Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
IA da felicidade: qual o impacto dos algoritmos para uma vida bem vivida?
Algoritmos são o coração da versão atual da inteligência artificial.
Eles são responsáveis pelo crédito que o banco te oferece, cartazes digitais que você vê primeiro, na sua plataforma de streaming preferida; do escore da Netflix (que não é uma avaliação do conteúdo em si, mas uma estimativa do quanto pode te agradar), das amizades que as redes sociais sugerem e muito mais, incluindo suas chances de conseguir um novo emprego, as ruas pelas quais você circula de carro quando usa o Waze e mesmo o quanto você paga de seguro.
O festival South by Southwest (SXSW) é uma espécie de feira de variedades artísticas, tecnológicas e comportamentais, que acontece no começo do ano (em geral, em março), em Austin (Texas), influenciando a indústria do entretenimento, da comunicação e dos gadgets pelos meses seguintes.
Em 2014, Chade-Meng Tan, um engenheiro sênior do Google, sede do desenvolvimento de alguns dos mais sofisticados algoritmos da nossa era, lotou o saguão de um grande hotel para falar sobre sua mais recente descoberta: um método para aumentar a felicidade.
O método de Tan possui três diretrizes: acalmar a mente, pensar que se está feliz e desejar que outras pessoas sejam felizes.
Ali ele teve seus quinze minutos de fama, que eu espero que o tenha deixado contente. Do seu método mesmo, pouco se falou depois daquele dia, exceto por uma ou outra reportagem interessada em brincar com a ideia de um suposto "algoritmo da felicidade".
A relação entre algoritmos e felicidade teria um novo desenrolar seis anos mais tarde, quando a cientista de dados Lina Faik propôs usar as bases do relatório de felicidade mundial (" World Happiness Report" ) para alimentar uma rede neural treinada para estimar a felicidade em um país, com base em dados de pesquisa. Vale olhar o artigo de divulgação que ela escreveu.
Fora estas abordagem esparsas, o que se vê é um sem-fim de estudos e debates públicos sobre os efeitos nocivos das redes sociais em jovens, vieses que impactam negativamente grupos e sociedades inteiras e outros exemplos que tratam da infelicidade.
Isto é muito pouco e também muito empobrecedor.
Primeiro porque infelicidade não é o oposto de felicidade. A concepção de uma escala linear que vai da infelicidade máxima até a felicidade mais extrema não é psicologicamente consistente, nem muito menos empiricamente válida.
Segundo porque nem sempre a felicidade representa o construto ou estado de espírito que as pessoas querem elevar, como Tan parece considerar, em sua ingenuidade surpreendente.
Eu me interesso muito pela relação entre tecnologia e felicidade e hoje vou compartilhar algumas ideias que vim desenvolvendo, na expectativa de que inspire outras pessoas a pensar sobre esta pauta, que definitivamente precisa avançar.
Felicidade não, vida bem vivida
A vida bem vivida é tradicionalmente classificada pelos psicólogos como hedônica ou eudaimônica.
Experiências hedônicas são as dos prazeres e satisfações, enquanto as vidas em que abundam são descritas como alegres e "solares". Já as experiências eudaimônicas tem a ver com sentido na vida, em pessoas muitas vezes descritas como exemplares, de trajetórias "significativas".
A vida tipicamente hedônica é marcada pelo predomínio das experiências de prazer sobre as de desprazer e, especialmente, das emoções positivas intensas (como paixão e admiração) sobre as negativas (como medo e inveja).
É este tipo de existência que Tan tinha como alvo com o seu programa, que assume sem mais delongas que predomínio afetivo positivo significa felicidade.
Ela é mais frequente entre quem é extrovertido e possui baixos índices de neuroticismo, que é um combo de ansiedade, tensão e tendência a se envolver em conflitos interpessoais. Dentro de alguns limites, a "felicidade hedônica" é sensível ao status socioeconômico.
Para quem está se perguntando como essas peças se encaixam, aqui vai: a extroversão aumenta o potencial hedônico da vida por meio dos laços sociais, otimismo e esperança, os quais o neuroticismo rebaixa, ao passo que o status socieconômico possui sentido análogo pela mitigação das necessidades, melhores condições de saúde e maior acesso a dispositivos e experiências concebidas para serem divertidas, especialmente quando compartilhadas com os outros.
A vida eudaimônica ou "significativa" favorece a combinação de três fatores: coerência, propósito e significado.
Vidas tendem a ser percebidas como significativas quando são sentidas como tendo significância para além do trivial ou momentâneo, quando têm propósito, ou uma coerência que supera o caos."
(King et. al, 2006, p.180, Apud King e Hicks, 2021, p.7)
Coerência traduz a presença de um senso de que o curso do tempo faz sentido, a despeito do seu caráter desagregador e do imponderável. Ela costuma inspirar trajetórias marcadas pela consistência das ações e a linearidade no trato do profissão, das amizades e da família.
A noção de propósito é a de um fim maior do que aquilo que é realizado, no dia a dia.
Por exemplo, muita gente diz que educar os filhos tem como meta orientá-los à construção de um futuro melhor. Para estas pessoas, a educação não se esgota naqueles que a recebem, mas visa converter seus receptores em preceptores de uma realidade mais positiva para todos.
A experiência de que a vida tem significado possui ares sistêmicos, associados à sensação de importar para a sociedade (abstração) e para os outros (concretude).
As pessoas que sentem mais intensamente que suas vidas são significativas costumam ser mais cuidadosas, organizadas e sensíveis ao impacto de suas ações sobre os outros (um combo chamado consciosidade).
Elas também tendem a valorizar mais a ética e o comprometimento com suas crenças, sendo que uma coisa que as frustra é a sensação de não estarem realizando o seu potencial.
Frente à famosa pergunta: você quer ter razão ou ser feliz? Hedônicos vão com esta e eudaimônicos com aquela, o que aliás explica a composição de tantos casais.
A vida significativa não é tanto uma vida feliz no sentido convencional do termo, quanto é a vida hedônica, alegre, ainda que as duas sejam amplamente caracterizadas como bem vividas.
Eis porque é mais apropriado falar em "vida bem vivida" do que em felicidade, quando o assunto recai sobre as linhas de força estruturantes das nossas aspirações.
Do mais, não se trata de componentes que não se misturam, mas sim de componentes que tendem a predominar em esfera individual e grupal.
Neste ano foi publicado um estudo demonstrando a existência de um terceiro modelo de vida bem vivida, estatisticamente independente dos outros: o conceito de vida psicologicamente enriquecida.
Vidas alegres e vidas com propósito muitas vezes são monótonas e repetitivas, como os autores Oishi e Westgate enfatizam. As vidas do primeiro tipo tendem a envolver a busca da reiteração do prazer, ao passo que as do segundo tipo tendem a envolver tarefas e rotinas dependentes de forte investimento intencional para manter a coerência e o senso de propósito em alta.
Nada disso condiz com um ideal existencial que não pode ser ignorado: o da vida repleta de mudanças de pontos de vista, profusão de interesses e aprendizados enriquecedores.
Onde se encaixaria o Zaratustra de Nietzche, perguntam eles, ao que acrescento: onde colocar todos os que um dia cantaram "navegar é preciso, viver não é preciso"?
Engana-se quem acha que esta é uma inclinação hedonista.
O filho que abandona a casa, o graduando que abandona medicina, a namorada que vai embora, morar em outro país, tantos são os casos de pessoas dispostas a sofrer em nome da aventura mental, emocional e espiritual, quanto são os equívocos em lhes compreender.
Uma vida psicologicamente enriquecida é caracterizada pela variedade, interesse e mudança de perspectiva; em contraste, uma vida feliz é caracterizada por conforto, prazer e estabilidade, ao passo que uma vida significativa é caracterizada por propósito, sentido e coerência (?) curiosidade, espontaneidade e energia levam a vidas psicologicamente enriquecidas, princípios morais sólidos e religiosidade facilitam vidas com sentido, enquanto relações estáveis, tempo, dinheiro e mentalidade positiva facilitam vidas felizes."
(Oishi e Westgate, 2021, p. 3)
Pessoas que têm mais deste ingrediente e, assim, aspiram e vivem vidas psicologicamente enriquecidas costumam ser mais curiosas, complexas e imaginativas. Elas também tendem a topar virar a página em assuntos e situações que se prolongam de maneira repetitiva, conforme almejam se conectar ao mundo e a si mesmas de formas diversas.
O tédio é um problema para essas pessoas, mas não no mesmo sentido em que é para os hedonistas, que o recusam pelo que sequestra de prazer. Aqui, a questão é a falta de matizes e peripécias.
A sustentação da riqueza psicológica presente nos versos "prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo" leva à sabedoria, o que contrasta com a sustentação de uma postura orientada ao significativo, que favorece as realizações.
Algoritmos e os modelos de vida bem vivida
A disseminação dos algoritmos impacta as relações que cultivamos com nós mesmos, à luz dos nossos ideais de vida bem vivida, de maneira tão ou mais intensa do que nossas relações interpessoais e é surpreendente como pouco se falou sobre isto até hoje.
Alguns dos algoritmos mais relevantes no nosso cotidiano são de recomendação. Do ponto de vista de quem os cria ou contrata, o xis da questão é estimular cliques, que se convertam em engajamento ou disposição para pagar.
Em um nível mais profundo, a ideia é funcionar de maneira reativa (aliás, é este mesmo o nome técnico deste tipo de tecnologia: reactive AI), oferecendo aquilo que tem sinal recompensatório, para extrair valor da relação.
Os estímulos digitais certos na hora certa estimulam determinados circuitos dopaminérgicos no cérebro (frontomediais), tal como as gotinhas de açúcar que o cientista oferece para o ratinho, no intuito de modelar o seu comportamento.
De maneira geral, os algoritmos tendem a aumentar a sensação de estar recebendo algum tipo de recompensa do mundo, o que aumenta a massa sobre o pratinho positivo da balança hedônica.
Este fenômeno é reforçado pela diminuição do esforço necessário para localizar informações e realizar tarefas, resumido na ideia de que "a tecnologia é uma mão na roda".
Isto torna o balanço dos algoritmos de recomendação positivo para aqueles em que as disposições hedonistas predominam.
Porém, há outros, como os produtivos, cuja atual proliferação leva ao aumento da desigualdade, tanto porque eles promovem concentração de poder decisório, quanto porque são frequentemente enviesados, aumentando o fardo sobre todos aqueles que não se encaixam no paradigma: homem, branco, com dinheiro no bolso.
Se isto soa surpreendente, dê uma lida neste artigo da Harvard Business Review, que explica esta lógica com simplicidade.
Quando uma tecnologia surge, a quantidade de gente que sofre o seu fardo costuma ser muito superior à que dela se beneficia. Só depois de um bom tempo que a lógica se inverte e a sociedade como um todo passa a se beneficiar da novidade.
Assim, para a maioria das pessoas, é seguro dizer que o status socioeconômico está sendo afetado negativamente pela proliferação de algoritmos, neste momento, ainda que a riqueza geral produzida esteja crescendo muito e dependa cada vez menos de esforço e sofrimento humano. Portanto, por este ângulo e na média, os algoritmos têm afetado negativamente a vida dos hedonistas.
Um terceiro aspecto é sociorrelacional. Algoritmos ampliam redes de relacionamentos, o que é muito positivo para quem é extrovertido, como a maioria dos hedonistas.
Por outro lado, tendem a reforçar a digitalização das experiências, a qual está menos alinhada com os ideais deste perfil.
O balanço é ligeiramente mais positivo do que negativo, ainda que as duas dimensões apareçam aqui.
Veredito: do ponto de vista dos hedonistas, a proliferação dos algoritmos é mais positiva do que negativa, ainda que esteja próxima do breakeven.
Pessoas que cultivam ideais eudaimônicos de maneira mais intensa têm um gosto forte pela organização e algoritmos são grandes clusterizadores das informações disponíveis no mundo.
Por exemplo, o TikTok vem sendo exaltado como a rede social com o melhor algoritmo de recomendação da história. Na minha visão, é o pior, mas isto apenas prova que toda regra tem algumas exceções.
O motivo da contenda é que o TikTok aprende rapidamente seu perfil de interesses e passa a lhe oferecer estritamente aquilo que você buscou ou parou para assistir.
Quer dizer, a rede social é o exemplo mais bem acabado existente de um ecossistema de bolhas. Para os adolescentes parece libertária e até caótica; para nós, que dialogamos através desta coluna e seus comentários, é o ponto mais alto da organização reiterada.
O mundo mais ordeiro dos algoritmos certamente se alinha aos ideais eudaimônicos.
Em paralelo, algoritmos ajudam no dia a dia, facilitando um sem número de missões pessoais.
Seus impactos socioeconômicos não podem ser desprezados, mas é fato que pessoas que se alimentam de propósitos sofrem menos seus efeitos do que os hedonistas, tanto porque suas missões de vida servem de blindagem, quanto porque a linearidade de conduta está alinhada ao uso destas tecnologias em benefício próprio (ou daquilo a que se dedicam).
Em contraste com estes aspectos, muita gente reclama que as relações mediadas por algoritmos são drenadas da transcendência, dada a sensação de direcionamento externo. As coisas se tornam mais comezinhas, o que enfraquece o senso de significado, por mais que ajude na condução de qualquer missão.
Neste sentido, os algoritmos são negativos para quem tem perfil eudaimônico.
Veredito: algoritmos são predominantemente positivos para quem tem perfil eudaimômico, ainda que não sejam estritamente bons.
A vida psicologicamente enriquecida demanda estímulos, informações. Algoritmos são uma mão na roda para quem quer aprender, o que facilita a vida de quem tem tal perfil.
Por outro lado, eles entram em conflito com o desejo de mudar, ressignificar e estar fora das bolhas.
A busca por novas paisagens mentais é frustrada pela maneira metódica com que as informações são tratadas algoritmicamente, a qual "aproxima as distâncias" como se costuma dizer.
O mundo algorítmico é tedioso por definição. É seguro, preditivo, sem aventuras. Nada disto facilita a vida de quem tem um perfil mais orientado à riqueza psicológica.
Veredito: algoritmos são fortemente negativos para quem tem perfil orientado à riqueza psicológica, ainda que existam aspectos que amenizam estes efeitos.
Para fechar
A área que estuda os impactos dos algoritmos sobre o bem viver inexiste. De acordo com o meu levantamento, esta humilde reflexão é a primeira do tipo jamais publicada.
Seja ou não o caso, é certo que pode ser ampliada e aprofundada de inúmeras maneiras, até porque não é preciso pensar muito para notar que existem mais manifestações e impactos dos algoritmos do que descrevi aqui.
De qualquer maneira, as que mencionei possivelmente estão entre as principais e nos fazem ver uma coisa: existe um tipo de ideal de vida especialmente vulnerável aos efeitos negativos dos algoritmos. Este é o tipo sonhador, desbravador, poeta, amante da variedade e do risco existencial.
Eu não duvido que este tipo se torne cada vez mais raro; os casos extremos tendem a sumir por um tempo, enquanto o traço perde em popularidade entre aqueles que não se definem pelo mesmo. Se lhe serve de consolo, trata-se de movimento cíclico.
Resta saber quantos outros tipos de bem viver existem. É claro que não são apenas estes três e é claro que novos surgirão, possivelmente, mais alinhados às novas lógicas de organização subjetiva e informacional.
De qualquer modo, para quem ama uma aventura mental (como eu), é difícil deixar de pensar que algo valioso se perde a cada dia.
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