Topo

Blog do Dunker

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Carta antiga a Contardo Calligaris diz muito sobre militares no poder hoje

Psicanalista e escritor Contardo Calligaris morreu aos 72 anos na última terça-feira (30 de março) - Bruno Santos/ Folhapress
Psicanalista e escritor Contardo Calligaris morreu aos 72 anos na última terça-feira (30 de março) Imagem: Bruno Santos/ Folhapress

02/04/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Observação: o tema desta coluna foi uma homenagem a Contardo Calligaris, e por isso seu conteúdo foge um pouco ao escopo das abordagens sobre ciência, tecnologia e contemporaneidade que abordamos aqui. Voltaremos a esses temas nas próximas colunas.

Durante 16 anos fui analisante, supervisionando, aluno e leitor de Contardo Calligaris. Contardo analisou gerações e culturas com o mesmo carinho no coração e rigor nas palavras. Lúcido, tinha sempre um giro a mais na conversa, uma sacada inesperada, uma piada capaz de fazer você se sentir subitamente íntimo e ao mesmo tempo um estrangeiro em sua própria pele. Ele tinha a fotografia da alma na ponta dos dedos e era um humanista crítico como não existem mais.

Muitas de suas colunas atravessaram nossas sessões e algumas delas evoluíram para controvérsias públicas. De vez em quando eu lhe escrevia contracolunas, iradas ou amorosas, que ele recebia com seu inconfundível humor. Agora que ele se foi sinto ainda mais falta destas tertúlias.

Em sua homenagem publico aqui uma de minhas cartas. O contexto é a guerra do Iraque e a eleição presidencial americana de 2008, que opôs o herói militar John McCain ao inesperado e inédito candidato democrata Barack Obama.

Era uma época em que Contardo vivia em Nova York e vinha, uma semana por mês, analisar seus pacientes brasileiros. Apesar de anarquista comportado e de ter uma longa história à esquerda, Contardo era frequentemente criticado por seu americanismo e gostava de polemizar em cima disso.

Sua coluna "Comandante McCain" incendiou os espíritos locais ao parecer pender para o republicano. O texto recobrou uma atualidade inesperada ao discutir o problema do efeito militar sobre a política civil, problema ascendente no Brasil de 2021.

***

O combate entre burros e elefantes continua. Situemos a floresta. As crônicas de Contardo Calligaris na Folha de S.Paulo podem ser divididas em colunas dóricas, a saber aquelas bem torneadas que seguem em sentido canelado e retilíneo rumo ao alto em ascese demonstrativa.

Ao final sabemos exatamente o que sabíamos antes, mas agora sabemos melhor. Efeito de descoberta pelo qual se vê o fio vermelho do assunto ... mais claramente. Mehr Licht ! (mais luz). O que bem se concebe claro se enuncia —lema dórico.

Incluem-se aqui quase todas as colunas fílmicas, teatrais ou estéticas. Estão aqui também a peça sobre "O Homem da Tarja Preta" e suas aventuras artístico-esportivas na cobertura da Olimpíada de Sidney.

De outro lado da arquitetura textual calligariana há as colunas jônicas. Nelas há estilo sinuoso, ironia e indeterminação, talvez impressionismo, como convém à crônica e não tanto ao ensaio, como sói aos dóricos. Assentada sobre uma base rebuscada, a coluna jônica imita um traje feminino (o quintão), assemelhando-se ao penteado hitita ou oriental de onde deriva.

Aqui o efeito é de invenção, provocação ou epifania. Exemplo típico, de influência estoica em nosso autor: ver de perto ... ver de longe, estar à altura de sua própria morte. Ver entre os anjos e folhas de parreira aquela pequena gárgula dissonante. Ver o gorila no meio da sala, ou a floresta além das árvores, a criança no adulto.

Os manuais de arquitetura da antiguidade rezam que devem ser 44 frisos para as colunas jônicas e no máximo 20 para as dóricas. As colunas mais antigas eram mais jônicas, argumentativas e verticais, com o passar do tempo as dóricas foram se impondo, junto com a flexibilização de seu estilo.

Finalmente há as colunas salomônicas. Espessas, carregadas nos dados, informativas e geralmente orientadas para assuntos que envolvem lógica da decisão em ato. Aqui nosso autor de "Hello Brasil" parece ter definitivamente desembarcado em terra brasilis e estar disposto a entrar nas confusões locais. Lembremos que elas não remontam aos tempos bíblicos, mas à imaginação dos arquitetos barrocos que tentavam produzir o efeito de movimento e retorção.

Ao contrário das colunas jônicas ou dóricas, que trabalham às dezenas, as salomônicas reduzem-se a duas (Boaz e Jachin). Nas colunas salomônicas não se trata da formação de uma atitude nem da invenção de um juízo improvável, mas de acirrar o paradoxo e quiçá resolvê-lo em dialética prática, como no caso José Celso Martinez contra Silvio Santos ou na questão dos outdoors de São Paulo.

Tal qual Salomão, ou Kohlberg, aqui o problema é saber onde cortar a criança para extrair a verdadeira mãe. É caso de seus escritos depois da estadia em Timor Leste, mas também da maior parte das colunas autobiográficas.

A coluna sobre o "Comandante McCain" (25/10/2008) parece ser uma versão pura do caso tipo salomônico.

Merece um exame circunstanciado, pois revela a disciplina de método em nosso autor. Tema sensível tendo em vista seus críticos que facilmente farejarão traços de americanismo conservador e individualismo liberal. Tema extemporâneo, algo distante das searas psico-sócio-estéticas que cativaram público fiel e onde nosso autor costuma aplicar habituais goleadas. Exceção feita ao caso Lars Von Trier ("Dogville"), onde o método salomônico foi aplicado a um assunto jônico.

O título de sua última compilação assinala a ascensão das salomônicas: "Quinta Coluna". Ironia jônica com a hipótese de traição (levantada, no Brasil, contra japoneses, alemães e italianos durante a Segunda Guerra), literalidade dórica alusiva a seriação, mas, sobretudo, sinal da aventura improvável, anarquista e revolucionária da Coluna Prestes.

Na jugular dos que se acreditam proprietários da crítica, donos da esquerda e concessionários de toda e qualquer forma de oposição. Os mesmos que pretendem empurrar a psicanálise para a cozinha ... ou para a senzala. Mesmo que nosso autor prefira anos de tortura vietcongue antes de confessar sua aderência pregressa a grupos e identidades deste tipo.

Senão vejamos como funciona ...

(1) Eleições americanas. A abertura do texto monta uma contradição: por que em tempos de crise na economia quase metade da população está tendente a alguém que declara e confirma sua inépcia no tema? Não faltam indecisos, mas neste cenário caosmótico o problema é saber justamente quais os termos formativos da indecisão.

Quais seriam as categorias que organizam a divisão subjetiva: negros ou brancos, velhos ou novos protestantes, do sul ou do norte, do novo ou do velho, heróis ou comuns, da casta dos militares ou da casta dos intelectuais free economics (atualmente reduzidos à freak - comics em terra de ninguém)? O parágrafo termina com a confirmação da alternativa escolhida: economia ou guerra. A bolsa ou a vida.

(2) Já podemos contar então com o argumento fácil a ser evitado: um povo em guerra escolherá o senhor da guerra. Mas como vemos em diversas colunas, especialmente as salomônicas, esta se trata da falsa solução necessária O mordomo se entregou fácil demais.

McCain admitiu e praticou sua inépcia em matéria de economia. Dada a alternativa anterior isso só pode significar o triunfo da guerra sobre a bolsa. Entre dois problemas cruciais, e de fato interligados, o que deve vir primeiro é o conflito armado. Sua vitória ou solução liberaria os recursos morais e econômicos para uma nova era de prosperidade.

Segue-se a lembrança de que McCain é percebido no phisique de role. Filho de ... escolheu por ... (voluntariamente), feriu-se em nome de .... Um típico representante da lógica do sistema de liberdades positivas tão ao gosto de Shelling, Fichte ou Hegel.

Ele era livre para fazer qualquer coisa com sua vida, mas escolheu o que era necessário, e o fez livremente. Aqui se poderia logo ver uma tática de contrastes com Obama, que representaria a tradição francesa da liberdade como ato transgressivo, da liberdade como emergência do que parecia impossível, o impossível que acontece.

O limite dá a liberdade: velho, cansado, doente, McCain já fez a sua parte, mas ainda assim é capaz de escolher o necessário. Nosso herói parece saído das páginas do idealismo alemão ou da mitologia americana do xerife aposentado que volta para colocar ordem na cidade. John Wayne, Stalonne, Bruce Willis, figuras da metafísica do retorno. Daí que seja necessário e não meramente contingente para nosso personagem que ele se apresente como inepto em termos de economia. Quando for para perder, faça-o logo e sem hesitação - diz o bridge. Ou seja, a lei geral da economia dos dotes e habilidades: "se sou um imbecil nesta área é porque drenei todas as minhas energias para outra coisa, neste caso, a guerra".

Neste caso a confissão de fraqueza é a afirmação de especialização. A ressonância com a epistemologia Rumsfeld é cativante (há as coisas que sabemos que sabemos, as que sabemos que não sabemos, as que não sabemos que sabemos e as temíveis e extraordinárias coisas que não sabemos que não sabemos).

Examinando a lógica das projeções Calligaris pretende inverter a expectativa de que McCain seja de fato percebido como um herói guerreiro, sedento de sangue e vingança. "Que mais os americanos poderiam querer no meio de uma guerra?"

A perspectiva é controversa, pois assume que se há empate técnico entre os candidatos nas pesquisas, infere-se que quase metade da população americana deseja alguém que possui tais ou quais atributos. Ora, que fique de fora o voto cruzado (posicionalmente contra Obama ou McCain), o efeito Bradley (diz que vai votar em xis intimidado por confessar ao pesquisador vergonhosas motivações de escolha), a tendência ao emparceiramento das tendências (qualquer concorrência, a longo prazo, tende a se reduzir à 50% - 50% - vide Folha e Estado) e até mesmo a divisão remanescente da última eleição (francamente vexatória para a autoimagem da maior democracia do mundo).

A hipótese é alternativa e não interfere no argumento, mas é possível que os 50% de McCain sejam compostos pelo que chamo de cinismo de resultados, ou seja, a tendência a ajustar sua crença diante da posição virtualmente ganhadora. Em outras palavras, duvido da força de convicção do voto em McCain, daí que Sarah Palin seja um fenômeno, ela acrescenta o grão de realidade necessário para que possamos acreditar em algo que sabemos falso (à luz de nossas própria convicções).

(3) Renversment— "a coisa é menos óbvia do que parece". A ilação entre problema militar logo militar na presidência é historicamente frágil. Aquele que sabe obedecer (soldado) nem sempre é o melhor para mandar (presidente). Contrariando a tese corrente do monge executivo, retornamos aqui à oposição entre ética da convicção e ética da responsabilidade. Determinação e coragem, atributos do caráter, não têm paridade natural com ponderação e prudência, atributos atitudinais ou da personalidade.

"Com raras exceções (...) os presidentes norte-americanos não foram escolhidos por serem grandes comandantes". Aqui os exemplos são muito bons. Washington e Eisenhower são escolhidos depois, não antes da guerra, ou seja, eleitos para reconstruir não para vencer. Eleitos em reconhecimento pelos serviços prestados.

Lincoln, Roosevelt e Wilson são civis, aliás todos eles grandes oradores. Wilson, hipocondríaco formado em teologia e retórica, é o melhor exemplo de como o eleitorado americano pode, recorrentemente, escolher a pior combinação possível entre indigência na reflexão econômica (inflação europeia), ingenuidade política (Liga das Nações) e inépcia militar.

Franklin Delano Roosevelt, que revelou-se um grande comandante (apesar da cadeira de rodas), elegeu-se, provavelmente, nas costas do bufão naturalista Theodor Roosevelt. Ou seja, dois exemplos de como a imagem pífia de líderes não afeta sua eficácia condutora.

Mas o que se estaria sugerindo aqui de positivo? Afora a ilação negativa de que militares não são os escolhidos para a presidência em momentos de guerra estaria em jogo, na pena de nosso cronista, a ideia de que justamente a imagem menos bélica (ponderação e prudência) é a preferida para a condução do país e não as virtudes guerreiras do caráter (determinação e coragem)? Há aqui o esboço de uma teoria alternativa do conflito, que não seguiria a lógica paranoica da divisão e da força?

(4) "Qual pode ser, para os eleitores dos EUA, o apelo de McCain como comandante supremo?" Neste parágrafo de transição a palavra-chave é resiliência, capacidade de retornar ao estado anterior depois de uma deformação (da física dos materiais para a psicologia).

Ora, a presença do termo "apelo" no centro da pergunta deve ser lida em contraste e comparação com a ideia psicanalítica de que o líder é escolhido tendo em vista:

(a) seu potencial de evocação regressiva das pulsões

(b) sua capacidade de sobrepor ideais narcísicos do eu ao objeto que ele representaria na fantasia inconsciente de cada um

(c) sua capacidade de gerar identificações horizontais (entre irmãos) de valência semelhante à identificação vertical (com o líder).

Ora, McCain se sairia muito mal nos três quesitos. Fosse o eleitorado composto por sujeitos freudianos, ele não passaria das primárias.

(5) Mas McCain foi capturado pelos vietnamitas. A sugestão deixada pelo texto é de que isso ocorreu logo no começo da guerra —missão 23 (inabilidade militar?). Ele escolheu ficar com seus companheiros e ser tratado como "qualquer um" a amparar-se no privilégio representado pelo fato de ser filho de almirante.

Tortura e isolamento, provações que para uma parte da ética protestante formam o caráter. Experiências que mostram que alguém pode se deformar, mas voltar ao estado anterior. Mais uma vez aparece aqui o McCain hegeliano, aquele que "escolheu ficar preso, com os outros".

Seria este uma espécie de ponto de virada na ideologia do sucesso? Uma reversão católica para a moral dos fracos e a virtude dos humildes e derrotados? O triunfo da latinidade americana?

(6) "Por que o comandante ideal de hoje não é um herói vitorioso, mas um aviador caído que provou sua fibra em anos de detenção." Fibra (temper?) ressoa com resiliência. O herói caído ressoa com os presidentes pícaro-desajeitados. Anos de detenção ressoam com a mítica do retorno.

A pergunta revela intenções generalistas, exprime quiçá uma indagação metapsicológica sobre o líder para nossa época. Figura paterna decaída? Atitude sem caráter ou caráter sem atitude? Ou seja, a vitória de McCain representaria a ascensão de um novo tipo de autoridade, uma nova versão do pai (humilhado)?

(7) Reencontramos a pista na ideia de que se trata de um comandante forjado para tempos de corrosão da autoridade moral. A analogia Vietnã - Iraque, assim como as alusões a Guantánamo e Abu Ghraib, sugerem que ele é o candidato da vergonha, ou seja, escolhido para "reformar o sistema desde seu interior".

(8) A ideia ganha força com a entrada da noção de "guerra envergonhada". Nem justa, nem vitoriosa, nem "limpa", seria preciso acrescentar. Portanto, e declaradamente, trata-se da "autoridade moral" na "derrota e no conflito duvidoso". A autoridade que vem de saber perder?

(9) Confirmação. Concede-se que existam os crentes da força, os fervorosos do retorno do velho xerife, os que apostam no que veem em McCain: o senhor da guerra ("que atira sem piscar"). Mas, uma vez demonstrada a fraqueza desta alternativa, se é levado a concluir que há algo mais, há (talvez inconscientemente) "o símbolo da honra que pode ser salva nas piores condições".

Reencontramos aqui o tema calligariano do pequeno herói, da dignidade do inesperado, da força da relação com a própria fraqueza, da virtude não pirotécnica, da voz baixa. Afinal não seria uma coluna que, dialeticamente, repara o erro, equívoco ou mero deslize representado pelo apoio do autor à alternativa colocada por Bush, nos tempos de decisão sobre o início da guerra ao terror, da guerra no Iraque?

(10) Concessão. "Isso sem contar os que elegeriam McCain para lavar a culpa coletiva, como desagravo" e compensação pelos que combateram, duas vezes, sem saber bem por quê. Culpa coletiva ou vergonha individual? Vingança dos perdedores ou honra dos vencidos? Caráter ou atitude? Liberdade necessária ou contingente?

Se antes tínhamos a falsa solução necessária (McCain = guerra) agora temos a necessidade da solução falsa, feita para que a conclusão verdadeira não pareça demasiadamente verdadeira. Nosso autor, tal como Salomão em toda sua honra e glória, nos fez mudar a oposição inicial que regia a questão e escolher renunciar ao ódio por McCain para poder escolher Obama ... sem ressentimento.