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Blog do Dunker

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Ciência pode aceitar o prazer do consumo de álcool? Filme "Druk" dá pistas

Mads Mikkelsen em cena de "Druk - Mais uma Rodada" - Divulgação
Mads Mikkelsen em cena de "Druk - Mais uma Rodada" Imagem: Divulgação

21/05/2021 04h00

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ATENÇÃO: este texto pode conter spoilers

"Druk - Mais uma Rodada", filme de Thomas Vinterberg, narra a história de quatro amigos em torno de uma experiência científica produzida como resposta para um certo estado de insatisfação difusa e múltipla.

São todos professores no mesmo colégio e se conhecem há muito tempo, mas um está desanimado e disperso, outro é contido e tímido, o terceiro está entediado e o quarto está simplesmente triste. Neste contexto de crise de meia-idade, eles recorrem à hipótese real do psiquiatra norueguês Finn Skårderud, que teorizou que os humanos nascem com um teor de álcool no sangue 0,05% abaixo do que seria esperado.

A tese por si só é interessante, pois tenta recuperar a antiga ideia de que a condição de miséria moral e tragédia ética que caracteriza a experiência humana pode ser reconduzida ao fato de que somos animais doentes.

Isso significa inverter a hierarquia corrente de que nós evoluímos a partir dos animais, criando faculdades e sentidos que eles não tinham, mas que nós pervertemos a animalidade tornando-se animais incompletos, insuficientes e inadequados a nós mesmos.

Isso concorda genericamente com a abordagem de Sooren Kierkgaard, que atravessa todo o filme em questão, desde a prova final de aprovação, na qual o aluno recua com medo até o professor que se suicida. Ambos encontram no álcool a coragem necessária para ir em frente e fazer o que realmente querem, seja isso representado por formar-se na escola, seja isso parar de sofrer.

O filme foi rodado em estado de extremo luto causado pela morte da filha do diretor, num acidente rodoviário. Para além disso retoma os princípios da plataforma do movimento Dogma 95, do qual faz parte também Lars Von Trier, como um programa de produção de filmes sem recorrer ao "excesso" de tecnologia.

Ou seja, em meados dos anos 1990, temia-se que a arte da dramaturgia fosse substituída pelas animações computadorizadas, que o trabalho da câmera seria substituído pela perspectiva eletronicamente calculada e que a própria forma-filme seria substituída por intervenções do público ou pela deformação para a forma-série.

Portanto, quando um artigo científico é recolhido ao acaso na internet, justificando o consumo permanente de álcool de modo a que o sangue seja "complementado' por aquilo que lhe falta, seria suficiente para suturar dificuldades percebidas como estruturais como a crise de meia-idade vivida por homens brancos dinamarqueses.

Isso é duplamente irônico e atual. Colher um artigo que justifique uma prática, seja ela qual for, não parece difícil em nosso contexto de pós-verdade.

Mas que esta verdade doméstica, feita para consumo pessoal de um grupo de amigos engendre uma reflexão sobre o desempenho, não deixa de ser irônico. Pois o efeito inicial é positivo em todos os participantes: um se engaja mais com seus alunos, outro com a esposa, o terceiro supera a indiferença e o quarto se torna afinal mais interessado ainda em ... ciência.

A crítica aqui se infiltra na ideia de que nem sempre o aumento de produtividade é realmente uma melhora na vida das pessoas e das famílias. Não é em absoluto que o álcool estivesse ausente até ali, mas ele muda de registro, ele passa a outro estatuto quando se infiltra na lógica da investigação científica.

Ademais os autorrelatos produzidos se assemelham bastante com o que hoje temos sobre as experiências pioneiras de Freud com o uso da cocaína. Até hoje muitos incautos condenam a psicanálise porque seu inventor teria sido dependente de cocaína.

É verdade que ele percebeu que esta substância poderia ter efeitos psicológicos, notadamente de aumento de disposição e de resistência à dor.

Sim, ele fez experimentos consigo mesmo, injetando doses alternadas desta substância e anotando os resultados com sua destreza única para descrições psicológicas.

Sim, ele receitou cocaína para seu amigo Max Von Fleischl, que era dependente de morfina e sofria dores horríveis por ocasião da tentativa de retirada da substância. Isso levou o amigo rapidamente não apenas a não se livrar da primeira dependência, mas a desenvolver uma segunda com a coca e subsequentemente cometer suicídio.

Freud, amargurado, abandona esta linha de investigação, mais ou menos como os quatro amigos que descobrem os limites da hipótese do rebaixamento de álcool no sangue. Mas para sua decepção ainda maior, Köhler retomou o estudo com a coca, desta vez testando seus poderes anestésicos e não analgésicos, ganhando assim o prêmio Nobel, como pioneiro nas cirurgias oftalmológicas.

A trilha sonora do filme "What A Life" criou um curioso efeito de "dependência" em muitas pessoas pelo mundo afora, que se puseram a escutá-la repetitivamente, às vezes por semanas a fio.

Esse fenômeno inexplicável e não antecipável pelos produtores do filme, dado o nível de sucesso e reconhecimento anterior do trio dinamarquês Scarlet Pleasure. Em abril de 2021 o hit chegava a 1,3 milhão de visualizações no YouTube.

Ou seja, a mensagem do filme passa, de alguma maneira, pela recuperação do prazer, o que no enredo está marcado pela dança e pela música.

A recuperação do prazer, o tratamento do prazer, fazendo seu arco temporal se distender, sua articulação corporal e memorial se aprofundar e sua intersubjetivação afetiva com outros parece ser a solução básica não apenas para o alcoolismo ou para o cocainômano, mas para as nossas formas mais ou menos psicopatológicas de tédio e depressão, de desespero existencial e de impulsividade.

Enquanto fizermos da guerra as drogas uma guerra contra os prazeres esta equação terminará sempre em ciência mal feita ou então em cinema de primeira qualidade.