Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Este é o ano que precisamos aprender a ler os comentários das redes sociais
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Estamos formando os primeiros passos de uma verdadeira cultura digital. Isso implica desajustes sistemáticos entre as tecnologias disponíveis, principalmente de interface, com o uso real dos dispositivos.
A forma mais simples de lidar com a convivência entre diversidade criativa e destrutiva dos novos meios expressivos é estabelecer códigos de conduta. Mas esta é também a maneira menos inteligente e mais normativa de abordar o que ainda é novo e que, portanto, possui potência transformativa indeterminada.
Uma das regras informais mais curiosamente consolidadas nas redes sociais é o mandamento: "não leia os comentários". Esta regra tem uma incidência diferencial que permite, indiretamente, entender com quem estamos interagindo.
Se você atua como pessoa física, com o nome próprio e história privada exposta na sua timeline, os comentários são o pretexto para o desenvolvimento de uma conversa. Eles contêm perguntas reais, opiniões concretas e manifestações sociais de apoio ou desagravo. Tudo isso dentro das "mentiras sinceras" que definem nossa comédia social.
Deixar de ler e consequentemente deixar de responder, pode significar indiferença, descaso ou também vida confusa ou desapego aos meios digitais.
Mas isso pode ser mais ou menos detectado pela intensidade de uso e tipo de intervenção. Todo dia, de vez em quando ou quase nunca. Anúncios, convites ou parabenizações. Músicas, frases inspiradoras ou memes. Retratos infantis, felinos ou culinários. Viagens, selfies ou objetos.
Não ler os comentários, neste contexto, é desatenção, abuso e até mesmo afronta potencial. Não curtir, ou não se manifestar, pode ser uma manifestação em si mesma de desaprovação. O silêncio, na vida privada, torna-se um sinal de descontinuidade afetiva ou relacional.
Mas na medida que o espaço digital foi sendo ocupado por instituições, comunidades e principalmente pela gramática negocial e pela geografia corporativa, as coisas que dizíamos "em família" e "entre amigos" foram se misturando com nossos modos de dizer profissional, político e virtualmente público.
Hoje, desde os antigos profissionais liberais aos novos empreendedores, passando por aqueles que trabalham por conta própria e até mesmo os que estão sendo "amassados" pelas plataformas, todos os que estão inativos ou mal posicionados no mundo digital estão em situação difícil em termos de reconhecimento laboral, empregabilidade ou mesmo potencial de vendas.
Aqueles que não gostam muito de se expor, os tímidos, os que preferem ler comentários alheios e acompanhar como expectadores as "tretas digitais", veem-se cada vez mais oprimidos por uma cultura da sociabilidade compulsória e até mesmo prejudicados pela baixa "visibilidade" de suas pautas, de seus propósitos e de seus serviços.
Aqui a leitura e resposta aos comentários é quase uma obrigação moral, se você for uma instituição, que precisa de "articuladores" de rede social, vigiando permanentemente potenciais prejuízos de imagem.
Para os profissionais de venda, ou para todos os que "caçam para comer", os comentários podem contar contatos de vendas decisivos e ocasiões inusitadas para novos negócios.
Para aqueles que querem aumentar seu engajamento nas redes, a dedicação a comentar os comentários, a responder a críticas e a comemorar elogios é uma estratégia, a médio prazo, vencedora.
Se as coisas fossem assim, bem divididas, entre uso público e uso privado das redes seria fácil organizar e entender a conversa. Mas a novidade aqui está justamente na confusão e na hibridização dos modos de uso.
Sua tia querida pode fazer um comentário desastroso naquela reunião de departamento. Inversamente, seu amigo de escola saca aquela carteirada usualmente constituída por seu uso da palavra como advogado, médico ou empresário para lacrar uma conversa trivial sobre futebol ou política.
Os desencontros são muitos, especialmente quando se tratam de pessoas que vão se tornando mais e mais "públicas" na medida que o seu número de seguidores ou amigos cresce exponencialmente, criando ao final, uma mistura impraticável entre amigos de infância, o tio do pavê, seu ex-chefe, a sua atual amante e a turma do partido.
Mas estes, não esqueça, são apenas a pequena porção íntima e cada vez menor de pessoas que você conhece.
"Conhece" é uma expressão tão vaga capaz de abranger o professor do outro departamento que você viu numa banca uma vez na vida ou o querido porteiro corintiano. Compare este saco de gatos com a quantidade crescente de pessoas que você "não conhece".
E a cereja do bolo, entre as que você "não conhece" existe ainda um resíduo, igualmente crescente formado pelos falsos perfis, pseudônimos covardes, seres inumanos como boots, seres semi-humanos como trolls e haters. Recomendação máxima da rede: não leia, não responda. Desenvolva a suprema arte da indiferença. Adquira superpoderes de invisibilização. Use as técnicas do desver, desfazer e desexistir o outro. Crie seu próprio condomínio digital onde só vai ter "gente como a gente".
Mergulhamos assim na confusão da confusão. Reagindo assim tratamos esta massa de anônimos suspeitos, ressentidos compulsivos, erotomaníacos intrusivos e demais seres erráticos da internet, de modo equivalente aos excluídos digitais, os que confundem, inadvertidamente, discurso público e privado, os cancelados históricos que não entram na conversa e só observam.
Aprenderam demasiadamente a dura lição de que os subalternos não devem falar, apenas obedecer. Falar só quando for autorizado ou permitido pelo outro. Não se intrometer, porque o outro pode te criticar de volta e "te expor". Ter vergonha da falta de modos, da precariedade de recursos de linguagem e de cultura. Tudo isso caracteriza o transporte das relações de poder, segregação e dominação para dentro da internet.
Neste ano, no qual a temperatura política da rede tende a esquentar por causa das eleições, é melhor nos prepararmos para distinguir as coisas e aprender a ler, sim, sempre todos os comentários, responder quando possível e reconhecer quando necessário. Ainda que isso signifique contrariar seu interlocutor.
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