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OPINIÃO

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Cheias do Nilo e enchentes do presente: não achamos nosso faraó tecnológico

Pirâmides de Gizé - iStockphotos/Getty Images
Pirâmides de Gizé Imagem: iStockphotos/Getty Images

30/12/2021 12h23

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Durante um curto período, no século 13 a.c. o Egito unificou os reinos do sul e norte em torno de uma crença monoteísta. O faraó Akenathon ou Amenofis 4º, líder desta revolução teológica, opiou-se fortemente na descoberta de uma nova tecnologia baseada no aproveitamento das cheias do rio Nilo.

Como se sabe, as inundações periódicas deste rio produziam uma larga quantidade de terras cultiváveis em seu entorno. Porém, até a construção da represa de Assuã, na década de 1970, estas cheias eram imprevisíveis e seus efeitos incontroláveis e tantas vezes devastadores. Isso implicava a exposição imprevista a longos períodos de seca, durante os quais sobrevinha a fome e a falta de alimentos.

Guardadas as devidas proporções, a situação não é completamente diferente da situação brasileira na qual certas áreas padecem, alternadamente, com a seca e terríveis inundações, assim como rebaixamento das reservas hídricas depois e com o rompimento de barragens.

Mas ao que tudo indica ainda estamos longe de encontrar nosso Akinathon, ainda que o retorno ao sistema de poder transmitido pela família já esteja em curso. Este antigo faraó aprendeu com seu avô, Amenofis 2º, o segredo para superar os efeitos sazonais das enchentes.

Visitando seu templo de Karun, consagrado ao deus Sobeck, perto de Al Faium, percebe-se que ela é um protótipo ancestral das futuras pirâmides. Mas em vez de ser escalonada, como as mastabas, ou em degraus como as mais conhecidas Kéops, Kefrem e Mikerinos, ela se mantém retilínea, como uma caixa quadrada.

Em seu interior, podemos ver mais de cem compartimentos para estocagem de sementes. O conjunto funcionava como templo, escola, tribunal e ponto de encontro para as divindades locais. Ocasionalmente estas se declaravam, em viva voz, por meio de um sistema de vasos comunicantes por onde os sacerdotes podiam assumir (e transmitir) a fala divina.

Posteriormente, o templo de Sobeck é dedicado a Rá, o deus sol, representado pelo círculo. Nele, a entrada de luz é criteriosamente calculada durante o ano, particularmente regulada pelo solstício e equinócio.

Ao que tudo indica, o avô de Amenofis 4º havia descoberto empiricamente como preservar as sementes — especialmente as de arroz, trigo e cevada — durante um tempo indefinido em uma temperatura adequada. A conservação era tão eficiente que sua exposição relativa à luz solar as redespertava para a vida, conforme as necessidades alimentares do reino.

Mas é possível que ele desconhecesse as razões dos procedimentos que ele mesmo executava. E é ainda mais possível que seus súditos precisassem de uma narrativa mítica que justificasse tanto a estocagem quando a guarda e ainda a exposição, térmica e luminosa, ao sol.

Compreende-se assim a popularização do mito de Osíris, Ísis e Seth. Osíris, deus do além e da vegetação, conquista o coração de Ísis, deusa da fertilidade, algo que desperta a ira de Seth, o deus do deserto. Vítima do ciúme, Osíris é posto em um sarcófago e jogado ao Nilo. Ísis, auxiliada por seu filho Hórus, deus dos céus, percorre quatorze cidades do Egito antigo, reunindo os pedaços do corpo do falecido, encontrando todos menos um — justamente os órgãos sexuais de Osíris, que foram comidos pelos crocodilos do Nilo. Seth contra-ataca, roubando o olho de Hórus, cujos 64 raios de sol são recompostos por Ísis.

Traduzindo: as sementes divididas e contidas em caixas, como sarcófagos, podem voltar à vida desde que expostas corretamente à luz solar e desde que sejam colocadas sob as águas do Nilo, sob a guarda dos crocodilos, de modo correto.

O neto de Amenófis 2º, também chamado de Amon-Rá (filho de Rá, filho do Sol) parece compreender que todos os deuses se reduzem a um único princípio e que este é também responsável pelo renascimento das plantas e, portanto, perpetuação da vida. Seus sucessores generalizam o princípio dando origem à conhecida tese do renascimento da unidade — que, para os egípcios, não significava corpo e alma, mas corpo, nome, alma e espírito, ou seja, os quatro personagens da trama mítica.

Seth rouba as sementes para dentro do templo, por isso ele é dedicado ao deus crocodilo. Ísis e Hórus recompõem sua unidade. Seth rouba a luz que sai dos olhos de Hórus. Ísis recupera a luz e torna as sementes férteis novamente.

Isso significa, como vimos tantas vezes ao longo da história, que a tecnologia é inoperante sem o mito que lhe dá forma e a articula com a vida das pessoas, seus sistemas de valor e de poder. Podemos dispor de recursos para prevenir as variações sazonais das chuvas, assim como mobilizar sistemas de saúde unificados que possam enfrentar epidemias de forma racional e coordenada.

Mas a existência da tecnologia e dos saberes que ela presume e organiza não implica, infelizmente, que ela será aceita por todos. Mesmo o culto de um só deus, permaneceu restrito a elite aristocrática e não se manteve muito além da geração do próprio filho de Akenathon, sua esposa Nefertiti e seu filho, precocemente morto, Tutankamon. O dilema egípcio permanece e insiste no recente filme de Adrian McKay, "Não olhe para Cima" como leitura da onda negacionista e da dificuldade estrutural de convencer o poder de que este deve submeter-se a certos saberes.

É mais fácil administrar um mundo onde sabemos, mais ou menos, como as forças de Ísis e Hórus combatem o terrível Seth, do que explicar complexos processos de maturação das sementes, que implicarão em renúncia e criação de novas incertezas relativas. É mais fácil dizer que as enchentes são uma maldição do jacaré, que as vacinas foram enviadas por Seth, ou que o filho de Osíris tem que ser preso injustamente do que jogar alguma luz sobre o que está acontecendo no Brasil.

Mas se a história estiver certa, cedo ou tarde, a parte que está faltando volta, lá do fundo do rio e pega por trás os que não conseguem olhar para baixo.