Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Web 3.0: realidade da nova internet é bem diferente do que já imaginaram
Diz a lenda que a internet possui três fases de evolução e estamos entrando na terceira, marcada pelo uso de blockchain no lugar de servidores e computação volumétrica, no lugar de telas. A realidade é diferente disso.
No princípio eram as páginas estáticas, com rotas pré-definidas de consumo, tal como livros (com exceção de poucos como "O Jogo da Amarelinha") e filmes. Esta era a Web 1.0, invenção de Timm Berners-Lee, do final da década de 1980, que levou à popularização da internet.
Então vieram a blogosfera e as redes sociais, transpassando as dinâmicas de comando e controle relativas às rotas de consumo de conteúdos com recursos para que os usuários desenvolvam seus próprios caminhos e elejam os conteúdos que mais interessam, a partir de compartilhamentos e sistemas de recompensa, cuja mecânica cognitiva detalhei aqui e aqui. Assim surgia a Web 2.0, fenômeno cultural dos mais marcantes deste século, cujo representante máximo é o chat em apps.
Na linguagem de Pierre Bordieu, dinâmicas culturais devem ser pensadas à luz dos conceitos de campo e habitus, sendo o primeiro, em essência, o domínio em que representações simbólicas competem e hegemonias se estabelecem, e o segundo o das visões que surgem junto com o campo.
Usando este referencial, o que se fala é que a Web 2.0 é uma fase da tecnologia em que os usuários são importantes demais à criação de habitus para o quanto são alienados dos modelos de governança das plataformas, que são os campos. "Usuários provêm os conteúdos que são formatados pela natureza das plataformas" (Kreps e Kimppa, 2015).
Tendências, interações e memes, que não podem ser previstos posto que surgem de reações espontâneas dos usuários, dão contornos ao produto comercializado pelas redes sociais, as quais negam àqueles que o concebem e disseminam qualquer papel em suas decisões.
A assimetria só poderia ser resolvida pela substituição do modelo de governança em voga por outro, mais participativo, o que por sua vez só faria sentido prático se softwares e modelos de negócios decorrentes da sua exploração fossem igualmente redesenhados, gerando organizações distribuídas, popularmente chamadas de DAOs, com seus softwares próprios, conhecidos por DAPPs.
O único modelo suficientemente bem desenhado e testado para tanto é o blockchain, que assim ganhou papel central entre os que endossam o raciocínio acima.
A próxima fase da internet, chamada de Web 3.0, deveria incorporar e aprimorar princípios de governança já aplicados pelas fundações e outras comunidades de usuários das diferentes criptomoedas (blockchains) na construção de plataformas digitais e, num segundo momento, na própria arquitetura de base da rede.
A estrutura organizacional destas novas empresas difere das mais tradicionais em quatro sentidos fundamentais:
- Suas ações (tokens) conferem direitos proporcionais nas tomadas de decisão, não havendo um CEO ou qualquer outro agente com poderes suficientes para tomar decisões contrárias aos interesses da maioria;
- O código-fonte do software é livre e está distribuído pelos computadores desses acionistas, não havendo o risco de ser bloqueado politicamente (por exemplo, por um governo descontente) ou pelo interesse comercial em descontinuar o serviço, como foi com o Orkut e tantos outros;
- As ações e outras dinâmicas financeiras funcionam de maneira alheia ao mercado de capitais tradicional, bastando uma carteira digital e uma pequena quantidade de dinheiro para poder participar do dia a dia das tomadas de decisão, ainda que de maneira incipiente;
- A identidade real dos usuários é pseudo-anônima, mas tudo o que acontece no blockchain é público e pode ser facilmente auditável, ao contrário do que ocorre com as big techs.
A blockchainização da arquitetura da internet surgiria da generalização do princípio acima, aliada à criação de novos protocolos para garantir praticidade, sem perder o caráter aberto e distribuído da rede.
Eu vou lhe poupar da discussão técnica, que é complexa. O que interessa saber é que a internet visa transmitir informações com a maior rapidez e menor custo possível, o que representa um desafio para os blockchains, que se destacam pela resiliência em relação a externalidades.
Entusiastas da Web 3.0 respondem a este contraponto dizendo que a tecnologia blockchain ainda está em desenvolvimento e que a eficiência desta vem crescendo exponencialmente, tal como foi o caso com os protocolos essenciais à internet, como o TCP-IP, inicialmente recebidos com ceticismo.
Enquanto isso, o mercado de criptomoedas atinge US$ 3 trilhões, com US$ 25 bilhões em NFTs, só no ano de 2021.
Senões 3.0
Em janeiro deste ano, Shira Ovide (NYT), minha colunista de tecnologia preferida, publicou um artigo dizendo o seguinte: na internet, quase todo mundo trabalha de graça, mas que, de uns anos para cá, algumas empresas passaram a assumir que levar esta assimetria muito longe tende a ser contraproducente.
A principal delas é o YouTube, que hoje direciona mais da metade dos seus ganhos em anúncios para produtores qualificados de conteúdo. Ovide compartilhou um vídeo do produtor Hank Green comparando a monetização neste (boa) com a do TikTok (ruim), que você pode conferir abaixo.
Ao mesmo tempo em que a fatia do bolo destinada aos criadores de conteúdo profissionais aumenta, plataformas como o YouTube vêm incorporando formas mais diretas de monetização (você clica num botão e manda uma grana diretamente para o criador do vídeo), que reforçam a parceria com os criadores.
Isso é facilitado pelo fato de que os anúncios correm sobre os próprios vídeos no YouTube, o que não ocorre no TikTok, que por outro lado tem um fundo destinado aos criadores profissionais.
Outra plataforma frequentemente elogiada pelos produtores é o Twitch, que também distribui 50% do valor coletado para os streamers.
Por estes 50%, as grandes plataformas, garantem que exista audiência —muita audiência— e um ambiente tecnológico de excelência para os produtores.
Ainda não está claro se os custos da adoção de DAPPs serão mesmo inferiores aos já praticados no mercado e se um dia serão descomplicados.
O que se vê hoje em dia são DAPPS dependentes de medidas de segurança chatas, nas quais a monetização é dada em cripto, dificultando o planejamento financeiro na economia da atenção.
"A centralização é conveniente", lembra Aaron Brown, futurista de destaque da Bloomberg.
Este aspecto não pode ser menosprezado em termos sociopolíticos também.
Após uma atitude displicente nas eleições americanas de 2016 e outras ao redor do mundo, plataformas como Facebook, YouTube e Twitter passaram a monitorar muito mais de perto a desinformação, banindo usuários e removendo postagens com informações falsas sobre a covid-19.
Nada disso ocorreria em uma plataforma baseada nos princípios da Web 3.0, exceto se houvesse um plebiscito e a maioria dos votos (definidos pela propriedade sobre os tokens) fossem nessa direção. Difícil imaginar que o combate às fake news seria mais eficiente com este modelo de governança.
A promessa de autonomia, na era das fake news é, sobretudo, a de salvaguardas para as mesmas.
A lógica da descentralização tecnológica por meio de DAPPs também merece ressalvas em relação à capacidade de efetivamente realizar sua missão de democratização financeira e decisória.
Em um artigo famoso entre futuristas interessados em blockchain, Moxie Marlinspike, criador do app de conversas criptografadas Signal, faz as seguintes ressalvas à Web 3.0:
- As pessoas, em geral, não estão interessadas em rodar seus próprios servidores em seus computadores pessoais, preferindo arcar com os custos envolvidos no ato de abdicar dessa opção.
- A comunicação com os DAPPs é feita por meio de APIs privadas, que acessam blockchains como o Ethereum. "Quase todos os DAPPs existentes usam APIs Infura ou Alchemy para interagir com o blockchain (Marlinspike, 2022). Ao invés de distribuir a responsabilidade entre diversas empresas, as plataformas distribuídas jogam tudo na mão de apenas duas.
- NFTs são certificados proprietários armazenados em blockchain, que apontam para as respectivas propriedades digitais a partir de URLs que usam servidores virtuais privados (VPLs), rodando o software Apache ou similar. "Qualquer um capaz de comprometer essa máquina pode mudar a imagem, título ou descrição do ativo digital, mesmo sem acessar o token registrado no blockchain (NFT), já que não há nada no NFT que diga como este deve ser" (Marlinspike, 2022).
Um ponto ainda mais importante do que esses é que a maior parte das DAOs são financiadas por grandes fundos de investimento, que assim controlam a maior parte dos tokens e, consequentemente, do poder decisório.
Como disse Jack Dorsey, em um famoso tuíte de dezembro, "você não possui a Web 3.0. Venture Capitals a possuem. Ela nunca irá escapar deste sistema de incentivos. Em última análise, trata-se de uma entidade centralizada, com um novo nome".
Na sequência, Marc Andreessen o bloqueou na ferramenta. Ele é sócio-fundador do fundo Andreessen Horowitz, que possui a vasta maioria dos tokens da Web 3.0 e que me inspirou a cunhar o bordão: "Web 3.0 é um conceito revolucionário de internet descentralizada que pertence ao fundo Andreessen Horowitz" (Dias, 2022).
Web 3.0 encontra o metaverso
Enquanto a Web 3.0 traz a promessa de uma internet mais transparente e participativa, o metaverso traz a de uma versão mais aderente à maneira como a gente vê o mundo, com sua tridimensionalidade característica.
O metaverso pode ser do tipo aumentado (AR) ou virtual (VR).
O primeiro, mais distante e potencialmente mais amplo, envolve sobreposições digitais sobre a realidade que irão se interpor como um véu entre o aparelho sensorial e a realidade. Frentes de loja e treinamentos dos mais variados serão redefinidos desta maneira.
O segundo, em curso, é o dos ambientes gameficados que as pessoas acessam usando óculos de realidade virtual.
Este último tipo parte de dois modelos de negócios: grandes empresas de tecnologia como Meta (Horizon) e Microsoft (Mesh) e plataformas baseadas em blockchain, como o Decentraland, que lembra um game social de dez anos atrás e que oferece várias rotas de participação.
O Decentraland foi construído sobre o blockchain Ethereum e para participar do mesmo é preciso possuir a criptomoeda Mana. Isso dá direito a opinar nos processos decisórios, como a criação de eventos e banimento de usuários e outros que não parecem interessar à maioria.
Em linha com o que Jack Dorsey assinalou, o DAO do Decentraland conta ainda com um conselho gestor de segurança (SAB) que garante, através de deliberações, que a segurança de contratos representando trocas dentro do ecossistema seja de fato mantida. O conselho é composto por cinco membros inicialmente escolhidos pelos fundadores do Decentraland, mas os cargos são rotativos.
Fora essas coisas, a plataforma oferece minigolfe digital, cassino, shows e muito mais. Ainda assim, a grande maioria está lá pensando apenas em ganhar dinheiro, através de ativos digitais vendidos no marketplace da empresa, como obras de arte e, principalmente, terrenos virtuais.
O valor dos terrenos está subindo rapidamente desde que o Facebook mudou de nome e algumas consultorias apontam que a tendência deve se manter, ao longo dos anos. Em linha com esta perspectiva, surgiu recentemente no Decentraland a primeira empresa de hipotecas digitais.
Minha visão contrasta com esse otimismo todo.
Acredito que estejamos vivendo a primeira bolha imobiliária digital da história, a qual deve estourar em breve.
Uma razão para tanto é que a base de usuários desses DAPPs do metaverso é muito baixa. Por exemplo, enquanto 40% da população mundial (cerca de 3,1 bilhões de pessoas) jogam videogame e a Meta atinge cerca de 3,6 bilhões de pessoas por mês, a base de usuários mensais do Decentraland é de cerca de 300 mil usuários mensais. Só as lojas da Apple empregam 25% mais gente do que isso.
Quando o frisson passar, as empresas invariavelmente irão se perguntar o que fazer com esses terrenos digitais num ambiente digital que ninguém visita. E isso tem chances de gerar uma crise de credibilidade. De qualquer modo, não se deixe influenciar: não sou consultor de investimentos.
O cruzamento entre Web 3.0 e metaverso não é necessário, mas é conveniente para os envolvidos, especialmente fundos, que vêm capitalizando com a expectativa de que estes irão bombar em breve.
Enquanto isso, o que se observa no dia a dia do Decentraland e outros DAOs do metaverso é que as pessoas seguem pouco interessadas nos pontos que enchem a boca dos idealistas.
Elas basicamente querem surfar a onda que está rolando, a qual é em grande medida especulativa.
Para fechar
Estruturas de alta relevância cultural evoluem, sob a pressão dos insatisfeitos com poder.
No caso da internet que existe hoje em dia, os criadores de conteúdo têm importância crucial e existe uma abordagem prática e conceitual bem definida para lhes empoderar: as organizações distribuídas (DAOs), com seus modelos de governança e funcionamento descentralizados.
Porém, junto com o bônus vem o ônus: usabilidade inferior; problemas de coordenação que afetam as estratégias de segurança e marketing; fake news; instabilidade cambial dos tokens, impactando o planejamento financeiro; além, é claro, da própria necessidade de ter que participar de interações que em nada tem a ver com a gravação de vídeos de gatos, receitas ou dancinhas.
Isso tudo sugere que o terráqueo médio seguirá falando mal das big techs, enquanto as escolhe para a postagem de seus conteúdos, monetizados ou não, por um bom tempo.
Se assim for, o mais provável não é que DAPPs, como Decentraland, percam tração e desapareçam, mas que se firmem como opções relativamente nichadas, tal como tantas outras, típicas da Web 2.0 (Twitch, Pinterest, Reddit, etc.). Uma fatia do metaverso virtual estará aí, mas ela deve ser menor do que a corporativa.
Em paralelo, o que já se observa é que as big techs vêm admitindo, cada vez mais, a necessidade de adotar princípios de governança e monetização menos verticalizados.
Ainda é cedo para dizer se isso irá se converter em ações práticas, mas eu acho que sim, especialmente porque se os usuários que não puderem portar seus avatares de um metaverso para outro terminarão com um problema de identidade bastante incômodo, o que servirá de incentivo para abandonar essas plataformas mais restritivas, que assim se sentirão forçadas a ceder.
É irônico que uma das principais contribuições da abertura a uma nova fase da internet seja a circunscrição de uns espaços melhorzinhos nessa aqui mas, no fundo, é o que parece mais provável.
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