Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como funciona o mecanismo que leva jovens à depressão nas redes sociais
Estes últimos tempos não têm sido fáceis para o Facebook.
Primeiro vieram as críticas e boicotes pela maneira como a plataforma lidou com a polarização na eleição americana e, em particular, com os grupos que se organizaram para invadir o Capitólio.
Depois, a vitória do TikTok sobre o establishment político americano, que hoje aceita sua hegemonia na faixa mais desejada pelas empresas de softwares sociais, a dos adolescentes. Então, o anúncio da Apple de uma atualização do sistema operacional do iPhone (iOS 14), que permitiria aos usuários controlar o rastreamento dos anúncios em seus aparelhos, afetando diretamente o negócio da empresa de Menlo Park.
Foi neste clima que os executivos da empresa abriram o Wall Street Journal do dia 14 de setembro e viram uma enorme reportagem especial com o seguinte título: "O Facebook sabe que o Instagram é prejudicial às meninas, conforme documentos internos comprovam".
Pratiti Raychoudhury, vice-presidente e head de pesquisa do Facebook até tentou contemporizar, mas o estudo que Frances Haugen, ex-gerente de projetos da empresa, vazou deixa pouca margem para tanto (acesse-o na íntegra aqui).
Entre as suas conclusões está a de que "32% das adolescentes que participaram da pesquisa disseram que quando se sentem mal em relação aos seus corpos, o Instagram as faz sentir pior ainda" (acesse aqui uma lista de vazamentos recentes de documentos da empresa).
Não é que isto seja novidade, reporta o New York Times, que conduziu entrevistas em profundidade com adolescentes para captar seus sentimentos sobre os resultados vazados: "se você perguntar para uma pessoa jovem, ela vai te falar que se trata de algo com que lida diariamente", diz Vicki Harrison, diretora do Centro de Saúde Mental e Bem-estar de Stanford.
A gente não precisa desta pesquisa para saber disso.
Pode não fazer muita diferença em termos informacionais, mas certamente faz em termos políticos.
Uma das consequências deste vazamento e dos depoimentos que Frances Haugen deu no senado americano foi o acirramento da percepção de que a empresa precisa ser rapidamente regulada.
Conforme levantei em entrevista recente para o Valor Econômico, isto é o que me parece estar por trás da sanha de Mark Zuckerberg em converter o Facebook numa empresa de metaverso, com outro nome e o que mais mandar o figurino, a despeito da imaturidade absoluta da tecnologia.
Também veio daí a ideia de abandonar o lançamento de uma versão infantil do Instagram, amplamente entendida pelos senadores e entidades de direitos civis como prejudicial à população.
O debate sobre os impactos das redes sociais na saúde mental dos adolescentes, que havia arrefecido com a chegada da pandemia, voltou com força total e muitos pais entraram em campo, na tentativa de regular o uso que seus filhos e filhas fazem do Instagram, quase sempre sem sucesso.
A situação me parece propícia para encararmos o fato de que este fenômeno, o da ampliação pelas redes sociais da ansiedade e depressão adolescente, em paralelo à dismorfia corporal e mesmo bulimia e anorexia, é parte de um problema profundo da sociedade algorítmica.
O artigo de hoje procura ajudar a desvendar esta lógica.
Cérebro, saúde mental e engajamento
O sucesso das redes sociais é fruto da combinação inteligente de duas inovações tecnológicas do início do século:
- a capacidade de interagir dentro de uma mesma página da internet, o que ficou conhecido como Web 2.0;
- e o uso de sistemas de avaliação, típicos das interações assimétricas (e.g., o professor que avalia o aluno; o cliente que avalia o restaurante), nas relações entre pares.
Após diversos experimentos como estrelinhas e outros recursos, foi consensuado que o ideal é ter apenas o coração (positivo) ou polegar (positivo e negativo) como métricas.
Existem duas dinâmicas psicossociais legitimando tais recursos de avaliação.
Na primeira, alguém produz conteúdo e é recompensado com estas reações. Este tipo de pagamento simbólico tanto dá prazer por si só, quanto serve para que o(a) criador(a) possa refinar a sua arte, extraindo dela cada vez mais satisfação.
Já do lado de quem investe tempo avaliando o conteúdo consumido, a ideia é encontrar coisas cada vez melhores, assim extraindo cada vez mais satisfação deste tipo de relação.
É como numa pesquisa de satisfação qualquer, em que os respondentes contribuem com informação porque esperam que isto leve a produtos ou serviços cada mais afinados aos seus gostos.
Já na segunda dinâmica, a produção de conteúdo serve de balão de ensaio para a vida offline. Ou seja, tem um quê de treinamento, em que os técnicos são os outros e seus botões de like.
Este princípio reedita a lógica do brincar, cuja origem evolucionária se relaciona à importância das simulações de comportamentos que mais tarde se mostrarão críticos para a vida adulta.
A mesma coisa se aplica do lado do consumo. Na medida em que os outros usuários são "gente como a gente", os conteúdos e seus indicativos explícitos de sucesso/insucesso funcionam como extratos concentrados da cultura, permitindo aprendizados sociais valiosos, como a compreensão das preferências alheias e o mapeamento recorrente dos temas e abordagens em ascensão entre seus pares e aqueles que servem de exemplo para as versões futuras do Eu (role models).
Prazer e aprendizado são, portanto, as duas promessas originais das redes sociais (anteriores à monetização), nas quais os algoritmos de recomendação prometem reduzir a fricção (tempo e energia) para encontrar aquilo que interessa a cada um, no mar de opções disponibilizadas.
O que esta fórmula deixa de levar em conta é que os aprendizados não são sempre positivos e que as redes não são apenas balão de ensaio e ambiente de aprendizado social, mas também entram como ativos importantes na vida das pessoas, especialmente de pré-adolescentes e adolescentes.
Meninas nesta faixa etária, ao redor do mundo, estão aparecendo nos consultórios de neurologia e psiquiatria com tiques. De início, os médicos não estavam entendendo a situação, afinal, estes sintomas são raros e as pacientes tinham vários, aparecidos de maneira simultânea.
Mas eis que o entendimento surgiu por meio de uma característica compartilhada: elas são todas seguidoras de influencers do TikTok que dizem ter síndrome de Tourette, a qual produz tais sintomas.
Para se ter uma noção da dimensão da situação, note que os vídeos da plataforma com a hashtag "Tourette" foram assistidos mais de 3.6 bilhões de vezes, apenas entre janeiro e outubro deste ano, conforme você pode conferir aqui.
Este tipo de apropriação dos sintomas neurológicos alheios hoje em dia é conhecido como doença neurológica funcional. Sua origem é psicológica e envolve processos mentais inconscientes, muito estudados no passado sob o conceito de histeria.
Independentemente da complexa dinâmica que leva uma pessoa a emular os sentimentos da doença de outra, é fato que está em jogo uma forma de aprendizado digital por identificação, como muitas outras, igualmente disfuncionais.
O que é interessante notar é que se trata de algo muito diferente do antigo "mau exemplo", das "más companhias", que se falava no passado, sobretudo nas famílias mais caretas. Pelo contrário, é positivo que as pessoas que sofrem de diferentes doenças tenham um espaço para compartilhar isso.
Ocorre que o sistema de recomendação alimenta continuamente as pessoas mais vulneráveis com este tipo de conteúdo. Por quê? Porque gera o engajamento, já que está alinhado ao seu estado de espírito, parecendo relevante para esta "audiência". Este é o xis da questão.
O princípio da maximização do engajamento, sem filtro ou exceção, leva as redes sociais a superexporem quem está para baixo a conteúdos que levarão ainda mais para o fundo do poço, já que existe uma tendência à manutenção do status quo emocional, que é ainda mais forte entre quem está sofrendo mentalmente.
É uma lógica de ciclo vicioso, que potencializa a exibição de anúncios.
Uma coisa parecida acontece na esfera dos relacionamentos afetivo-sexuais, especialmente na fase em que estes estão começando a fazer parte do ideário adolescente, a qual é puxada pela monetização, que assim tem um papel muito mais importante do que parece.
Uma pesquisa inglesa (2017) mostrou que mais de 3/4 dos pré-adolescentes e adolescentes gostariam de seguir na profissão de produtores de vídeos online. Este tipo de profissão é mais de 300% mais popular do que médico(a), apresentador(a) de tevê ou atleta.
Na mesma linha, uma pesquisa mais recente (2019) conduzida pela Lego nos Estados Unidos e na Inglaterra mostrou que youtuber é 300% mais popular no ocidente do que astronauta —tradicionalmente a profissão dos sonhos entre os mais jovens, especialmente meninos.
De acordo com ambas as pesquisas, o que puxa estas aspirações é o desejo de ser querido(a); ou seja, não é tanto a carreira que importa, mas a promessa de ser uma "estrela", amada como tal.
Não se trata de qualquer amor. A questão aqui é ser amado(a) por conhecidos(as) e estranhos(as), o que tem um subtexto sexual, como os psicanalistas cansaram de demonstrar.
Uma visão complementar é a seguinte: em todos os mamíferos, as lógicas sexuais funcionam como mercados; humanos não são diferentes. Assim, a popularidade nas redes se torna um ativo adolescente conforme serve de sinalizador do desejo alheio e, portanto, do potencial de criar laços afetivo-sexuais. Ou seja, é uma métrica reprodutivo-mercadológica, tal como a cauda do pavão.
Outra coisa que compartilhamos com os demais mamíferos e mesmo com os pavões é a tendência a prestar mais atenção e a memorizar as coisas extremas do que as médias. Já em termos mais exclusivos, tendemos a pensar que estes exemplos extremos são mais comuns do que a realidade mostra, dado que vêm mais facilmente à mente.
Boa parte do medo de viajar de avião tem origem desta maneira de pensar, isto é, da impressão de que acidentes fatais são comuns, meramente porque nos lembramos deles. Este mesmo viés faz com que os(as) adolescentes assumam que seus pares ultrassociais são a regra.
Como está todo mundo sob o mesmo efeito, aqueles(as) que são considerados ultrassociais por uns seguem mirando seus exemplos de ultrassocialidade, o que ironicamente leva ao compartilhamento do mesmo sentimento de insuficiência.
Os ultrassociais ou influencers puxam o bonde de uma cadeia longa de relacionamentos baseados na aspiração, tal como numa sociedade arcaica e desigual, feita de castas.
No Instagram e TikTok, por exemplo, existe até um selo azul de nobreza, que aparece ao lado do nome de quem é considerado influente pelos administradores da plataforma.
É claro que isto fez surgir um mercado paralelo de "consultorias" que prometem conseguir o tal selo, sem nenhuma evidência de que funcione.
Acontece que as redes possuem aspecto de balão de ensaio para os adolescentes. Assim, o mal-estar de quem se sente pária neste sistema de castas não é vivido como realidade passageira, mas como sinalizador de potenciais dificuldades em uma esfera considerada essencial para a felicidade de longo prazo.
Esta é a razão profunda que serve de estopim para a ansiedade, a qual se origina da antecipação de situações ameaçadoras e se converte em doença na medida em que se cronifica.
Está claro que o mal-estar emerge da própria dinâmica dos relacionamentos e não da tecnologia.
Porém, novamente, os algoritmos de recomendação levam a situação a outro patamar, pela exposição reiterada dos(as) adolescentes aos conteúdos que agravam sua ansiedade, já que estes aumentam o tempo no app, vendo propagandas.
Assim, por exemplo, as meninas que estão insatisfeitas com o seu corpo fazem buscas que refletem este desconforto, procurando postagens relacionadas a emagrecimento ou insatisfação com o corpo. O algoritmo então passa a recomendar cada vez mais conteúdos nesta linha e, o que é pior, a convergir para os mais extremos, já que estes tendem a fixar mais a atenção.
Em pouco tempo, a adolescente "desconfortável" está sendo bombardeada por vídeos que elevam em muito o seu pessimismo e que muitas vezes servem de caminho à anorexia, bulimia e depressão.
Aí, para aliviar, ela pode ver alguns vídeos das influencers mais populares, as quais fazem as mesmas dancinhas, como num concurso de barbies, já que os algoritmos das principais redes também tendem a impulsionar organicamente os vídeos que seguem padrões (músicas, comportamentos, etc.) presentes em outros, ainda mais populares.
Para fechar
O mantra número um da autoajuda é que se você está mal, você deve procurar entrar em contato com aquilo que pode te fazer sentir melhor. Todo mundo sabe, quase ninguém aplica. Eis aí uma curiosidade que ajuda a entender a natureza humana ou, pelo menos, a natureza na cultura em que vivemos.
Nas redes sociais e onde for, quem está se sentindo para baixo tende a orbitar a esfera dos conteúdos que lhe deixarão mais em baixa ainda.
Por exemplo, imagine que você está com uma suspeita de uma doença e que o diagnóstico sairá em três dias; o que você faz, tenta ler e ver conteúdos de alto astral, ou fica pesquisando na internet tudo sobre o diagnóstico e a doença?
A questão-chave é que os algoritmos do browser e outros irão te alimentar com aquilo que você busca, numa espiral de crescente intensidade (por isso, a impressão de que espinha mata após meia hora de investigação na internet), tal como se o seu comportamento fosse sinônimo da vontade genuína de chegar aos extremos mais recônditos do tema.
Em 1970, Paul Samuelson ganhou o Nobel de economia por suas contribuições na área das tomadas de decisão, entre outras. Sua teoria mais famosa é conhecida como teoria das preferências reveladas.
Um princípio simplificado, mas coerente com a mesma, é que aquilo que você prefere não é aquilo que você diz, mas sim aquilo que você consome espontaneamente, o que significa: em detrimento das alternativas disponíveis.
Os sistemas de recomendação aplicam à risca a cartilha das preferências reveladas.
Acontece que décadas e mais décadas de estudos sobre as preferências, volição e o bem-estar de maneira mais ampla mostram que muitas vezes existe um desacoplamento entre a intenção de consumir e as preferências que se manifestam independentemente das vicissitudes do momento.
Isto se explica conforme os impulsos volitivos podem ser aprisionados pela situação psicológica vivida.
A questão do mal-estar algorítmico das adolescentes vulneráveis é um exemplo disto, assim como o consumo desenfreado de informações sobre doenças por quem está esperando um diagnóstico.
Estas coisas precisam ser bem compreendidas neste momento em que o Marco Civil da Inteligência Artificial está tramitando no Senado.
Esta talvez seja a última oportunidade para promover um debate de impacto sobre este tema que, mais do que digital, é sobre a vida como um todo.
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