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Álvaro Machado Dias

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que é futurismo? Dá para chamar Musk, Bezos e Zuckerberg de futuristas?

Tecnologias que Elon Musk promove talvez nem funcionem direito, mas ele se tornou personalidade da área de ciência e tecnologia - Mike Blake/Reuters
Tecnologias que Elon Musk promove talvez nem funcionem direito, mas ele se tornou personalidade da área de ciência e tecnologia Imagem: Mike Blake/Reuters

13/06/2022 04h00

Bill Gates vem nos alertando sobre o risco eminente de uma grande pandemia, em função da destruição do meio ambiente, avanço das áreas urbanas sobre os reservatórios de vida silvestre e do descaso epidemiológico há quase uma década. Nem por isso, é considerado um futurista. Mas Elon Musk é. Por que será?

E Mark Zuckerberg e Jeff Bezos devem fazer companhia a Musk no clube dos futuristas, como muitos colocam? Acredito que não. Musk efetivamente participa do debate público sobre o que vem a seguir, com teses fortes, coisa que nunca interessou aos outros dois. Só que Musk não segue o script de base do futurismo, que é intelectual por tradição. Ele é mais um promoter do futuro, ou melhor, da sua versão do mesmo.

As tecnologias que Musk promove começam muito mais poéticas do que práticas. Colonização de Marte, túneis com propulsores para cortar o trânsito das cidades em velocidade estonteante, carros elétricos que andam sozinhos e, de maneira ainda mais ambiciosa, a internet do pensamento.

Nada disso funciona direito —ou sequer parcialmente, em alguns casos— e mesmo assim ele se tornou a maior personalidade na área de ciência, tecnologia e empreendedorismo do milênio.

A razão para isso é que Musk exerce hegemonia sobre o imaginário tecnológico, que na prática tem como funções principais satisfazer as demandas por inspiração e entretenimento.

A importância mercadológica dos chamados "early adopters", que é o público disposto a arriscar seu dinheiro pelo sabor de novidade, é crescente desde a popularização da internet.

Esse público movimenta bilhões na economia criativa das bugigangas prototípicas de sites como Kickstarter e Indiegogo e em cripto. São principalmente homens, de 20 a 40 anos, que nos fazem lembrar que o Vale do Silício e Hollywood são o mesmo lugar.

Elon Musk é um herói das redes sociais em terra firme, satisfazendo demandas mais lúdicas do que práticas desse público, cujo imaginário foi forjado no encontro de games com filmes da Marvel.

Futurista raiz

O principal futurista vivo é Ray Kurzweil. Cientista da computação pelo MIT, ganhador de todos os grandes prêmios de inovação e ciência dos anos 1980-2000, empresário de sucesso, investidor, criador de um teclado musical lendário (aqui me incluo como cliente), de um método de ensino conhecido e de mais um monte de coisas. Nada disso faz dele um futurista.

Acontece que, lá pelas tantas, Kurzweil decidiu se dedicar a falar sobre o que ele espera do futuro. E foi isso que acrescentou mais atributo aos seus.

O pontapé inaugural se deu com o lançamento de "A Era das Máquinas Espirituais". O livro é central ao gênero da inteligência artificial diluída em software (o chamado aprendizado de máquina) como ligação com o futuro da humanidade, adotado, por exemplo, por Yuval Harari.

As teses marcantes de Kurzweil são de que:

  1. As tecnologias da nossa era tendem a se desdobrar de maneira exponencial e de que;
  2. O retorno marginal deste processo é sempre crescente.

Traduzo.

Imagina que você comprou uma caixa de bombons maravilhosos. Você come um e sente um prazer imenso. Imediatamente, você come outro. Durante o processo de abrir o terceiro, é capaz que lhe surjam questionamentos. A lembrança de que bombons engordam sai do porão e a motivação decai.

Se fosse possível fazer um PET scan do seu cérebro, veríamos que isso é antecipado pela queda na atividade de neurônios dopaminérgicos e aumento na liberação de serotonina no córtex pré-frontal, característica da saciedade.

Essas reações fisiológicas fazem com que a ingestão de bombons tenha retorno marginal decrescente, o que é percebido como prazer em queda a cada nova unidade consumida.

A sociedade —e especialmente os mercados— costuma ecoar este princípio.

Não adianta soterrar o mundo em bananas. Enjoa. Aliás, como expus em outro ensaio, uma das causas da polarização é o retorno marginal decrescente dos discursos que convergem à sensatez, dado o fato de que se somam a outros tantos.

Aplicado às nossas invenções mais notáveis —que é o que conta para a ideia de "evolução tecnológica"— o princípio indica que elas invariavelmente estancam. Um exemplo seria a roda, que pouco evoluiu nestes últimos milênios, e assim se tornou uma espécie de renda fixa do progresso, com sua taxa de retorno ligeiramente inferior à devida pela passagem do tempo ou inflação.

Kurzweil não vê as coisas dessa maneira. Para ele, estamos numa era em que a roda, que no caso é a inteligência artificial, irá nos pagar tributos crescentes, por tempo indefinido.

Natureza das previsões

Por que, em especial, Bill Gates prevendo uma pandemia faz papel de visionário e Kurzweil prevendo a singularidade faz papel de futurista?

Eu acredito que a resposta se desdobre em dois níveis, um ligado à natureza das previsões e outro ao papel das mesmas no mundo. Hoje vou falar sobre a natureza das previsões.

A área em que prever o futuro vale mais é a financeira. Quantidades obscenas de dinheiro estão em jogo nas apostas sobre as subidas e descidas das moedas no Forex, a bolsa das moedas, a maior do mundo (conheça aqui), assim como no mercado de ações.

Dimensões do acesso temporal como latência do servidor e conectividade criaram um negócio paralelo nas negociações em bolsa, dada a importância do tempo nas transações diárias (veja aqui).

Linhas de pensamento sobre o comportamento dos mercados foram construídas a partir de uma mesma pergunta: como reduzir um pouco a incerteza sobre o seu comportamento futuro.

A metarresposta é que a passagem do tempo injeta mais incerteza no sistema financeiro do que podemos processar e é sintomático que o computador quântico tenha entre seus principais entusiastas e early adopters os bancos de investimento.

A mesma coisa se repete no mundo das previsões climáticas e outras. Isso acontece porque esses são fenômenos de alta frequência, mudando de direção de maneira frenética.

Agora, tome a maneira como Warren Buffett aborda o mercado. Para ele, não importam tanto essas variações diárias, quanto a rentabilidade e boa gestão de uma empresa.

Parece simples separar os dois recortes: um olha segundo a segundo, enquanto o outro usa escalas anualizadas.

Na realidade, não é assim. Aquilo que acontece dia após dia no mercado de ações tem relações profundas com as chances de sucesso de uma empresa.

Não se trata de oito ou oitenta como muita gente assume. Tanto é assim que Buffett trabalha com vários indicadores micro e macroeconômicos, entre eles o que criou e que lhe deu fama (que você pode conhecer aqui).

No clima é a mesma coisa. As variações climáticas, recordes de temperatura e afins dizem algo sobre o clima no sentido mais amplo e, por mais que uma parte dos físicos e meteorologistas se preocupe mais com as séries de alta frequência e outros com a evolução do clima, ninguém em sã consciência trata deste segundo assunto sem olhar para o que acontece no dia a dia.

Futuristas não se preocupam com o futuro de curto prazo, a próxima hora ou o dia de amanhã, mas com o Futuro.

Não é possível determinar a janela temporal em que o futuro passa a ser Futuro, já que ela varia ao longo da história e de intelectual para intelectual.

Porém, tomando a geração atual como referência (sobretudo Kurzweil e o famoso filósofo e futurista Nick Bostrom), poderíamos dizer que o futurista fala de coisas que estão a pelo menos quatro anos de distância.

Dados esses quatro anos, a primeira premissa instrumental do futurismo é de que o Futuro não é um fenômeno determinado por aquilo que se observa no plano da alta frequência. Ou seja, o que acontece no dia a dia dos mercados, patentes e índices socioambientais conta pouco para o futuro.

O que vale mesmo são as invenções. É predomínio absoluto das máquinas sobre as mentalidades.

Futuristas são fundamentalistas das patentes, que acreditam que o mundo vai ser transformado em consonância com as patentes de maior visibilidade. Isso explica porque 10 entre 10 (9 entre 10 porque, desde que me toquei disso, mudei minha abordagem) falam sobre IA, metaverso e cripto.

Minha sensação analisando os discursos, livros, TED Talks, entrevistas dos maiores futuristas é de que essa é uma área que funciona como se Warren Buffett decidisse ignorar por completo o dia a dia do mercado. Crises, incertezas, pandemia? Nada disso afeta o discurso sobre o futuro do trabalho e outros temas tipicamente tratados pelos futuristas.

Em contraste, uma segunda característica do futurismo tal como atualmente constituído é a ausência de qualquer espaço para esses cisnes negros. Futurismo é onde os eventos raros vão para morrer.

A colonização de Marte de Musk parte da premissa de que a passagem do tempo será um prolongamento das dinâmicas energéticas e ambientais de hoje em dia.

A visão da substituição do trabalho pela IA considera que as profissões do futuro irão nos colocar sob o mesmo macacão fabril do século 20, ao passo que o transhumanismo adota um entendimento sobre o desejo que presume um mundo em que os incels tornaram-se hegemônicos e transar com robôs é o que há.

Talvez sejam verdades. Aceitá-las só depende da tese de que o futuro não é nada mais do que um prolongamento das tendências atuais mais vistosas, em sentido a paroxismos baseados em patentes.

Do futurismo ao futurista

Até há pouco, não se falava em futurista, mas só em futurismo. Esse foi um movimento estético do começo do século passado, que celebrava a velocidade e a beleza da máquina industrial.

O movimento foi mais italiano do que global e seu legado artístico é menos lembrado do que seu manifesto, encabeçado por Filippo Marinetti, ilustre entusiasta das ideias de Benito Mussolini.

Marinetti e seus amigos não estavam preocupados em saber onde essa coisa toda iria dar —numa parceria com Hitler, por exemplo—, o que lhes interessava era o direcionamento simbólico do motor à explosão em direção à decadência cafona da arte do final do século 19.

Eles eram futuristas de um tipo que não se dedica a pensar sobre o que de fato o futuro prepara, mas a celebrar uma aura vinda das tecnologias do presente, e fizeram isso enquanto seu país corria atrás da segunda revolução industrial. Eis o porquê de serem tão afirmativos e nacionalistas.

O primeiro futurista na acepção moderna do termo foi Alvin Toffler. Antes dele, na década de 1940, Ossip Flechtheim cunhou o termo futurologia e descreveu como seria esse campo em que se especula sobre o futuro, mas o debate criado acabou ficando restrito ao mundo acadêmico.

Já Toffler era um intelectual, mas também um cara de negócios. Ele foi editor da revista Fortune e se destacou como um dos consultores de inovação mais conhecidos dos anos 1970-1990.

Toffler publicou um bestseller, "Future Shock", que apresenta a tese de que a velocidade das mudanças tecnológicas era elevada demais e a quantidade de informações com que cada um tem que lidar tinha saído do controle, deixando as pessoas perdidas e atônitas.

Isso representaria uma espécie de "choque com o futuro" (eis a razão de ser do título), o qual daria o tom para boa parte dos problemas sociais americanos da época. Vale notar que o livro saiu em 1970, no turbilhão dos protestos pelo fim Guerra do Vietnã.

Outra tese do livro, essa sim tipicamente futurista, é a de que as economias avançadas estavam migrando para modelos societários pós-industriais.

Em estrito senso, pós-industrialismo é sinônimo de estrutura econômica baseada em serviços, setor que no Brasil atual é responsável por mais de 70% do PIB.

Porém, mais profundamente, o que lhe chamava a atenção eram a taxa de inovação crescente entre consumíveis e o aumento de importância dos adolescentes para as dinâmicas sociais hegemônicas.

A sociedade pós-industrial seria definida pelo consumo de bens não duráveis e serviços, empacotados para agradar um público cada vez mais jovem, que estava deixando para trás o comprometimento existencial com as empresas. O subtexto envolvia nomadismo e globalização.

Toffler foi hábil na caracterização de tendências que iriam dar o tom das décadas seguintes à publicação do livro, deixando o bastão pronto para que Kurzweil e outros o pegassem e direcionassem o foco para as coisas desse milênio: web, algoritmização comportamental e inteligência artificial.

Estas encontraram seu espaço no debate sobre o futuro da humanidade a partir de conceitos como singularidade (o momento em que as máquinas irão se tornar tão inteligentes quanto as pessoas), transhumanismo (a hipótese de que iremos incorporar estruturas sintéticas no corpo até mudar-lhe em essência) e da premissa de que a colonização interplanetária seria necessária, dado o caráter irrefreável da destruição do planeta, cujo expoente é Elon Musk.

Assim nasceram o Instituto para o Futuro da Humanidade (Oxford, 2005), que é dirigido por Nick Bostrom, e outros mais.

É como uma cartomante?

Futuristas costumam adentrar a esfera pública de maneira dogmática, a partir de visões míopes da história e entendimentos do progresso já superados nos mercados de ideias mais avançados.

Suas narrativas costumam falhar no estabelecimento de conexões relevantes entre o mundo com suas desigualdades, seus conflitos geopolíticos, a evolução no tratamento do meio ambiente, etc. e aquilo que se profetiza.

Para os principais futuristas, o mundo parece muito mais definido pelas patentes que o Google lança do que pela realidade social que as assimila e lhes dá sentido.

Em paralelo, falta uma teoria futurista versada no tratamento do imponderável.

Isso é de se entender. Imagine uma visita a um cartomante que vaticine: "seu futuro diz que você iria ficar rica, mas isso não deve acontecer em função da crise econômica sem precedentes, que deve dar o tom ao longo dos próximos anos". Ninguém volta.

O problema é que não dá para discutir o futuro com seriedade, ignorando os conceitos mais valiosos criados para se falar do mesmo. Enquanto o futurismo soar como trabalho de cartomante seguirá tendo baixa relevância intelectual, por mais que as tendências identificadas não sejam disparatadas.

Toffler teve muito mais sucesso em vida do que postumamente. Pessoalmente isso é bom, mas, do ponto de vista da história do pensamento, indica que suas teses não envelheceram tão bem.

Outros não passaram perto. Mesmo assim o futurismo cresceu, nos seus termos, exponencialmente.

A hegemonia que exerce na mídia, eventos e afins, a qual não é apenas ocidental, mas também asiática, tem mais a ver com o acoplamento satisfatório com as aspirações por conhecimento de uma geração criada na internet do que com a profundidade com que é tomado pelos maiores intelectuais vivos, seja na economia, na psicologia, na antropologia ou mesmo no MIT.

Porém, isso não significa que Elon Musk seja uma topeira. Óbvio que não. Há algo profundamente intencional nessa abordagem; só não vê quem não quer.

O futurismo tem papéis claros a exercer no mundo. No próximo ensaio, irei mostrar quais são.