Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Conquistar metaverso ou Universo: bilionários querem 'fugir' do mundo real?
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Quando estudei o sofrimento das populações que se agregam em torno de muros e sistemas de vigilância, percebi um curioso efeito que recai sobre os mais ricos: uma espécie de síndrome de autojustificação sobre seu lugar na hierarquia social [1].
Como se, depois de certo nível de desigualdade, os sinais evidentes da diferença precisassem ser afastados. Para isso servem os muros, não só promovem uma ficção de autossegurança, mas também impedem quem está dentro de ver o que há do outro lado.
Um equivalente deste fenômeno parece estar acontecendo entre o 1% dentro do 1%. Enquanto Elon Musk e Jeff Bezos tentam desesperadamente alcançar um lugar no espaço, Jack Dorsey, CEO do Twitter, passa semanas no deserto em estado de desintoxicação digital.
Enquanto isso, Mark Zuckerberg investe em uma nova forma de condomínio digital: o metaverso.
Escapar deste mundo passa por cunhar um novo nome. Abandonando os prejuízos de sua identidade pregressa teremos um novo início, com uma nova companhia: a Meta.
Isso acontece semanas depois do escândalo no qual veio à luz que o conglomerado formado por Facebook e Instagram sabia dos malefícios psicológicos causados pelos seus algoritmos e formatos, principalmente sobre mulheres e crianças.
Mesmo assim não agiu, não informou e, pior, reteve a informação até ser denunciado por uma ex-funcionária.
Esta combinação entre realidade aumentada, realidade virtual e internet parece ser parte de uma nova estratégia retórica, mais agressiva contra seus críticos, mas propositiva quanto aos seus objetivos.
Esta nova versão generalizada do "Second Life" tenta tratar a contradição representada pela procura de um novo mundo, acessível apenas para aqueles que já destruíram o velho mundo.
A "First Life" se foi, não precisamos pensar muito sobre as razões deste triste acontecimento, basta nos mudarmos para a Terra 2, aliás versão nacional e periférica do mesmo problema.
Quem tem alguma experiência com dispositivos de realidade virtual, como jogos que demandam binóculos acopláveis —tipo "Wrong Voyage", "Eagle Flight" e "Eve: Walkyrie"— sabe que a experiência pode ser "sufocante" produzindo um certo atordoamento ao final.
Aqueles que dependem de tecnologias análogas para trabalhar sabem como aquilo que pode ser extremamente divertido como game, transforma-se rapidamente em Round 6 quando a vida real da produção e da sobrevivência entra no jogo.
As tecnologias de imersão envolvem certas transformações culturais preliminares.
Hoje, nossa experiência digital é determinada pelo espaço em estrutura de paralela, ou seja, várias janelas abertas, muitas tarefas sendo realizadas ao mesmo tempo, mas também com as requisições e intromissões do mundo real, vividas concomitantemente.
Isso significa chefe ou crianças entrando na sala, impressora que não funciona, telefone ou campainha tocando ao mesmo tempo, em uma sala de aula ou dirigindo um carro.
Um espaço perpendicular seria representado pelo Google Glass, onde tudo isso pode acontecer, ligado a um computador de bordo, acionado pelo movimento dos olhos, o que requer um treinamento específico.
Vamos lembrar, que o projeto, muito mais simples que o metaverso, é de 2006. Suas primeiras implantações datam de 2012 e sua suspensão ocorre em 2016. Aparentemente os superóculos eram muito caros, perigosos e capazes de embaralhar as coisas quando precisamos mudar rapidamente para o "mundo real".
Uma sensação extremamente desagradável das ultranovas tecnologias é que elas dão a impressão de funcionar perfeitamente ... para os outros.
Essa idealização das facilidades trazidas pelas inteligências artificiais torna cada vez mais insuportável o fato de que a sua rede cai, a banda larga não funciona e sua senha não confere.
Parece que é só na sua vida e na sua vez que acontece esta epidemia de incompatibilidades, bugs e demais mensagens do tipo "sistema fora do ar".
Sem contato direto com os responsáveis, os motoristas de entrega não conseguem nem reclamar dos maus tratos, as famílias presas em aeroportos se exasperam. Intermediários eletrônicos parecem ser postos como muros digitais que nos impendem de falar com qualquer entidade real responsável pela conta do Facebook. Ou seja, este metaverso já existe e literalmente está fora deste mundo.
Muita coisa no reino da tecnologia não precisa acontecer exatamente como foi planejada.
Como Paul Virilio [2] e outros tantos teóricos da inovação mostraram, guerras e viagens espaciais podem gerar mais tecnologia do que a finalidade para a qual foram desenvolvidos.
A tecnologia é uma fonte permanente para criação de novos mundos, particularmente quando reapropriada pela arte e pelo uso social.
Mas o que há de realmente novo em colonizar Marte ou dar voltas orbitais em turismo sem gravidade?
Como afirmou Sam Wolfson para o The Guardian:
"Estes projetos têm mais a ver com a salvação psicológica dos seus proprietários (e com a venda de ações da Tesla e Amazon) do que com o futuro da tecnologia."
O prefixo "meta", foi consagrado desde a interpretação das obras de Aristóteles, como designando o que vai além. Ele deu origem à expressão metafísica, como conjunto de pressupostos sobre o mundo, o ser, a alma e Deus.
Gradualmente passou a designar as questões insolúveis para o conhecimento e para a ética humana.
No fundo, a metafísica grega, da qual somos herdeiros, inventou a noção de cosmos, depois revirado pela descoberta moderna do conceito de infinito.
Tudo isso porque um dia Galileu resolveu brincar com seu telescópio, orientando para o céu o artefato até então usado para medir a movimentação dos exércitos inimigos em situação de batalha.
Recentemente a antropologia contemporânea [3] tem comparado a metafísica grega com metafísicas dos povos da mata, dos indígenas e a rigor de qualquer outra civilização ou forma de vida.
O estudo das ontologias variáveis tem sido uma das questões mais candentes para pensarmos futuros diferentes do passado, bem como nos informar sobre estratégias possíveis para enfrentar a crise climática, sanitária e econômica que nos caracteriza.
Nos ameríndios brasileiros, prospera a ideia de que não vivemos em um metaverso, mas em uma espécie de multiverso, no qual diferentes mundos, animais, vegetais humanos vivos, humanos mortos e humanos por vir desenvolvem relações contínuas de mútua transformação e reconhecimento indeterminado.
Se nossa metafísica afirma que humanos e animais partilham da mesma base ontológica da animalidade, os ameríndios afirmam que humanos e animais são no fundo todos humanos.
Isso não significa códigos legais e humanização dos pets, mas zonas de recobrimento na qual a perspectiva dos animais, assim como das plantas ou dos rios concorrem para determinar minha própria perspectiva, estabelecendo ao final e segundo a lógica de nossos encontros quem é o quê.
Isso não significa encontrar predicados essenciais do tipo razão ou afeto que nós possuiríamos e os inumanos não, mas determinar a posição de cada ser em função de para onde ele está indo.
Nesse sentido alguns estão indo para o espaço, outros estão indo para o encontro na mata.
Alguns estão determinados, cada vez mais, a defender e firmar quem se é, ainda que seja pela exclusão dos que ficam fora da viagem. Outros estão incluindo cada vez mais gente na viagem, não só humanos, mas também o conjunto mais vasto de perspectivas e relações que nos definem.
Uns estão gritando, em coro com Buzz Lightyear —ao infinito e além!—, outros estão murmurando, junto com Manuel de Barros, que o infinito universal eu encontro no meu quintal.
A perspectiva do multiverso sugere que existe, portanto, várias "naturezas" e que todas elas concorrem para a produção de nossas perspectivas, mas nunca haverá o ponto de vista privilegiado daquele que olha o mundo do lado de fora, como o astronauta que vê de longe aqueles que ficaram para trás.
O metaverso presume a existência de outras versões de mundo, mais além da nossa, o multiverso afirma que existem infinitas temporalidades infinitamente se atualizando no mesmo fragmento de mundo.
Assim como a noção de Real em Lacan, definida pelo que não se pode incorporar nas coordenadas simbólico-imaginárias de um determinado espaço, o multiverso ameríndio é uma forma de operar com aquilo e com aqueles que não estamos "imediatamente vendo", ou seja, os que se foram e os que ainda virão e os que ainda podem vir.
Sabemos que os efeitos devastadores do retorno do Real estão sempre em escala inversamente proporcional à confiança que depositamos na unicidade desta realidade una, cuja única saída é a meta, no duplo e ambíguo sentido de metaobjetivo, para trabalhar (esquecendo do desejo e do sonho) e da meta-para-além como solução óbvia e naturalmente equivocada, representada pelo "cair fora".
REFERÊNCIAS
[1] Dunker, C.I.L. (2015) Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma. São Paulo: Boitempo.
[2] Virilo, P. (2005) Guerra e Cinema. São Paulo: Boitempo.
[3] Viveiros de Castro, E. (2016) Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify.
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