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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com a tecnologia, psicanálise pode alcançar mais gente ou virar mercadoria

Popularização do tratamento online muda algo na prática da psicanálise no Brasil? - Getty Images
Popularização do tratamento online muda algo na prática da psicanálise no Brasil? Imagem: Getty Images

28/01/2022 04h00

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* Este é o segundo de três artigos da série "Democratização da Psicanálise e Inclusão Social", que trata de psicanálise, democracia e tecnologia. O primeiro artigo está disponível aqui.

Este parece um retrato chocante para nossa época. Como não é possível apressar a aquisição de conhecimento? Como pode existir algo que não se reproduz anonimamente de tal forma que eu posso substituir cada ponto do processo de produção por outro agente que fará a mesma coisa?

Por exemplo, meu analista está de férias, por que não posso, durante este tempo, seguir minha análise com outro psicanalista? Não é assim que os médicos fazem (aliás, para o bem dos pacientes, parcelando o tratamento por equipes e especialistas cada vez mais eficientes em aspectos cada vez mais específicos do adoecer humano)?

Neste ponto talvez esteja mais claro porque os psicanalistas, em diversos países do mundo, recusam-se a fazer parte dos sistemas de regulação das profissões.

Eles atuam como médicos, psicólogos, psicoterapeutas, usando muitas vezes a psicanálise, como sua abordagem clínica, mas eles não são e não querem ser reconhecidos e contratados como psicanalistas.

Cem anos depois de Freud isso trouxe um problema prático que é: como reconhecer então que alguém é um psicanalista?

Posto que a prática está aberta a livre autodeclaração, não vai aparecer um fiscal do inexistente sindicato, ou corporação dos psicanalistas, a dizer que isso é ilegal e charlatanismo.

Considerando, como vimos que a formação do psicanalista se dá de forma pessoal, oral e direta, ou seja, pelo ingresso e participação em uma comunidade de psicanalistas, isso nos remete às escolas, instituições e grupos historicamente consolidados.

Aos olhos de qualquer leigo isso parece simplesmente um clube cujo monopólio de entrada e pertencimento é regulado por um grupo especial de pessoas que controlam a prática. Isso levou e leva a psicanálise a ser percebida como uma prática feita pelas elites e para as elites.

Durante muitos anos os psicanalistas se conformaram com esta crítica, afinal ainda não conseguimos inventar uma maneira de atender mais de 20 ou 30 pacientes por semana.

Ainda não conseguimos apressar os tratamentos para que eles durem apenas alguns meses (aliás como Freud queria).

Ainda não conseguimos obter resultados com alguma durabilidade comprovada, com menos de 53 sessões por ano.

Pior, ainda não criamos uma forma rápida e barata de produzir mais psicanalistas, uma vez que se entende que para se tornar um bom clínico sua própria análise deve ser, digamos assim, um pouco mais aprofundada e um tanto mais exigente do que a daqueles que se darão por satisfeitos ao terem aliviado um pouco seus sintomas, inibições e angústias.

Alguns dirão: não existe saber ou prática que não possa se aperfeiçoar tecnologicamente. Outros responderão: diminua, apresse e compacte a formação e você terá psicoterapeutas, que podem ser excelentes na cura, uma vez que a psicanálise não é a única forma efetiva de tratamento pela palavra em saúde mental e certamente não é a melhor e mais adaptada para todos.

Há outras abordagens que demandam formação complementar, também chamada, fora do Brasil, de training: Psicologia Analítica de Jung, Gestalt terapia de Pearls, Psicodrama de Moreno, Psicologia Individual Adler, Bioenergética de Reich, todas elas ensinadas regularmente nos cursos de graduação.

Podemos pensar ainda que há um termo genérico para designar um trajeto mais curto ou mais rápido de treinamento e habilitação: chama-se psicoterapia.

Muitos psicanalistas são também psicoterapeutas, porque vem de percursos anteriores em medicina, em psiquiatria ou psicologia que os autoriza, pelo Estado e pelas normas que regulam estas profissões, a praticar a psicoterapia.

Mas nem tudo no campo da saúde mental é psicoterapia. Existem muitas outras formas excelentes de escutar os outros em relação de forma a reduzir o sofrimento psíquico.

Há bons conselheiros (counseling), ótimos trabalhadores sociais (social workers), pessoas que ajudam muito as outras pessoas pela prática da escuta, como os pastores e sacerdotes das religiões.

Há ainda ótimos escutadores e brigadas informais de saúde mental, como estamos tentado estimular em vários âmbitos [1].

Mas se continuarmos nesta linha, chegaremos em algum ponto nebuloso, onde estão as práticas chamadas alternativas (cromoterapia, florais, homeopatia, aceitas pelo SUS).

Depois disso tudo, isso começa a se confundir com coachings, curadores de almas e xamãs, técnicas de meditação e mindfullness, desenvolvimento corporal e disciplinas de autoajuda, autoeducação e constelações familiares, para não falar o uso não mediado, como automedicação, por meio de substâncias legais e ilegais, com a finalidade de aliviar o sofrimento psíquico.

Muitas destas práticas não são reguladas pelo Estado, exatamente como a psicanálise. Isso leva alguns maledicentes a tratar o conjunto como pseudociência, armação ou charlatanismo. Por trás deste argumento geralmente se esconde a crítica de que tais praticantes da cura pela palavra, estão querendo apenas explorar a boa-fé e o sofrimento alheio, extraindo dinheiro e reconhecimento por meio de ilusões e doutrinamentos.

Infelizmente, argumentos deste tipo, muitas vezes concorrem para aumentar a estigmatização de quem sofre com transtornos mentais e procura, como lhe parece justo, aquela técnica, pessoa ou método que está a mão e que lhe é possível.

Não há nenhum interesse da psicanálise julgar tais práticas onde se encontrará ótimos terapeutas (perceba que agora eu abreviei a designação psicoterapeuta para terapeuta).

Recentemente surgiu uma proposta de regulamentar a prática psicanalítica como uma prática naturista, o que convocou a Articulação das Associações Psicanalíticas Brasileiras a se manifestar, aliás como já tinha feito em várias ocasiões em que grupos religiosos tentaram profissionalizar a psicanálise como uma prática neoevangélica

Na psicanálise, apesar das imposturas, não há sindicato, conselho ou qualquer órgão que se apresente genericamente como habilitante para a prática, assim como não há título de especialista para tal função. A autorização acontece nas escolas, associações ou sociedades. São elas que reúnem em caso de emergência.

Ocorre que não estamos muito acostumados com práticas que têm presença no espaço público, respondem ao interesse público (por isso estão na saúde mental nas universidades e nas instituições), mas são geridas por uma comunidade.

Nossa tendência é sobrepor a organização comunitária com a forma empresa. Se não é estatal é empresarial, certo?

Neste caso a psicanálise é uma exceção.

Suas entidades de formação, pelos menos as mais reconhecidas, não são corporações orientadas para o lucro, mas associações que visam um fim: transmitir e divulgar a psicanálise.

Ainda que existam grupos de dominância política, as escolas de psicanálise não têm sócios proprietários e por isso representam um caso interessante para repensar o atual estado do capitalismo de plataforma, a degeneração universitária de curso de baixa qualidade, o uso do ensino à distância para corromper regras elementares de formação, importação da retórica comercial ou das tecnologias digitais de venda e consumo para os serviços de saúde.

Elas não anunciam nem fazem propaganda para angariar mais membros, alunos ou clientes, ainda que informem suas atividades e tornem público seus cursos.

Mas convenhamos isso tudo seria de fato tornar a psicanálise mais popular ou criar um outro produto que a imita, prometendo a cura ou a formação barata e rápida?

Recentemente discutiu-se a criação de um curso de graduação em Psicanálise, à distância, proposto por uma destas universidades que prosperaram à base do ensino de massa, achatamento de currículos e exploração de professores mal pagos.

Isso levou a novo posicionamento da Articulação das Entidades Psicanalíticas, de várias Escolas de Psicanálise e de muitos psicanalistas individualmente.

No Brasil a graduação em psicanálise, assim como o curso de graduação em Psicologia indica habilitação legal para a prática. Alguém que conclui um curso de Psicologia e esteja em dia com o Conselho Federal e Estadual de Psicologia, está autorizado a abrir um consultório e praticar a psicoterapia.

Observe-se que nesta mesma graduação ele poderá ter aulas e supervisões clínicas de psicanálise, mas nenhum de seus professores dirá que você se tornou psicanalista porque cursou Psicologia.

Os cursos livres, as pós-graduações, as especializações temáticas ou genéricas, os estágios de natureza hospitalar, jurídica ou organizacional, onde se tem contato com a psicanálise são atividades complementares ou suplementares, bem-vindas na formação de qualquer psicanalista, mas insuficientes para autorizar a prática.

Lembremos, para quem está pensando em prestar o mestrado ou o doutorado: pós-graduação forma professores e pesquisadores, não forma clínicos ou práticos em psicanálise. Se errar essa na entrevista será eliminado na hora.

Pode parecer anacrônico, mas nessa matéria vigora um minimalismo: especialista em psicanálise não equivale a psicanalista.

Todas as qualificações, adjetivos e apostos ao termo psicanalista, tal como psicanalista integrativo, psicanalista quântico, psicanalista cristão, psicanalista holístico, desqualificam imediatamente quem as emprega. O que não impede que às vezes se esclareça a orientação clínica ou autor que se toma por referência, por exemplo: Bion, Klein, Winnicott etc. Mas isso não indica um outro tipo de psicanálise, apenas conceitos e práticas predominantes na formação que recebemos.

Formação é um conceito, presente em Goethe, Herder e Hegel, do qual a psicanálise possui sua própria versão. Formação decorre de uma relação artesanal, indefinidamente continuada, pessoal e direta, envolvendo o tempo próprio de cada candidato, passando pela análise pessoal, supervisão e estudo teórico.

Por isso, e assim como o artista, é ele mesmo, na sua relação com o inconsciente, sob a transferência vivida no interior de um tratamento, com seu analista e na comunidade na qual ele se forma, que alguém se autoriza a si mesmo como psicanalista.

Isso é incompatível com um curso de graduação porque este não tem condições e não deve "impor" uma análise pessoal a seus alunos, nem de respeitar o tempo e a lógica própria requerida pela formação.

Formar-se como psicanalista é formar, em si, o desejo de analista. Isso pode demorar muito mais de quatro anos. Além disso, uma graduação em psicanálise, no Brasil, significaria habilitar seus formandos a praticar a psicanálise, tornando, indiretamente, a psicanálise regulada pelo Estado.

Muitos se insurgiram contra isso argumentando que isso comprova o elitismo dos psicanalistas, que querem impedir a psicanálise chegar às pessoas comuns de modo prático, rápido e acessível, continuando assim a manter o poder de regular quem tem acesso a ela, reproduzindo seu perfil de classe, gênero e raça.

Chegamos assim a uma prova de fogo: de um lado a elite que pode sustentar um plano de estudos e investimento na formação depois de um curso universitário regular, do outro a distribuição farta do mesmo título por um valor muito mais em conta.

Notemos que se infiltrou uma definição indireta de elite em nossa conversa. Quem pode manter-se em formação permanente, quem pode dedicar-se a estudos prolongados, estágio, aprimoramento e pós-graduação já está na elite do acesso à educação.

Soma-se a isso a extensão e custo de uma psicanálise pessoal. Acrescente-se a isso o fato de que o início da prática é lento. Em geral, leva alguns anos para alguém se estabelecer como profissional liberal e receber pacientes regularmente, se esta for a forma escolhida para oferecer seus serviços.

Neste quesito muitos desconhecem as iniciativas atuais de ampliação de acesso à psicanálise, que mencionamos na coluna anterior. Ainda assim, com honorários módicos e com as clínicas públicas, quem consegue disponibilizar tempo e dedicação para um projeto como este, nas condições laborais e de cidadania, hoje vigentes no país, deve se considerar imediatamente parte da elite.

Portanto, a pergunta central não é se o tratamento analítico é de elite ou não, mas que tipo de elite queremos no quadro da "luta de classes" que habita a psicanálise? Qual é a responsabilidade e implicação social desta elite para com as condições sociais e culturais que a tornaram possível?

Aqui chegamos ao impacto da tecnologia sobre este processo na medida que os tratamentos online, se multiplicaram e se consolidaram durante a epidemia de covid-19.

Muitos psicanalistas já declaram que vão se manter exclusivamente online, outros retornarão em esquema híbrido. Alguns tantos não se deram bem com a novidade.

Isso produz uma ampliação da oferta capaz de reduzir e tratar, talvez, os abusos causados pelo fato de que por estar assim presa ao seu território prático, ela gerava muitos caudilhos, abusos e concentração de poderes e transferências.

Especialmente em lugares mais afastados a disponibilidade de psicanalistas era e é restrita, o que favorece práticas concentracionárias.

Com a popularização dos tratamentos online isso poderá ser mitigado.

Por outro lado, os mesmos recursos usados para democratizar o acesso a psicanálise podem servir para mercantilizá-la ainda mais.

As elites, as boas práticas consensuadas e as referências comunitárias da psicanálise terão um papel decisivo neste processo.

REFERÊNCIAS

[1] Dunker, C.I.L. & Thebas C. (2019) O Palhaço e o Psicanalista: como escutar pessoas e transformar vidas. São Paulo: Planeta.