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Blog do Dunker

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É grana que define quem é a elite da psicanálise? É hora de rever as ideias

Elite não é só quem tem dinheiro, mas todo e qualquer representante de excelência na ocupação do espaço público - Pixabay
Elite não é só quem tem dinheiro, mas todo e qualquer representante de excelência na ocupação do espaço público Imagem: Pixabay

04/02/2022 04h00Atualizada em 08/02/2022 11h07

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* Este é o terceiro e último de três artigos da série "Democratização da Psicanálise e Inclusão Social", que trata de psicanálise, democracia e tecnologia. O primeiro artigo está disponível aqui e o segundo artigo está aqui.

Em seu artigo na Folha de S.Paulo Marco Antonio Coutinho Jorge detalhou argumentos da comunidade psicanalítica contra a existência de um curso de graduação em psicanálise. Como discutimos em nossa coluna anterior, a defesa da psicanálise pela comunidade dos psicanalistas pode estar atravessada por interesses corporativos, mas também pode estar ligada à ampliação por outras vias do acesso a psicanálise no Brasil, como discutimos na primeira coluna desta série.

Seu artigo foi criticado pelo professor de Filosofia, Érico Andrade, em uma coluna subsequente no mesmo espaço. Ele começa afirmando que "poucos têm o valor de um carro ou de um apartamento para enveredar pela carreira de psicanalista", ao contrário do que teria ocorrido na época de Freud em Viena.

O autor parece desconhecer as iniciativas que discutimos em nossa primeira coluna, bem como a existência de formações bem mais acessíveis, do que o custo de um apartamento, como, por exemplo, aquela da qual ele mesmo participa no Círculo Psicanalítico de Pernambuco, no qual estive mais de uma vez.

A psicanálise não é uma tradição popular brasileira, mas pesquisas recentes [1] têm mostrado que ela era muito menos elitizada no seu início em Viena onde clínicas públicas de psicanálise foram instaladas em todas as pré-escolas, em muitos hospitais públicos, no contexto da modernização social-democrata, conhecida como Rotte Vien (Viena Vermelha) no entre guerras austríaco.

Entre 1918 e 1939 a psicanálise fez parte da saúde pública na Hungria e muitos psicanalistas se cotizavam para o que o tratamento psicanalítico fosse acessível a todos, aliás conforme declaração expressa de Freud neste período.

"Paga-se muito na formação em psicanálise e compensa-se cobrando muito nas sessões".

É verdade que muitos psicanalistas cobram valores elevados, mas será que isso é realmente um círculo vicioso que não está sob modificação no Brasil de hoje?

No futebol e na medicina muitos ganham muito dinheiro, isso é suficiente para dizer que são práticas de elite? Sim e não.

Se você pensa na medicina de ponta, com procedimentos caríssimos e equipamentos de ponta, ela será uma coisa para privilegiados. Ao julgar assim, o campo como um todo, você coloca fora da conta os programas do SUS de acesso a medicação de alto custo.

É preciso suspender o bordão preguiçoso que afirma que "a psicanálise é muito cara, por conseguinte elitista". Não apenas pela generalização e unificação imprópria da psicanálise, mas porque ela coloca em jogo um conceito banal e redutivo de elite.

Diante da miséria todos os outros são elite. Elite não é só quem tem dinheiro, mas todo e qualquer representante de excelência na ocupação do espaço público. Há uma elite das periferias, das comunidades vulneráveis, dos trabalhadores e dos oprimidos.

Elite define-se também pela sua capacidade de articulação, representação e reconhecimento. Há uma elite branca entre as mulheres. Há uma elite entre os negros, que alguns abordam com a questão do colorismo.

Há um movimento muito interessante em São Paulo, chamado PerifAnálise, que pretende atender pessoas reduzindo a assimetria social de poder e de acesso a serviços. É uma experiência pioneira, que está advertida da lógica de mercado, sem ao mesmo tempo recusar a circulação do dinheiro.

Eles foram apoiados por programas de incentivo, o que impulsiona sua qualidade e visibilidade.

Seria justo e decente criticar uma iniciativa como esta dizendo que se trata de uma elite simplesmente porque em termos comparativos ganham mais do que outros trabalhadores do SUS?

Em certo sentido, e seria preciso explicitar qual, a PerifAnálise faz parte da elite de seu território e por isso estão sendo reconhecidos.

O desafio real é fazer chegar recursos de formação para estes grupos de excelência e inovação. Isso é tarefa e responsabilidade para a nova psicanálise brasileira.

Percebe-se que se identificamos elite e riqueza deixamos de lado a pergunta principal que é qual a responsabilidade desta elite em distribuir, compartilhar e retribuir os bens simbólicos e materiais que ela possui.

Caso contrário, e isso será crucial para o cenário político deste ano, estamos confundindo luta de classe com ressentimento de classe. Estamos patrocinando uma esquerda que odeia dinheiro, porque ela pode muito bem fingir que estão fora do mercado apenas porque trabalham para o Estado. Uma esquerda que não consegue perceber que o Estado é capitalista também e que nem tudo que está fora do Estado tem estrutura e função de empresa.

A mesma confusão reaparece quando se diz que a psicanálise é usada "para criticar o neoliberalismo mesmo sendo sua prática clínica uma importante aliada do neoliberalismo", pois se centra no indivíduo e no mercado.

Sim, temos criticado o neoliberalismo a partir da psicanálise, mas não só dela. Dizer que a clínica psicanalítica lida com indivíduos contraria a mais básica declaração de Freud, desconhece o impacto coletivo da psicanálise e a identifica com consultório particular.

Uma sucessão de erros formais e conceituais que servem de pretexto para esclarecer que a psicanálise não é uma unidade ideológica, mas um conjunto antagônico de tendências mais progressistas e mais conservadoras.

Afirmar que quanto maior a demanda, maior será o preço da sessão é ignorar variações reais e silenciosas, que talvez o principiante desconheça, é perpetuar o mito da unidade da psicanálise.

O erro lógico consiste em aplicar o que se quer provar, como conclusão antecipada: se o mercado faz assim e a psicanálise não está fora do mercado, a psicanálise faz assim. Nenhuma consideração quanto ao fato de que o mercado muda e que o capitalismo de plataforma é diferente do capitalismo do senhor de engenho, nenhuma consideração pelo impacto digital neste processo.

Mas o pior vem depois.

Se a prática da psicanálise já é capitalista ela não deveria questionar a abertura de um curso de graduação em psicanálise, apontando sua natureza empresarial. Como se houvesse também um único tipo de capitalismo, homogeneamente distribuído em cada um de nós, a exceção dos puros de coração que fazem sua crítica angelical porque estão fora dele.

A ideia de uma formação social, para que os preços exorbitantes parem, como se isso fosse uma novidade, a afirmação de que as clínicas sociais das instituições de psicanálise quase nunca existem e de que estaríamos passivamente observando a reprodução social da desigualdade brasileira, parece a observação de alguém que está de férias em Paris.

Como se nota no uso corrente da expressão, existe uma "elite", entre aspas, que designa aqueles que não se portam de acordo com o lugar social que ocupam, seja econômica, ética ou culturalmente, assim como existe uma elite, sem aspas, que usamos para designar descritivamente aqueles que obtiveram excelência e reconhecimento em qualquer atividade humana.

É essa distinção que se perde quando o argumento de fundo é capitalismo por capitalismo, tanto faz instituições de psicanálise ou graduações que expoliam alunos à distância.

Igualar psicanalistas que escrevem livros críticos ao neoliberalismo ou psicanalistas que escrevem livros coach de RH ou resenhas edulcoradas sobre cinema é próprio da elite que não se reconhece com elite.

Suspender a diferença entre Escolas de Psicanálise que cobram cotizações razoáveis (como várias em São Paulo) e as que penhoram apartamentos é ignorar frontalmente que a desigualdade social brasileira é heterogênea.

Identificar psicanalistas que atendem pacientes com honorários variados, que acompanham as adversidades econômicas de seus analisantes com aqueles que tabelam preços de sessões avulsas e leiloam seus horários é deixar de reconhecer por onde a transformação pode acontecer, o que só interessa à "elite".

Criticar escolas psicanalíticas que têm políticas ativas de bolsas de estudo e aquela que se mantém segregativas é deixar de indicar caminhos para a elite da periferia e para a elite dos futuros clínicos.

Imaginar que jovens candidatos a psicanalistas no Brasil de hoje enfrentam as mesmas dificuldades de formação que existem em muitos contextos europeus ou americanos é desconhecer muito a realidade brasileira.

Afirmar que capitalismo equivale a elite, riqueza e forma indivíduo e assim reversamente, não é só assassinar Marx, mas reproduzir o atraso da "elite" que julga no atacado que não existe ninguém batalhando pelo varejo da mudança que queremos. É o desconhecimento de que a luta de classes também acontece dentro da psicanálise.

Podemos dizer que existe sim uma elite entre "aspas", que é aquela que não faz jus à sua posição de elite, por isso as aspas. É esta que vive a culpa e o complexo de impostura permanente. Para ela, a "elite" é sempre o outro.

Jessé de Souza a chamou de elite do atraso: apegada a privilégios, ao personalismo sensível, senão ao racismo tácito e a misoginia silenciosa. Para esta "elite", já que não estamos em democracia plena, tanto faz que tipo de autoritarismo está em vigor.

Mas há também a elite que busca responsabilidade e implicação e esta não devia temer dizer seu nome. Rica ou pobre, cara ou barata, negra ou branca, masculina ou feminina, sulista ou nortista, europeia ou brasileira, o que importa saber é se ela é democrática e inclusiva ou segregatória e inconsequente.

REFERÊNCIAS

[1] Danto, E. (2021) As Clínicas Públicas de Psicanálise. São Paulo: Perspectiva.