Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Como sua consciência individual influencia todo mundo no combate à pandemia
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O maior desafio mundial hoje em aceitação de tecnologia é o Brasil. A prestimosa revista "The Lancet", conhecida ao lado de "Science" e "Nature" como as mais consagradas em ciência, apontou em editorial recente que a psicanálise deveria ser mobilizada para entender e reverter o negacionismo, expresso nominalmente pela "não aderência de pacientes a recomendações médicas".
Venho defendendo que o enfrentamento do negacionismo envolve uma pré-diagnóstica que considere que nem todas as negações são iguais e nem todas respondem ao mesmo funcionamento psíquico.
Há negacionismos clínicos, que decorrem de condições delirantes, onde há uma verdadeira "impossibilidade psíquica" de aceitar certas ideias e práticas.
Considere, por exemplo, alguém que há vinte anos está perfeitamente convicto de que as vozes que ele escuta recorrentemente são uma espécie de rádio instalado por potências governamentais para controlar a mente das pessoas.
Considere agora que esta condição se cruze com a de um outro tipo de negacionista, que é aquele que está se aproveitando de uma indisposição política para semear o medo nas pessoas, a desconfiança contra o Estado e daí faturar em cima da própria proteção miliciana que ele pode oferecer.
Neste segundo caso há uma instilação estratégica da dúvida: "cuidado, nunca se sabe o que os chineses estão fazendo em termos de tecnologia, imagine então as vacinas?". E o Butantã, aquele instituto ali perto da USP, onde ninguém sabe direito o que acontece, com aquela gente fumando maconha e fazendo festas suspeitas. O cruzamento entre a certeza do primeiro negacionista e a dúvida do segundo redunda na convicção mista de que vacinas podem não ser tão confiáveis assim.
Devemos introduzir aqui um dado interessante proveniente da experiência realizada na cidade de Serrana (SP) de vacinação de toda a população. Ali, a rejeição real à vacina, diante da oferta real de amostras, foi de 3%, ou seja, muito menor do que o patamar de 15% a 20% encontrado para a atitude genérica e discursiva das pessoas diante da vacinação.
A situação muda de figura quando falamos de uma prática continuada, como uso de máscara, isolamento em domicílio e distanciamento social.
Aqui surge uma espécie de gradiente de aderência, ou seja, quanto mais nos dedicamos à rotina de cuidados, maior a chance de influenciarmos aqueles que estão à nossa volta a fazermos o mesmo.
Por outro lado, a mesma aderência por contágio de confiança pode nos ajudar a entender por que, sob certas condições, pessoas conscienciosas, violam as recomendações sanitárias.
Por exemplo, uma pessoa deste tipo recebe um convite para uma festa, ela supõe que a amiga, justamente por ser amiga, está cumprindo rigorosas restrições de quarentena. Ela chega à festa, naturalmente portando sua máscara e para sua surpresa a festa inclui muito mais pessoas do que ela havia suposto no começo e que todas elas estão sem máscara.
Ela fica inicialmente contrariada, mas logo em seguida pensa, e se autoengana: "estas pessoas são como minha amiga, logo posso confiar nelas. Se elas estão sem máscara é porque estão em restrição de deslocamento."
Desta forma, depois de algum tempo, ela está compartilhando copos e beijos, imaginando realmente estar protegida por uma bolha de "gente como a gente".
Ou seja, o negacionismo cultural, que procede de nossa ancestral lógica de condomínio, acaba por contaminar massivamente uma bolha da saúde.
Outro aspecto dramático de nossa ineficiente resposta social ao covid decorre do fato de que nós nos cuidamos coletivamente uns dos outros, e este cuidado é atravessado por relações de autoridade.
Fábricas inteiras onde os líderes desconhecem o uso de máscaras agem coercitivamente influenciando seus trabalhadores a replicar a displicência. Neste caso, a possibilidade de que um subordinado levante a objeção sanitária será interpretada imediatamente como insubordinação.
Contudo, em cenários como este uma pessoa faz toda a diferença. A manifestação de apenas uma pessoa, gera um efeito "12 Homens e uma Sentença", no qual a dúvida começa a agir e se multiplicar, chamando cada qual para sua consciência individual.
A diferença entre "todo mundo" e "todo mundo menos um" pode ser de 100%. Deixar de vender ou deixar de comprar daquele sem máscara pode ser, para aquela vida, a diferença que faz diferença. Buzinar para aquele corredor sem máscara pode ser o último toque brechtiano antes do despertar.
Mas pode ser que nada aconteça? Não, porque independente dos efeitos no outro, algo já terá acontecido com você. Você terá feito sua parte.
Fica aqui a constatação de que a famosa preocupação com o coletivo não é um pensamento de massa, aderente por regressão cognitiva e intimidação, mas justamente a capacidade de preservar sua consciência individual de modo forte o suficiente para manifestá-la e defendê-la de modo coletivo.
Digo isso porque me parece ter chegado a hora das pessoas comuns assumirem sua participação no enfrentamento da covid em seu momento mais grave. Isso pode significar desobediência civil, mal-estar e contrariedade, bem como ultrapassagem dos costumes correntes.
Temos um exemplo paradigmático no caso de uma juíza em Guarulhos que passa a fazer suas audiências de forma virtual, porém com a presença do querelante e de seu advogado no escritório do advogado. Isso significa indiretamente que o trabalhador muitas vezes teve que tomar um transporte público e se submeter a aglomerações.
Mas as contingências dramáticas, geradas por seu desemprego, forçam a situação. Não obstante, no escritório do advogado, não se observa nem o distanciamento social, nem o uso de máscaras. Depois de solicitar que as medidas cabíveis fossem tomadas, e recebendo sucessivas negativas dos envolvidos (afinal, cada um tem o direito de cuidar-se ou de descuidar-se como bem entende), a juíza decide suspender a audiência.
Precisamos de mais gestos deste tipo. Não é mais suficiente lamentar a ausência de organização e unidade nas recomendações sanitárias, precisamos de atos de desobediência moral, que ao mesmo tempo são atos de criatividade ética.
Aqui vai uma distinção importante quando se trata de formar uma ética da crise em contexto de crise da ética, ou seja, a moral é esta reprodução irrefletida de costumes e práticas, fortemente influenciado pela suposição que fazemos de como os outros estão cumprindo ou descumprindo regras.
Ou seja, do ponto de vista moral se eu tenho a "impressão" de que todos estão obedecendo ou desobedecendo isso importa para a justificação de meus atos, mas a ética é de certa forma a crítica e o distanciamento circunstanciado da mera moral. A ética é um dos caminhos, mas não o único, pelo qual a moral pode ser transformada.
Na discussão, ainda corrente, sobre a abertura ou fechamento das escolas argumentos de todo tipo foram mobilizados contra ou a favor do retorno, com ou sem protocolo de risco e segurança.
A indisponibilidade de recursos sanitários de cada escola (algumas sem água encanada, por exemplo) acabou muitas vezes encoberta por discursos de proteção aos professores.
Julian Fuks, em artigo memorável, lembrou do sofrimento das crianças, longe de amigos em um momento decisivo da formação da sociabilidade. Mas na condução do processo, ministros, governadores e prefeitos, entre declarações contraditórias, erráticas e incertas, acabaram deixando a decisão muitas vezes nas mãos das escolas. Isso aumentou dramaticamente o nível de conflito com professores e pais, diluindo de forma cada vez mais capilar decisões que são sempre aproximativas do ponto de vista dos seus fundamentos.
Durante todo este processo sempre pensei que se há uma força civilizatória ainda não convocada neste país, esta força são crianças e adolescentes, que podem, como tantas vezes educar ou reeducar seus pais.
Parei de fumar quando minha filha iniciou uma campanha cerrada, municiada pela escola. Mudei hábitos de consumo e de uso de água, por motivos análogos.
Muitas vezes, ao longo dos tempos, tive que me dobrar a autoridade sanitária provinda dos pequenos que, apoiando-se na escola, urbanizavam nossa displicência moral.
Neste momento é este tipo de desobediência moral, na qual devemos contrariar hábitos corrente, de que os mais jovens obedecem aos mais velhos.
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