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Blog do Dunker

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Uso clínico das drogas psicodélicas reacende esperança contra a depressão

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Imagem: fotografierende/ Pexels

23/04/2021 04h00

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No fim dos anos 1980 começaram a surgir novas medicações antidepressivas, com a fluoxetina (1987), a sertralina (1991), a paroxetina (1992) e a venlafaxina (1993). Elas representaram uma onda de esperança para o tratamento dos transtornos mentais, cujas medicações mais empregadas até então datavam da década de 1950 (clorpormazina, 1952, carbonato de lítio e haloperidol, 1958). Três tendências foram detectadas a partir de então.

Em primeiro lugar reinava a expectativa de que as novas descobertas, concernentes à depressão, se generalizariam em uma ampla gama de tratamentos, cada vez mais especializados, para os cada vez mais específicos transtornos mentais, ou seja, haveria uma multiplicação tecnológica das substâncias psicoativas, envolvendo a tão sonhada conquista de nossa fronteira final: o cérebro.

Mais que isso, se os transtornos mentais são perturbações do cérebro, as psicoterapias tornam-se adjuvantes, redutíveis a alguma forma de reeducação.

A segunda tendência vinha do campo emergente das neurociências.

A descoberta dos neurônios espelhos, da importância decisiva do córtex pré-frontal, dos fenômenos agudos de plasticidade cerebral e a convergência cada vez maior dos achados sobre o funcionamento do cérebro e os avanços da genética humana e da teoria da evolução nos faziam ter uma esperança renovada, desde que Pinel fundou o alienismo moderno, em 1807, de que enfim chegaríamos aos marcadores biológicos das doenças mentais e com isso uma descrição exata de seu mecanismo etiológico, atingindo o nível de conhecimento semelhante ao de outras áreas da medicina.

Finalmente saberíamos dizer, exatamente, como uma disposição genética se encontra com um fator ambiental determinando a formação de um agrupamento de sintomas. Com acesso a uma boa descrição de como a doença começa (etiologia), de como ela pode ser bem descrita (semiologia) e de como se formam diferenças consistentes entre os sintomas (diagnóstica), se poderia ter uma terapêutica eficaz e eficiente.

A terceira promessa era convergente com as reformulações em curso nas políticas de saúde mental.

Lembremos que os anos 1970 foram marcados por inúmeras reformas antimanicomiais: a reforma psiquiátrica francesa, com forte influência da análise institucional (Tosqueles, Oury), a reforma americana, impulsionada pelas práticas de grupo, a reforma inglesa, e a antipsiquiatria de Laing e Cooper, assim como a italiana de Basaglia.

As novas medicações facilitaram o processo de desospitalização, baratearam os custos historicamente altos da saúde mental e permitiram o retorno de pacientes crônicos ao trabalho e às suas famílias.

Quarenta anos depois, tais esperanças entraram em processo de recuperação judicial, senão de falência.

As novas medicações cobram milhões em desenvolvimento de pesquisa e marketing, com avanços módicos em termos de redução de efeitos colaterais e combinações exaustivas dos mesmos neurotransmissores (serotonina, dopamina, adrenalina).

A cura tão ambicionada tornou-se apenas uso crônico, massificado e cada vez mais precoce. Começam a surgir as primeiras queixas judiciais em torno dos danos causados por uso irresponsável de medicação.

A eficácia dos antidepressivos cai, chegando a um patamar que concorre com o efeito placebo e com as psicoterapias. Entre 2014 e 2019 o NIMC americano investe US$ 20 bilhões em pesquisa e tecnologia de neuromedicação, sem que isso tenha trazido nenhuma alteração das curvas de crescimento de depressão e ansiedade, na busca por serviços, na redução de custos e aumento de cobertura em saúde mental.

O Manual Estatístico e Diagnóstico (DSM-V) não apresenta nenhum marcador biológico para os transtornos mentais e a confiabilidade de suas categorias volta aos patamares de 1973. Além disso, a cultura da modulação da paisagem mental assimilou em uso terapêutico as mais diversas substâncias psicoativas— da maconha ao chocolate, do pop erótico à cocaína, passando pelo soberano álcool.

Mas a nova esperança vem de uma espécie de solução dialética para a oposição entre mente e cérebro, entre o corpo contra a palavra.

Trata-se da retomada do uso clínico das únicas drogas que ficaram para trás na marcha tecnológica do bem-estar: os psicodélicos.

Albert Hoffman, pesquisou os efeitos psíquicos do ácido lisérgico no fim dos anos 1940, um tipo de investigação que lembrava muito os estudos de Freud sobre a cocaína, nos anos 1880. Ou seja, os relatos descritivos sobre os efeitos em si mesmo são parte incontornável do "achado" na medida em que ele parece convocar, necessariamente, a dimensão subjetiva.

A incorporação dos psicodélicos em uma contracultura, com forte apelo em formas de vida pautadas pela liberdade, fez com que o ácido lisérgico, assim como psilocibina (cogumelos mágicos) e o peiote (uma espécie de cactos mexicano), fossem proibidos.

O argumento moral por trás desta proibição é de que drogas que geram prazer e sentimento de liberdade não podem ser terapêuticas. O caso se torna ainda mais interessante quando incluímos neste grupo substâncias como a ayahuasca (dos povos amazônicos) e a ibogaína (usada contra a dependência química), ou seja, quando verificamos o entranhamento destas substâncias com formas de vida e suas narrativas e rituais mais ou menos reguladores.

Substâncias enteógenas —aquelas que produzem o sentimento realístico da existência de uma entidade ou de uma unidade maior e mais poderosa que a experimentamos como indivíduos, ou seja, o mais próximo do que se pode produzir artificialmente como uma "presença divina"— mostraram-se muito importantes no tratamento psicoterápico de pacientes com doenças terminais [1].

Ao contrário dos antidepressivos dos anos 1990, produzidos em laboratório, os psicodélicos não prescindem da experiência comunitária, ou seja, da palavra como mediação da experiência. Ou seja, eles não individualizam silenciosamente o sofrimento no cérebro.

Neste contexto surge a primeira empresa brasileira de inovação voltada para a pesquisa e tecnologia dos psicodélicos: a Scirama.

As pistas aqui são inúmeras: uso da canabis em pacientes com Parkinson ou Alzheimer, uso da ayahuasca para depressão, do LSD para a ansiedade, da psilocibina para neuroses traumáticas.

O time que se reuniu para esta empreitada é formado por craques como Sidarta Ribeiro, Stevens Rehen, Marcel Grecco e Clarice Pires.

Vejo aqui três desafios para este projeto e para quiçá outros que nele se inspirem. E são desafios que retomam as três tendências que descrevi no começo deste artigo:

  1. Mostrar que é possível fazer ciência e tecnologia, combinando interesses públicos (em saúde) e investimento privado, sem incitar a devastação da subjetividade, nem a exploração massiva do capital. Isso já está sinalizado pela ideia de que os povos que desenvolveram tais tecnologias precisam participar do ressarcimento de seus lucros.
  2. Mostrar que mudanças na cultura que envolve a saúde mental exige a participação coletiva, o apoio de todos que concorrem para divulgar ciência e tecnologia, de modo que o processo seja o mais transparente possível integrando-se a demandas políticas de maior envergadura, neste caso a descriminalização das substâncias psicoativas e a invenção de uma nova educação para o "uso dos prazeres".
  3. Mostrar que a verdadeira interdisciplinaridade epistemológica envolve reconhecimento da multiplicidade de práticas que concorrem para formar nossos recursos básicos em saúde mental, inclusive narrativas e práticas culturais, mas também rigorosa demonstração e justificativa conceitual do fundamento destes fazeres.

REFERÊNCIA

[1] Pollan, M. (2018) Como Mudar sua Mente. São Paulo: Intrínceca.