Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Obra dos anos 80 é básica para psicanálise entender a nossa violência atual
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Os cinco ensaios que compõe "Violência e Psicanálise", relançados agora pela editora Zagodoni, constituem um marco histórico da psicanálise brasileira. Publicado pela primeira vez em 1984, cinco anos antes da queda do Muro de Berlim, um ano antes das Diretas Já e da Abertura, mesmo ano antes de meu ingresso no curso de psicologia, o texto tornou-se para os futuros psicanalistas de minha geração um farol e um precedente incontornável para tudo o que veio depois.
Lembremos que meses antes, em setembro de 1983 aparecia, no suplemento Folhetim, da Folha de S.Paulo, o artigo de Hélio Pellegrino "Pacto Edípico, Pacto Social", onde líamos, abismados, em tempos de Diretas Já, e reabertura política:
"Os migrantes, os paus-de-arara, os boias-frias, os 40 milhões de brasileiros reduzidos à pobreza absoluta, esses não têm nada —absolutamente nada— que os leve a respeitar e prezar a sociedade brasileira. Eles são cuspidos e enxovalhados, enquanto seres humanos e força de trabalho. (...). O pobre absoluto não tem por que manter o pacto social com uma sociedade que o reduz à condição de detrito, ao mesmo tempo em que, nos seus estratos dirigentes, se entrega à corrupção e ao deboche impune. Ele tem toda razão de odiar e repelir essa sociedade. Ao romper com o pacto social, na medida em que não tenha uma alternativa político-transformadora - e libertadora - rompe, ao mesmo tempo, e por retroação, com a Lei da Cultura." [1]
Se o texto de Pellegrino era uma espécie de manifesto denúncia, uma dobradura inesperada da psicanálise como dispositivo crítico, cujo horizonte era o próprio processo social brasileiro, Jurandir Freire Costa era sua sistematização, o primeiro capítulo tangível de um programa que se imporia ao debate psicanalítico dos próximos trinta anos.
Seus cinco ensaios para uma teoria de Brasil abordam três temas cruciais — identidade, racismo e violência— e dois contextos críticos —saúde mental e educação—, todos eles atravessados por um conceito metapsicológico: o narcisismo.
Estamos aqui doze anos antes de "Deslocamentos do Feminino", de Maria Rita Kehl, quatorze anos antes de "Mal-Estar na Atualidade" de Joel Birman, dezoito anos antes de "Pactos Narcísicos no Racismo: Branquitude e Poder", de Cida Bento.
Para minha geração Jurandir sempre foi uma espécie de modelo prático de como a psicanálise poderia se abrasileirar sem perder seu rigor, jamais.
Uma lição formativa de que era preciso aprender, e rapidamente, a pensar como historiadores de nossos próprios objetos e conceitos, a pensar como antropólogos de nossa própria cultura, a renovar a psicanálise a partir das ciências da linguagem, a criticar a psiquiatria sem piedade, mas a conhecê-la muito mais do que imaginava nossa vã psicopatologia.
Ao abordar o homoerotismo [2], a história da psiquiatria [3], a norma familiar [4], a epistemologia da prática clínica [5], os processos de individualização na modernidade [6], seja pela moralidade do consumo [7] ou das narrativas românticas [8], Jurandir corrompeu um tipo de ensaísmo cultural descritivo, feito por não psicanalistas, como Christopher Lasch, Philip Rieff (na verdade Susan Sontag) e depois por Bauman, Sennett e Lipovetsky introduzindo um tipo de engajamento consequencial típico daqueles que conseguem ao mesmo tempo frequentaro jogo da pesquisa e da academia, sem perder a experiência clínica e a proximidade como sofrimento social direto.
Neste sentido, Jurandir foi, mais uma vez, um exemplo paradigmático. Desta forma ele conseguiu trazer as novidades do pragmatismo filosófico de Davidson para o debate psicanalítico brasileiro sem perder de vista tomadas de posição diretas e contundentes sobre o processo de reforma antimanicomial brasileiro.
Outro caminho tortuoso que Jurandir expandiu diz respeito à sua pertinência a associações como o Círculo Brasileiro de Psicanálise e o projeto Sexto Lobo [9] em uma época que se criticava fortemente aqueles que tinham ligações simultâneas com a universidade e com as entidades de formação psicanalítica da sociedade civil.
Um único e grande problema se levantava, portanto, enquanto admirávamos invejosamente a elegância discreta de Jurandir: seu contumaz e consistente não-lacanismo.
O trabalho seminal sobre "Violência e Psicanálise" parece ser uma síntese deste programa ético e crítico, clínico e político.
Ele começa por uma crítica do conceito de violência, que ainda mostra-se atual. A violência não deve ser encarada, como muitas vezes ainda vemos nos discursos psicanalíticos, como um conceito predicativo, remetido a uma significação mais ou menos estável, coincidente consigo mesma.
Para Jurandir a noção de violência corresponde mais a um movimento, semelhante, neste sentido, a noção de paixão ou de loucura [10].
Ora, o sistema de alternação entre a mais extrema objetivação da violência, como concretude agressiva e a subjetivação que a generaliza, como significação interpretativa ou movimento inerente da pulsão, da sexualidade ou do inconsciente, indica a necessidade de isolar causas, para daí oferecer antídotos.
Aqui já se pressente a crítica vindoura contra os usos abusivos da noção de estrutura, notadamente neste caso mobilizada para justificar uma espécie de violentização universal das relações humanas.
Este efeito seria obtido pela sincronização de três argumentos de procedência heterogênea em Freud [11]:
- A tese de que a sexualidade incide na criança de forma traumática, logo envolvida em violência, como apresentado em "Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade".
- A hipótese de que a origem do estado de civilização dependeu de um ato violento, o parricídio descrito em "Totem e Tabu".
- A ilação de que a origem da pulsão é a pulsão de morte, como tal envolta em agressividade e violência, tal como se depreende de "Além do Princípio do Prazer".
Psicologia do desenvolvimento, antropologia e metafísica são mobilizadas para justificar uma espécie de violência imanente, colocando a cultura como uma espécie de mitigação fadada ao fracasso, sempre mais ou menos insuficiente, como se depreenderá do momento sintético representado pela correspondência com Einstein, em por que a guerra, onde Freud desdenha dos inventos para reduzir completamente a guerra ao estado de paz perpétua, levando ao hábito consagrado pelos psicanalistas de pensar que tanto cultura quanto psiquismo só existem pela intercessão da violência [12].
Por razões inversas, este será o resultado também daqueles que como Bourdieu e Passeron pensam a cultura como violência simbólica simplesmente porque ela "seleciona arbitrariamente, em função de necessidades sociológicas que atendem alguns grupos e classes dominantes [excluindo] certas significações do universo de reprodução cultural" [13].
A intuição de uma violência estrutural torna-se assim aceita tanto pelo culturalismo quanto pelo naturalismo psicanalítico, consolidado e prolongado na ideia, corrente no lacanismo, de que a violência seria estrutural, como o trauma, como o luto, como a falta e como o supereu.
Como se a lei universal da proibição do incesto, na diferença entre cultura e natureza, fosse idêntica à lei individualizada historicamente na esfera do ordenamento jurídico, ambas reunidas na lei da linguagem e soldadas pelo supereu.
No fundo as três narrativas de base para justificar a violência constitutiva em psicanálise reduzem, no primeiro caso, violência a agressividade, aplicam indevidamente a noção de violência em sua associação a morte e a destrutividade, e no terceiro caso, incorrem em um erro lógico ao atribuir violência a um estado de natureza, pré-civilizacional, onde por definição este termo não se aplica, enquanto conexo de violação da lei.
Este terceiro erro é conhecido em ciência política e ele é herdado de um certo tipo de leitura de Hobbes, Locke ou Rousseau que entendem a noção de contrato, ali tematizada como uma noção antropológica e não eminentemente política [14].
Freud, colega de Hans Kelsen, parecia ciente desta dificuldade ao esclarecer em sua resposta a Einstein que o fim das guerras dependeria do surgimento de uma autoridade central, dotada do poder de exercer violência capaz de arbitrar todos os conflitos de interesse, mas que ainda assim deveríamos estar atentos a diferença de prevalência entre a violência individual e a violência da comunidade [15].
Ou seja, nem só da oposição entre cultura e natureza vive a antropologia, mas também da oposição entre indivíduo e coletivo. Notemos bem, a oposição entre indivíduo e sociedade é a solução sintomática para este sistema de oposições pois denega o hiato entre o plano antropológico e o histórico, assim como entre a história coletiva e individual.
Isso deveria servir de alerta para aqueles que como Lacan entendem a violência como uma espécie de remanência imaginária, de força mortífera do Real ou de déficit da autoridade parental edípica, que não teria "apalavrado" suficientemente a irracionalidade das emoções identificatórias.
Ora, a utilidade maior da noção de Real é justamente mostrar que existe um hiato, não redutível, um monismo não reducionista entre a epistemologia do sujeito, como hipótese provisória do indivíduo que assume sua língua pela fala, e as variedades culturais de expressão simbólica, em línguas diferentes.
Ou seja, existe um hiato entre o sistema simbólico-imaginário no sujeito e o sistema imaginário-simbólico dos valores culturais, das estruturas de parentesco, dos tipos de mito, das modalidades de família, das incidências locais dos regramentos da lei.
Reduzir este hiato a oposições pré-psicanalíticas, do tipo razão-desrazão, ou afeto e cognição é justamente recusar a não identidade entre a noção, a incidência concreta e dos usos da violência. A violência é um efeito de sentido real, porque:
"O sujeito violentado percebe no sujeito violentador o desejo de destruição que a ação agressiva ganha o significado de violência." [16]
Tal entendimento da violência parece em tudo compatível com a inversão do argumento de "Totem em Tabu", produzido por Lévi-Strauss e Lacan. Não é o pai que cria a lei, mas a lei que cria o pai, como "fonte empírica da lei e não seu lugar transcendental" [17].
Deste modo surgem consequências igualmente reversas para o conceito de narcisismo, notadamente, a ideia de que quanto mais perto do tipo social ideal, quanto mais o prazer sexual se aproxima deste sentimento de identidade, maior o processo de violência contra si próprio [18].
Infiltra-se aqui a noção lacaniana de gozo como um conceito capaz de incorporar os dois traços pendentes da teoria freudiana da violência: a relação entre violência individual e da comunidade (o gozo como interpretação fantasmática do prazer alheio) e a antinomia entre violência como ato contra a violência contra si em curso nos processos de identificação (o gozo como diferença narcísica).
REFERÊNCIAS
[1] Pellegrino, H. (1983) Pacto Social, Pacto Edípico. Folhetim da Folha de S.Paulo. 11 de setembro de 1983.
[2] Freire Costa, J. (1995) A Face e o Verso: estudos sobre o homoerotismo II. Rio de Janeiro: Campus.
________ A Inocência e o Vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Campus.
[3] Freire Costa, J. (1976) História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Garamond, 2007.
[4] Freire Costa, J. (1983) Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de janeiro: Relume Dumará.
[5] Freire Costa, J. (1994) Redescrições da Psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
[6] Freire Costa, J. (2007) O Risco de Cada Um e outros ensaios de psicanálise e cultura. Rio de Janeiro: Garamond.
________. (1999) Razões Públicas, Emoções Privadas. Rio de Janeiro: Rocco.
[7] Freire Costa, J. (2004) O Vestígio e a Aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond.
[8] Freire Costa, J. (1998) Sem Fraude nem Favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco.
[9] Aragão, L.T., Calligaris, C.. Freire Costa, J. e Souza, O. (1991) Clínica do Social. São Paulo: Escuta.
[10] Freire Costa, J. (2020) Violência e Psicanálise. São Paulo: Zagodoni.
[11] Idem: 15.
[12] Idem: 17.
[13] Idem: 19.
[14] "Um contrato só pode ser feito quanto a instituição do prometer e as normas referentes ao cumprimento das promessas são estabelecidas. Logo o alegado estado primordial não é, de modo algum, pré-institucional, nem pré-legal, nem pré-moral. Conclui-se que esse estado não pode funcionar na narrativa de Freud do modo como este procura inculcar." (citando McIntire) Idem: 36.
[15] Idem: 25.
[16] Idem: 31.
[17] Idem: 36.
[18] Idem: 33.
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