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OPINIÃO

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Pornografia: você investe em prazer de qualidade com ajuda do meio digital?

Chegada da cultura digital trouxe consigo uma confusão ainda maior sobre o universo pornográfico - Valeria Boltneva/ Pexels
Chegada da cultura digital trouxe consigo uma confusão ainda maior sobre o universo pornográfico Imagem: Valeria Boltneva/ Pexels

04/03/2022 04h00Atualizada em 04/03/2022 11h48

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É difícil traçar uma linha divisória entre erotismo e pornografia, principalmente quando olhamos para a história e percebemos como aquilo que era pornográfico em uma época tornou-se erótico em outra, terminando às vezes por ser integrado à doxa cultural.

Uma maneira mais simples seria tomar por critério o comércio sexual e o recebimento de dinheiro em troca de serviços ligados ao prazer. Sim, apesar do michê ou do prostituto ser uma figura muita antiga, a pornografia foi associada historicamente a mais uma das formas de exploração e coisificação social da mulher e, como diz Andrea Dworkin, à indústria pornográfica.

Mas mesmo nesta matéria a controvérsia persiste se olharmos para o recente trabalho da feminista, ex-prostituta e ex-caminhoneira Virginie Despentes e sua teoria King Kong:

Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça. E começo assim para que tudo fique claro: não me desculpo de nada, não vim aqui para reclamar." [1]

O que o feminismo punk raiz vai contestar é justamente esta linha imaginária que separa aquelas que estão no mercado e as que estão supostamente fora dele, por que estão na família, recatadas ou do lar. Sua crítica revela mais uma vez como é fácil e improdutivo fazer a crítica das elites a partir da elite.

Mas, evocação digital do sexo daria mais razão a Despentes ou Dworkin?

A vida digital é uma vida extensamente pornográfica, baseada em closes e enquadramentos radicais, que mostram sempre o instante da penetração, ou seja, o gatinho feliz, o super sorvete, o gozo do bloquinho, a imagem instagramável da cabana na selva, sem nenhuma história ou sequer uma "face humana" que não esteja reproduzindo a pose orgiástica de Santa Teresa, a escultura de Bernini.

Bernini  - Creative Commons - Creative Commons
Detalhe da obra "O Êxtase de Santa Teresa", de Bernini
Imagem: Creative Commons

Ou então, a pornografia digital nada mais é do que a síntese desta nova época de separações estritas entre mercado e vida livre.

O mistério da vida consiste em saber onde termina o sexo e começa a pureza, até onde vai a política e onde começam as coisas como elas são. Aqui, mamadeira é mamadeira, piroca é piroca, dancinha de TikTok é dancinha de TikTok e vulva é vulva.

Às vezes, a natureza da mudança depende da velocidade como ela acontece.

Todos concordamos que a vida digital barateia coisas e relações ao mesmo tempo que acelera a capacidade de troca e escolha. Ou seja, nada mais daquela rançosa revista Ele e Ela, às quais inúmeras homenagens foram prestadas, nas tardes de verão, depois da escola.

Agora se você consegue achar de novo a mesma inesquecível camgirl, dê-se por satisfeito.

Aliás, é a velocidade que faz a diferença entre um romance romântico de 500 páginas e um vídeo pornô, que dura 5 minutos. Ainda que ambos terminem no mesmo ponto é o processo que conta.

E este processo podemos chamar de sedução, construção de intimidade, formação de consenso e causação gradual e recíproca do desejo.

Mas assim como o neoliberalismo fez tudo uma questão de preço e entrega porque não ir direto ao que interessa?

Uma visita ao Museu de Arte de São Paulo, o Masp, ou ao Museu de Arte Moderna , o MAM, mostrará corpos nus, cobertos por flechas, espicaçados por tridentes, ou simplesmente recostados sobre um divã.

As imagens podem sugerir vagamente a masturbação como a Vênus de Urbino, de Ticiano, ou podem apresentar um nu frontal com "A Origem do Mundo" de Courbet, que pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan, ou ainda, retratar uma virgem renascentista, pura e desnuda como a natureza.

Vênus de Urbino, de Ticiano - Reprodução - Reprodução
Vênus de Urbino, de Ticiano
Imagem: Reprodução

É certo que muitas destas telas pertencem ao gênero da pintura de câmera, ou seja, não ficavam na sala de estar, mas no quarto onde o casal se encontrava para seus afazeres íntimos.

Certo, a pintura afrodisíaca não era pornográfica, mas erótica, mas o que dizer dos ateliês e oficinas onde mulheres passavam horas nuas, posando para o olhar do pintor, e sua equipe, em troca de remuneração muitas vezes incerta?

A chegada da cultura digital trouxe consigo uma confusão ainda maior sobre o universo pornográfico.

Um adolescente que manda nudes está praticando a pornografia? Só se for pago por isso. Mas e se o pagamento for em reconhecimento, curtidas ou autoridade moral sobre seus amigos? Só se for de forma livre e consentida. Certo, mas e se depois do livre consentimento o material for usado para vilipendiar ou chantagear?

É como se o lento processo pelo qual algo passava da condição de extravagância sexual para relíquia moral pudesse acontecer em algumas semanas e fosse exposto a contínuas reversões.

No filme "Não Olhe Para Cima" (Adam McKay, 2021) há uma interessante paródia deste processo. O perigo crucial do fim do mundo recebe menos atenção do que um casal de artistas, que atrai mais atenção sobre si expondo suas intimidades e traições.

Ou seja, a revelação do íntimo no espaço público, para fins pecuniários, se tornou um negócio para a livre iniciativa individual, e os limites da exploração pornográfica parece não ter fim.

Se definirmos a pornografia como o "discursos das prostitutas", isso traz a facilidade de localizar o problema, mas cria outro, a saber, como reconhecer a prostituição?

Aliás, é basicamente assim que a lei brasileira tipifica o crime, ou seja, quando há um intermediário, agenciando, estimulando e muitas vezes coagindo a trabalhadora sexual.

O problema migra agora para o regime exato de coerção, a ausência de envolvimento emocional prolongado, a posição de poder daquele que paga e assim por diante.

Experiências digitais ascendentes como o sugar daddy ou sugar mommy, na qual um certo compromisso social ou relacional fica subentendido na relação, onde há "presentes" às vezes sinceramente distribuídos, pode ser considerado prostituição, logo o discurso dos envolvidos é pornografia?

Ora, a existência de um discurso das prostitutas, na Grécia antiga, precisa ser contextualizada.

Ele era parte de um discurso mais extenso sobre a arte de amar, como vemos em Ovídio, Safo e no oriente do Kama Sutra, mas que por outro lado era um discurso majoritariamente feito por homens para o consumo das mulheres, que gostariam de aprender a agradar seus maridos.

Foi Sólon, um dos próceres da democracia, a criar o primeiro bordel em Atenas. Neste contexto a possibilidade de falar, e de dizer por si mesmas, sobre a arte erótica, era uma prerrogativa de suma importância.

Mas as prostitutas eram divididas entre as pornai (escravizadas), as prostitutas nascidas na rua e as hetaera, mulheres instruídas que tinham acesso ao espaço público. Não foi, portanto, a elite da prostituição que foi homenageada com a noção de hetaeragrafia, mas a rara condição na qual as escravizadas podiam falar, a pornografia.

Aliás, durante a Roma antiga assim como no mundo helênico a fala das prostitutas tinha um lugar mais elevado do que a da maioria das mulheres, sendo lhes reservado, certos direitos, por exemplo, a escolha de como queriam ser mortas.

Ou seja, mais uma vez a diferença não está no ato de troca de serviços sexuais por dinheiro ou proteção, mas no processo, na extensão do tempo no qual ele se dá, na troca de palavras que formam e reconhecem o outro como um sujeito e não na brutal, e porque não dizer, "pornográfica" separação entre o sujeito agente comprador (geralmente homem) e o objeto, passivo, comprado (geralmente mulher).

Pesquisas neurocientíficas mostraram que o cérebro dos consumidores contumazes de pornografia comporta-se de maneira muito semelhante ao de alcoólatras severos, abusadores de polisubstâncias, fumantes, obesos, pessoas com déficit de atenção e hiperatividade (TDHA), portadores de tiques e síndrome de Tourette, autismo (incluindo Asperger), pessoas que sofrem com transtornos compulsivos e impulsivos, comportamento sexual aberrante, jogo e "texting" obsessivo, jogo patológico, "workaholismo" (trabalhador compulsivo), "shopaholism" (comprador compulsivo), transtorno de conduta, personalidade antissocial, comportamento agressivo e padrões patológicos de crueldade e violência.

Ao que parece a pornografia, como sua longa história testemunha, continua a andar em má companhia.

Sim, todo psicoterapeuta que já teve pela frente alguém com uma dependência em pornografia sabe como isso é grave, sofrido e difícil de tratar.

Sim, a indústria pornográfica explora pessoas e cria uma mentalidade generalizada de consumo sexual de baixa qualidade.

Por outro lado, quem está realmente a salvo da lista acima? Não seria o caso de investir mais em qualificação de nossos prazeres, inclusive com mediação digital, e menos em linhas imaginárias de proteção e pureza?

REFERÊNCIA

[1] Despentes, V. (2018) Teoria King Kong. São Paulo: N-1.