Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Por que número de seguidores tem poder de transformar você em outra pessoa?
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Historiadores antigos, como Eusébio de Cesareia ou Agostinho de Hipona, criaram o conceito de providência, para explicar com a natureza das coisas se ajustava perfeitamente. Algo como "quando você estiver preparado uma força maior colocará exatamente o que você precisa no seu caminho".
Aplicada à história natural a noção permite chegar em conclusões mirabolantes como a de que estes seres que voam foram providencialmente dotados de asas. Ou seja, uma inversão lógica óbvia entre o fato de que eles voam porque tem asas e não que eles têm asas porque voam.
O providencialismo foi aposentado na teoria da ciência e na filosofia da história, mas continua ativo em nossa pequena metafísica cotidiana.
Pensemos no exemplo das novas celebridades criadas exclusivamente a partir do número de seguidores em plataformas digitais.
O primeiro fato surpreendente é que elas não são meras extensões de figuras poderosas ou influentes na realidade pré-digital.
Contra todas as expectativas de minha geração, que acreditava que as coisas e relações do mundo real iriam gradativamente ser traduzidas ao mundo digital, criando uma espécie de equivalência entre o macrocosmos e o microcosmos, o surgimento de certas notabilidades digitais sem correlato fora das plataformas onde habitam, bem como a dificuldade de muitas instituições e pessoas consagradas fora da rede em se fazerem reconhecer dentro da rede mostra que estamos diante de um problema que envolve a misteriosa lei da transformação da quantidade em qualidade.
Ou seja, até certo ponto, o impulso inicial dos seguidores digitais deriva da comunidade de referência daquele personagem. O fato dele ser reconhecido por sua comunidade de origem como amigos e familiares ou por alguma função pública ou institucional lhe fornece um capital simbólico inicial.
Mas uma dificuldade para entender as reviravoltas do misterioso mundo digital é que seu tamanho não é muito bem dimensionado pelos participantes da conversa. Como saber a quantas e quais pessoas a sua postagem alcançará? Há algoritmos, replicações, tagueamentos, trending topics, sem contar ações diretas para aumentar o tráfego.
A não ser que você seja um profissional em big data, a complexidade das mediações e dos cenários nos impede de perceber realmente quem e quantos estão presentes em nosso auditório particular digital. Isso implica que, de fato, não sabemos a quem e quantos estamos realmente respondendo.
Podemos especular, a partir de regras mais ou menos genéricas, envolvendo a proporção esperada entre o tópico e o número de curtidas, qual seria a nossa gramática específica de reconhecimento. Aqui entramos na zona nebulosa em que os negócios se confundem com as pessoas. Zona que tem levado muitos youtubers a depressões crônicas e a interrogar o verdadeiro sentido do algoritmo.
Nosso problema pode ser colocado mais ou menos assim: a partir de qual quantidade de seguidores, sua qualidade como personagem sofre uma mutação a ponto de você se tornar outra pessoa: um influencer, youtuber, pessoa notabilizada, celebridade ou subcelebridade.
Esse ponto de virada é muito importante pois significa que você deixou para trás as relações "pessoais" dotadas de "rosto" e "perfil" mais ou menos delimitado entrando na nova esfera onde a progressão dos números criam novas qualidades de seres.
Voltamos ao providencialismo.
Você não tem mais seguidores porque é representativo de "x" ou "y" predicado, mas você manipula, define ou modaliza o predicado "x" ou "y" porque tem muitos seguidores.
Isso permite que seu canal seja mais monetizado, incluído em rankings mais favoráveis seguindo a execrável lei de Matheus: "quem muito tem, mais lhe será dado, mas aqueles que pouco têm, mesmo estes pouco lhes será tirado".
Há um efeito secundário de empoderamento derivado desta mutação da quantidade de seguidores para a qualidade do protagonista. Os outros supõem que a pessoa saiba as razões de sua própria multiplicação mágica, ou seja, aparece um efeito que a psicanálise chama de sujeito suposto saber.
A tentação de identificar-se com este sujeito, acreditando realmente que se trata de uma qualidade original diferencial, um traço personológico, um estilo idiossincrático, um saber divinamente investido é grande. Mas é exatamente assim que regressamos à nossa metafísica particular, cujo centro é sempre o narcisismo desconhecido e sua mítica providencialista do "escolhido".
Mais ou menos como aquele jovem psicanalista que acha que quando o paciente lhe faz elogios é ele mesmo que se tornou um super-herói do inconsciente. Inversamente quando criticado cairá em miseráveis e devastadores estados de rebaixamento da autoestima.
No fundo sabemos que a "eleição" de um canal em vez de outro tem mais que ver com a forma como o Outro escolhe do que com os nossos traços de qualidade.
São milhões de ofertas erráticas e contingentes, propostas dia a dia, para que surja, por exemplo, um fenômeno como o "gordinho do outfit" (um garoto de dez ou doze anos que descreve a marca e preço das roupas que está vestindo para o deleite de outros jovens interessados em se vestir de maneira calculadamente despojada). Por que este e não outro?
É aqui que somos tentados a cair na teoria da providência. Ele tem asas porque voa ou voa porque tem asas? O truque psicológico aqui é que quando olhamos as coisas no sentido do eu para o outro, tendemos a privilegiar a quantidade, e quando olhamos as coisas do outro para o eu, acentuamos a qualidade.
Tendemos a incluir o outro em grupos e categorias (comparáveis e contáveis entre si) e a julgar a nós mesmos segundo traços de qualidade (incomparáveis e singulares). Daí a tendência a não enxergar em nós mesmos os erros dos quais acusamos os outros, ou seja, porque no fundo eles não são o "mesmo erro" do ponto de vista da passagem da quantidade para a qualidade.
Ora, no mundo digital, assim como nos seus efeitos, particularmente de natureza neoliberal, tudo o que puder ser substituído será substituído, tudo o que deu certo será multiplicado, tudo o que foi feito com sucesso uma vez será repetido de modo mais barato. Há uma única substância que não se consegue replicar controlando perfeitamente o processo: o prestígio.
Se olhamos novamente para o preceito bíblico de Matheus percebemos que ele compreende um truque retórico: quando se fala em "quanto mais" pensamos imediatamente em seres contáveis por meio de medidas e números, do tipo dinheiro ou curtidas.
Mas o apóstolo não está se referindo a isso. Ele não está dizendo que se você tem dinheiro, será mais fácil conseguir mais dinheiro (ainda que isso possa ser verdade também), mas sugerindo que se você tem fé, mais fé lhe será dada, e se você tem pouca fé, mesmo este pouco lhe será tirado. Ou seja, ele está introduzindo a pitada de intangível no universo da comparação e da contabilidade indiferente. Ele está mostrando como o quantitativo se transforma em mudança de qualidade.
A filosofia contemporânea aborda esse problema a partir da noção de "propriedade emergente", ou seja, a partir de um certo nível de complexidade do sistema. Da quantidade de elementos e relações envolvidas surgem novas propriedades que tornam o sistema irredutível ao estado anterior.
Por exemplo, como muitos acompanham, estou me tornando careca. Isso começou naturalmente quando um fio de cabelo caiu. Mas ninguém fica careca por um fio de cabelo a menos. Nem com dois. Nem com três ou quatro. Contudo, virtualmente sabemos que chegará o dia inexorável em que um único fio a menos representará a diferença entre meu antigo e cabeludo estado de ser e a irreversível, senão miserável, condição de "carequice".
Percebam como esta lei se aplica a processos de transição cruciais em nossas vidas: mudança de classe, passagem de uma idade da vida para outra, percepção de pertencimento a raça e até mesmo gênero. Isso ocorre porque tais processos dependem eminentemente de leis de reconhecimento, não apenas da acumulação contábil de traços.
A passagem da quantidade para a qualidade obscurece a sua identidade com o processo inverso, que esteve sempre em curso: a transformação da qualidade em quantidade. O olhar economicista, que domina o funcionamento do neoliberalismo como gestão do sofrimento, está fixado neste ponto de vista, esquecendo-se que a lei inversa está sempre aí a produzir exceções improváveis.
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