Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Antes de culpar o algoritmo, saiba como é seu próprio processo de escolha
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Parece estar acontecendo com as escolhas digitais algo análogo ao que assistimos quando subitamente a televisão brasileira aumentou a sua oferta de canais, incluindo os serviços pagos.
Inicialmente ficamos extasiados com o sentimento de liberdade decorrente da expansão dos muros limitantes, mas com o passar do tempo vem o cansaço da escolha. Uma vez visto, passeado e examinado, começamos a querer nossas escolhas reduzidas, automaticamente, por algum sistema de pré-seleção.
Junte a isso nossa atenção contra e renovações por "planos maravilhosos", que na prática são pequenos golpes, baseados em cálculos programados para induzir o erro.
Na esteira da situação declinamos nossa preocupação com segurança digital e outras mazelas manipulativas, porque afinal a opressão do sistema é tão mais poderosa do que nossa capacidade de resistir individualmente a ele, que acabamos nos entregando aos braços de Morpheus (tanto o deus grego do sono, quanto o personagem da trilogia Matrix, responsável pela "forma" (morphé) das coisas.
No fundo, a escuridão dos algoritmos está repetindo este tipo de processo, com demissões decisionais, ascendentes em um mundo cada vez mais complexo com escolhas e subescolhas, piorado com a chegada dos streamings e coerções cada vez mais massivas para apertar botões que ao final compartilham ou autorizam compartilhar suas informações.
Não estou inteiramente de acordo com a máxima atual de que "se o serviço é de graça o produto é você". Esta formulação presume que você saiba o que "você" significa, o que não é absolutamente o caso. Você torcedor do Palmeiras, você que compra na Sotheby´s, ou você que tem fantasias sexuais tão represadas que jamais se aproximaria de um aplicativo que pudesse revelá-las?
No fundo, o você de que se trata é a lógica das suas escolhas. Com isso pode-se adiantar ofertas mais promissoras, evitar desperdício de propaganda e segmentar alvos de consumo.
A informação bruta, não estruturada, ainda é de baixo valor agregado, a não ser que estejamos no campo da espionagem ou no rastreio individual. Isso não é tão simples quanto parece quando vemos o pessoal vendendo as listas de INSS, Serasa e RGs, na baciada, às vezes no antigo formato de CD, no centro de São Paulo.
Mas a lógica decisional é um campo clássico da psicologia, agora renovado em importância por causa da sua relativamente fácil digitalização.
Um dos problemas clássicos da lógica decisional é o seguinte: imagine que você é um policial esperando um bandido sair de uma casa onde há cinco pessoas. Ele sairão um depois do outro e você só pode seguir um suspeito. Mas para tornar a tarefa menos difícil você sabe que o procurado pela justiça é o mais alto dos cinco. Como escolher?
Há uma regra que recomenda o seguinte: espere os dois primeiros sair e siga o mais alto que sair logo depois disso. Se o bandido for um dos dois primeiros, você terá perdido, mas se ele estiver entre os três últimos suas chances aumentam muito se seguir este procedimento.
Mas veja, este procedimento está longe de nos dar uma certeza significativa, ele apenas aumenta nossas chances e nos orienta em uma situação de extrema indeterminação.
Mas veja, nossa intuição, entendida como um certo saber prático sobre um mundo situado, pode ser muito mais útil que esta regra. Se observamos que o primeiro ou o segundo a sair é um gigante de dois metros nossa tentação de segui-lo se apoiará em uma impressão confirmada pela experiência de que dois metros está muito fora da curva média de altura do brasileiro.
O que este problema mostra é que antes de criticar genericamente os algoritmos devemos ter em mente alguma consciência sobre como nós mesmos fazemos escolhas.
Nosso estilo de escolha é geralmente definido pela experiência e parece curiosamente universal e não criticável.
Na verdade é muito importante ter em mente seu próprio estilo decisional preferido porque ele pode justamente se encaixar "como uma mão e a luva", diria Machado de Assis, com alguma estratégia algorítmica, que será, neste caso, impercebida.
O truque mais simples aqui é verificar nossos ordenamentos simbólicos, e isso será salutar também para você perceber alguns preconceitos.
Por exemplo, você confia sempre mais em grandes indústrias que têm uma marca a proteger e jamais fariam algo de errado ou em pequenos produtores locais que podem mudar de endereço, sem compromisso, a qualquer momento?
Qualquer um fica tentado a escolher, quando na verdade o problema embutido na forma da escolha é a exclusão do produtor local que tem uma longa relação com você e que tem um compromisso com a entrega.
Ou seja, desconfie de qualquer um que comece a formulação de escolha com "agora só nos resta", como diria Kierkegaard, isto ou aquilo, a pílula azul ou a vermelha.
Sim, sempre pode haver uma terceira via, mas nem por isso ela se tornará automaticamente desejável, ainda mais porque onde há terceira via, há também a quarta via: nenhuma das três anteriores.
Contudo, o questionamento da escolha binária nos leva a outro problema clássico da lógica das escolhas: o custo decisional.
Ficamos cansados de escolher e, uma vez cansados fazemos a pior escolha: a escolha para nos livrarmos do inferno da situação de escolha.
Caso típico: uma turma se reúne para sair a noite e alguém faz a pergunta fatal: onde vamos?
Logo em seguida vem o comentário daquele que está cansado de escolher e do custo cognitivo que isso representa: tanto faz, para mim o que vocês escolherem está bom.
Depois de um confronto acirrado entre aquele samba e o cinema ganha o filme "Clifford: o Gigante Cão Vermelho - parte II", que estreou agora. Nesta hora aquela pessoa que disse "tanto faz" revolta-se: esse não!
E todos silenciosamente pensam: mas você tinha dito que aceitaria qualquer coisa. Sim, qualquer coisa, mas, de novo, baseado no saber tácito de que estes que vivem comigo vão escolher dentro de certos parâmetros e critérios.
Ledo engano.
Cada vez mais sentimos isso na pele. Não só de que os que vivem conosco fazem escolhas erráticas, mas também que nós nos sentimos traídos mesmo tendo dito e declarado que renunciamos ao processo de escolha, transferindo a decisão para o outro.
Portanto, no que virá, procure saber mais sobre o seu próprio processo de escolha e não imagine que ele possa ser transferido tão facilmente para o outro. Faça isso antes de amaldiçoar os algoritmos.
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