do caçador, como diz o ditado. O fato de que não basta relaxar completamente e confiar no curso do destino para se chegar vivo ao dia seguinte levou à seleção da inclinação à desconfiança, presente em grande parte dos mamíferos.
Na nossa espécie, mais do que na maioria das outras, as variações individuais no nível de desconfiança intrínseca são enormes. Como outros traços defensivos, este se torna bastante deletério quando em excesso e também dá as caras em síndromes neurobiológicas, como a esquizofrenia.
Em 1921, Emil Kraepelin criou o conceito de personalidade paranoide para se referir às pessoas que não possuem esquizofrenia (um transtorno que Eugen Bleuler, havia descrito em 1908), mas tampouco exibem níveis saudáveis de desconfiança.
Nas décadas seguintes, uma série de psicanalistas famosos reformaram o conceito, levando-o às portas do século 21. De acordo com esta visão, dominante até hoje, a sensação de desconfiança sem explicação clara é por demasia angustiante.
Isto leva a pessoa a criar uma explicação. Se o seu enquadramento na realidade for suficientemente sólido, esta explicação será encontrada em teorias da conspiração, ao passo que se não o for poderá incluir também seres ocultos ou místicos, levando o sujeito à antessala da esquizofrenia.
Assim, sentimentos paranoides elevam a receptividade das mais diversas teorias conspiratórias, uma vez que as inserem na luta contra a angústia de base, que toma o sujeito com tal predisposição.
De onde vêm os negacionistas arrependidos
Até aqui vimos como o negacionismo funciona, de acordo com o modelo que eu criei para lhe explicar.
A meu ver, o mesmo diagrama deve ser usado para explicar a origem do negacionismo arrependido: ele surge do enfraquecimento de uma ou mais prerrogativas, pois elas atuam conjuntamente na criação de sua coesão, representada pela área hachurada acima.
A questão é que estas dimensões não são igualmente abaláveis, de modo que a gente tende a ver mais de alguns perfis arrependidos do que de outros.
As predisposições cognitivas e estilísticas mudam pouco ao longo da vida, nem sempre para melhor. Por isso, eu as descrevi por fim.
Já as prerrogativas epistemológicas e as cognições motivadas tendem a se alterar. Aquelas mudam através da educação e intimidade com o pensamento científico, ao passo que as cognições motivadas flutuam com os interesses.
Assim, temos uma sequência formada por predisposições cognitivas e estilísticas (mudam pouco), prerrogativas epistemológicas (mudam lentamente) e cognições motivadas (variam com os interesses).
A conclusão a que se chega é que, no final, a principal razão para o arrependimento de tantos negacionistas é o esvaziamento das promessas de satisfazer suas aspirações pragmáticas, ideológicas e de pertencimento.
É menos nobre do que poderia parecer de início, mas já é um começo.
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