Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como áudio de Arthur do Val que viralizou confessa verdade íntima obscena
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Recentemente o deputado estadual por São Paulo, Arthur do Val teve um áudio vazado. Ele estivera na fronteira da Ucrânia sob o pretexto de auxiliar o país em guerra. Uma vez lá enviou áudios comentando a beleza das ucranianas e seu aspecto "fácil" tendo por cenário uma fila de refugiados.
A reação de indignação atravessou as redes sociais, em meio ao Dia Internacional da Mulher e ao contexto de miséria e violência contra os mais vulneráveis. O deputado, conhecido como "Mamãe Falei", postou um vídeo de esclarecimento, dizendo que "aquele" não era "ele" e que esta definitivamente não era a imagem que ele queria passar para os "outros". Aquele outro ele era um "moleque".
O caso despertou críticas feministas, antirracistas e denúncias que arruinaram as pretensões de seu partido, o Podemos, a usá-lo como porta de entrada e cabo eleitoral de Sergio Moro em São Paulo, bem como ocasionaram a retirada de sua pré-candidatura ao governo do Estado, bem como mobilizaram a comissão de ética e a deputada Isa Penna (PSOL), recentemente alvo de assédio televisionado, no interior da própria Assembleia Legislativa, a considerar o desligamento do político de suas funções.
Eu mesmo fiz um vídeo comentando a regularidade de certos traços discursivos que cercam o personagem.
A expressão "Mamãe Falei" por si só remete a criança que no almoço de domingo põe a nu a verdade secreta da família. Aquele tipo de verdade que todos sabem, mas que ninguém ousa dizer, antigamente associada com a história da criança que diz que "o rei está nu", enquanto todos os outros caem no conto do alfaiate que teria feito uma roupa invisível.
A criança que diz a verdade é uma potente posição enunciativa, pois mostra como o processo civilizatório é atravessado pelo aprendizado de mentira, hipocrisia e cinismo por meio do qual aprendemos que uma coisa é o que fazemos em casa, outra é como devemos nos comportar na rua.
Uma coisa é o que se faz na sala de estar, outra o que reservamos para o banheiro.
Uma coisa é o casal entre amigos, outra coisa é o casal entre quatro paredes.
Mas na educação do filho mimado, os pais adoram cultivar este lugar da criança que diz a verdade, esquecendo também que com isso estão dizendo que isso é tão legal que você pode transgredir as regras de educação e civilidade, pois será ainda mais amado por sua autenticidade.
É assim que criamos machos que se creem exceção da lei, pois foram tratados com o benefício do elogio à denúncia, logo percebido como forma de poder, ligado ao bullying e à extorsão moral do outro.
Ora, esta separação entre o espaço público e o espaço privado tem muitas funções, e a clareza e distinção entre o palco e o mundo são cruciais para fazermos esta outra distinção: entre a criança e o adulto.
Aquele que não sabe operar com as contradições e diferenças entre o papel social ou personagem, que desempenha no palco da vida e a sua própria condição de ator, diretor ou roteirista da comédia ou tragédia da sua própria vida, em tese é alguém que nós subqualificamos.
O palhaço, bobo da corte e em certa medida o psicanalista, situam-se historicamente neste lugar limítrofe, do qual podem dizer certas verdades justamente porque não participam do jogo de interesses e das disputas pelo poder.
Um lugar de observador, do jornalista, do magistrado ou cientista também está associado com esta posição terceira, mas que não visa tanto a verdade, e mais o saber necessário para que a conversa continue, para que o diálogo seja mais produtivo e para que os conflitos sejam incorporados como parte enriquecedora do processo. Seu papel é mais fornecer informações, qualificar os interlocutores ou organizar os argumentos do que influenciar no resultado do jogo.
Mas todo este mundo ruiu quando passamos de uma cultura onde os traços do espaço público eram bem separados de nossas manifestações da vida privada, o que se acelerou brutalmente com a linguagem digital.
Nesta linguagem temos uma sobrevalorização da escrita em relação à oralidade e à voz.
A fala, composta por estas duas dimensões, é prisioneira de sua própria efemeridade. Dizemos coisas que logo depois esquecemos porque elas foram ditas naquele calor diálogo com intenções e interpretações que se tornam misteriosamente opacos assim que passamos para o plano da escrita.
Pois a escrita é um instrumento de memória, assim como os áudios gravados, elas ficam para sempre. Elas podem ser reduzidas a momentos de verdade e cortadas para confessar o contrário do que se queria dizer.
A temporalidade da fala é muito diferente da escrita. Na fala, palavras são sequencialmente ditas e esquecidas, misturadas com o que veio depois, erraticamente ligadas a temas e assuntos e presa às suas circunstâncias de enunciação.
Todo aquele acusado por um áudio vazado apelará para o contexto e circunstância do que estava sendo dito. E mesmo tendo razão será criticado impiedosamente.
A palavra falada ou cantada inclui tom de voz, prosódia e inserção no fluxo mais extenso da conversa, tudo isso fica esquecido e perdido por trás do que se entende do escrito, sem face, sem alma.
O vazamento tornou-se assim uma arma política decisiva, como no caso de Julian Assange e Wikileaks, mas também o "vazamento do fim do mundo", pelo qual, segundo a Folha, nenhum dado de qualquer brasileiro está realmente protegido desde 2021.
O vazamento passou a ser uma prática cotidiana de produção da verdade. Casais assediam o celular alheio em busca da verdade faltante de suas vidas íntimas empobrecidas, adolescentes vazam nudes vingativos e pessoas são extorquidas diariamente através de aplicativos de relacionamento, usados com fins de golpe.
Mas o mais curioso é que esta tática adquira certa circularidade: o juiz Moro, que se caracterizou pela inovação jurídica de vazar áudios com finalidades políticas, é agora prejudicado porque seu palanque teve áudios machistas vazados, por colegas. E é possível que seus próprios "amigos" estejam agora dizendo, ainda que em silêncio: "mamãe falei".
O mesmo Mamãe Falei tornou-se ainda mais conhecido por ameaçar um destes personagens que associamos com o cuidado com a verdade, ou seja, ministros religiosos. Neste caso, ele declarou que o padre Júlio Lancellotti, emérito e querido organizador de causas beneficentes em São Paulo era um "cafetão da miséria". Incitando pessoas a atacar as obras de caridade do sacerdote, ele se aproveitava com fins políticos da "fila dos que vinham receber alimento" nas obras beneficentes.
E não é que no comentário sobre as mulheres ucranianas, para quem ele estava mobilizado em uma causa de caridade, teriam o seu próprio "cafetão da miséria"? A fila de refugiados com uma "fila de balada", só que "mais fáceis e mais belas".
Moral da história: cuide bem da forma como você xinga os outros, provavelmente ela é a maneira como você está confessando a sua verdade íntima mais obscena.
O vazamento é uma prática imperdoável.
Ele só se justifica, assim como o uso de pseudônimos em geral, pela denúncia de um fato político que não pode ser dito por outros meios, ou seja, em situação de controle do espaço público ou de uso opressivo do espaço privado.
Mas estamos a considerar que a palavra, como diz o psicanalista Jacques Lacan, é como uma porta, um termo dotado da mais alta carga simbólica, percebemos que a palavra fecha e ela abre. Ela permite que possamos nos sentir entre quatro paredes, mas também circulando entre a rua e a casa, entre a verdade e a mentira.
Ainda assim, o machismo é um sintoma social que só poderá ser vencido quando aprendermos que o silêncio dos oprimidos em suas próprias casas deve ser suspenso junto com a dupla moral, da casa e da rua, da santa e da prostituta, que faz do clube dos homens o clube da boçalidade.
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