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Blog do Dunker

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como a tradução digital do saber científico trouxe efeito inesperado

Deseducação no novo contexto digital passa por desacreditar a escola, imprensa e justiça - Elvis Bekmanis/ Unsplash
Deseducação no novo contexto digital passa por desacreditar a escola, imprensa e justiça Imagem: Elvis Bekmanis/ Unsplash

25/03/2022 04h00

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Uma das coisas mais curiosas, observadas pelos que se dedicam a estudar a aprendizagem humana é o fato de que não conseguirmos "não aprender". Ou seja, nossa relação com o mundo e com os outros impõe que o saber seja algo que não se pode apagar.

Por exemplo, você testemunha um crime. Um ministro da educação empreitando distribuição de recursos públicos, por meio de religiosos, em troca de apoio político.

Você pode neutralizar o fato dizendo a si mesmo que "já sabia", afinal, é isso que os ministros fazem, sejam eles religiosos ou não.

Você pode negar que isso tenha consequências significativas, pois o montante de recursos para educação já é tão pequeno que um desvio a mais outro a menos não fará diferença.

Você pode se convencer de que a ideia de privilegiar os "nossos" é uma forma de política como qualquer outra, pode ser meio arcaica, mas pelo menos é "transparente" e ninguém deve se envergonhar disso.

Ou seja, podemos inserir fatos em narrativas de tal maneira a produzir significação de modo "contraintuitivo", contrário ao bom senso ou violando o senso comum. Para isso é necessário antes estabelecer um determinado discurso.

Um discurso não é uma narrativa, mas uma espécie de vetorizador de narrativas. Um discurso agrupa versões de uma mesma história permitindo que o mesmo sentido possa ser indefinidamente repetido.

As notícias mudam diariamente, nunca são efetivamente as mesmas, mas assim elas nos parecem quando ligamos o mesmo rádio, televisão ou jornal. O discurso é o ponto de vista que capta e submete narrativas que, por sua vez, selecionam e qualificam os fatos.

Assim também funciona a ciência. Ela admite metateorias, chamadas também de epistemologias, que subordinam teorias, como agrupamentos de hipótese e conceitos, que por sua vez incorporam, sancionam ou relativizam fatos. As inúmeras narrativas concorrentes são hipóteses, lutando entre si, dentro de um mesmo paradigma.

Finalmente, o sistema de autorias faz com que o saber seja individualizado na forma de um sujeito responsável. Se ele mente, trapaceia ou exagera, deverá pagar a conta com perda de reputação, legitimidade ou reconhecimento.

Contudo, deseducar tornou-se uma tarefa fácil no novo contexto digital.

Pessoas atuam de forma inconsequente, sem ter que assumir responsabilidade por xingamentos, perjúrio, difamação, calúnia ou mera tolice pronunciada a céu aberto.

Instituições têm sua autoridade corroída ou derrogada simplesmente por representarem a forma de saber anteriormente hegemônica.

Comunidades transformam-se em massas de capitalização de imagem e investimento em estilísticas de vida, cujo capital pode ser deslocado indefinidamente ao sabor dos cancelamentos.

Uma vez estabelecida uma nova regra de discurso, incorporamos uma nova concepção sobre provas e argumentos. Podemos chamar isso de regime de verdade, ou de pós-verdade.

Incorporamos também uma nova versão de como teorias, metateorias e fatos se transformam. Há um pequeno grupo, que se reúnem toda noite, para decidir como as coisas são e como elas devem ser percebidas. Uma espécie de assembleia geral do conselho editorial da Folha ou do Estado, da Globo ou do SBT, da ONU ou da Otan, dos amigos do Putin ou do Trump, na qual os donos do poder jogam War e decidem como nós, os reles mortais, vamos pensar.

Se não for a Globo, pode ser a USP ou os esquerdistas, pode ser o STF ou o Centrão, desde que nunca sejam o 1% que tem efetivamente dinheiro desproporcional e são capazes de neutralizar todas as outras paranoias juntas.

Sim, fatos estão interligados por relações de causalidade, motivação ou racionalidade.

Fatos só são fatos quando agrupados em séries de fatos.

Mas estas instâncias não funcionam no vazio. Elas se encarnam em pessoas, instituições e comunidades.

Elas se dividem entre os saberes que se transmitem e são sancionados de forma privada ou pessoal e saberes que se apresentam na forma pública ou impessoal, saberes que são meras crenças religiosas elevadas ao status de políticas de Estado.

Saberes se organizam e se hierarquizam de forma homóloga ao modo como hierarquizamos pessoas, comunidades e instituições. Daí que é a pessoa, e não o que ela diz, que emerge como critério de verdade.

Portanto, se queremos deseducar um povo ou uma nação não basta acrescentar ou negar fatos, precisamos atacar a estruturação dos saberes.

O primeiro passo para isso é criar uma dissonância cognitiva entre os saberes tradicionais e familiares com os saberes públicos, com força de lei. Convencer as pessoas que elas devem escolher entre a família ou o Estado, entre o pai ou o professor. Para tanto é preciso desacreditar as instituições que nos ensinam a separar estas duas formas de saber: escola, imprensa e justiça.

Se olharmos de perto, estas três instituições mantêm relações muito curiosas de interdependência com a linguagem digital.

Os primeiros habitantes do espaço digital foram os circuitos universitários da ciência e os dispositivos formais e informais de aprendizagem. Face Book, por exemplo, é o nome do livro dos formandos da universidade de Harvard.

Os primeiros esforços de digitalização envolveram bibliotecas universitárias, como por exemplo o projeto Gutenberg. Hoje, o maior milionário digital é Jeff Bezos, dono de um negócio originalmente voltado para livros.

Mas a tradução digital do saber científico e o barateamento de seu acesso trouxeram um efeito inesperado, ou seja, a aproximação das pessoas comuns com a ciência, a percepção de que esta funciona com muito dissenso e controvérsia. Isso gerou a oportunidade e o pretexto ideal para dizer que ela é apenas um ajuntamento de elite, reproduzindo seus próprios privilégios.

O barateamento de todo processo que possa assumir a forma digital levou à crença de que qualquer um pode ter sua opinião válida sobre qualquer coisa. Abertura democrática e ocasião neofascista.

Processos análogos aconteceram com a justiça, que hoje vive de peças prontas e pré-fabricadas na internet, e com a imprensa, que teve seus dispositivos de qualificação gradualmente predados pela livre iniciativa das notícias livres.

A elite tradicional da opinião foi massacrada pela chegada de novos opinadores ou influenciadores digitais.

Para deseducar é preciso desacreditar, destruir ou relativizar toda e qualquer hierarquia institucional do saber.

Substituir a separação público e privado, pela prerrogativa do nós sobre "eles".

Convencer as pessoas de que todas as elites se nutrem do sistema e que a única vontade geral razoável é destruir o sistema.

Mas "o sistema" quer dizer escolas e universidades, operadores jurídicos e tribunais federais, jornais de grande circulação e canais de televisão. Ou seja, uma destruição dos "velhos poderes" em nome de "novos poderes" sem nome, cujas comunidades anônimas são governadas por algoritmos e cuja institucionalidade ainda não se realizou, nem como modelo de negócios, nem como autoridade legítima, orgânica e consensual.

No fundo, a deseducação acontece quando a direita coloca em prática digital o discurso da esquerda, invertendo seu sentido e mantendo sua significação.

No fundo do fundo, a deseducação é uma revolução às avessas, ela ataca o Estado para melhor parasitá-lo. Ela destrói hierarquias institucionais para criar outras, invisivelmente mais fortes, menos questionáveis e indispostas a prestar contas de suas próprias decisões, como vimos no recente episódio envolvendo o Telegram.

Ela cria pessoas sem nenhuma responsabilidade com a própria palavra e elites incapazes de dizer seu próprio nome.