Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Qual o motivo por trás do uso do discurso pornográfico de bolsonaristas
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As heteras, literalmente companheiras, eram cortesãs gregas, geralmente de origem estrangeira. Conheciam poesia, dança e filosofia, podiam trocar favores sexuais mas não eram efetivamente prostitutas:
Antes de tudo deves ignorar o sentido da palavra fidelidade e conhecer a arte de fingir e de mentir. Quanto à vergonha, ignore-a. E, se teu amante perder a paciência, finge arrancares teus cabelos e compra reconciliação com presentes " [1]
As pórnoi (prostitutas) eram em geral de classe social mais baixa e vendiam seus corpos, entre elas havia um certo respeito pelo seu discurso, conhecendo a intimidade e os meandros do poder do discurso das putas ou a pornografia.
Sob certas circunstâncias, este discurso podia denunciar excessos e abusos do poder.
Friné (Mnesarete) foi uma hetera famosa, que escapa da morte ao ter seu vestido rasgado, em pleno julgamento, sendo absolvida pela revelação de sua surpreendente beleza. Aspásia, mentora de Sócrates, foi acusada de influenciar Péricles. Neera ainda que tenha começado como prostituta também foi uma hetera.
Seja como mentira, seja como adulação, seja ainda como denúncia, a pornografia é um método tão antigo quanto a democracia.
Sua estilística é mais ou menos conhecida [2], mas o seu recente uso político baseia-se na inversão estas duas funções discursivas: a amizade e a denúncia.
Discurso compensatório e reativo, ele explora a inquietude gerada pela sexualidade, criando um universo que vai direto ao ponto, sem mediação, explicitando o que deveria permanecer oculto. Por isso, tipicamente, quando é usada pela política, ela é uma transgressão necessária para gerar mais repressão.
Quando a ex-ministra e senadora eleita Damares Alves denuncia que crianças na Ilha de Marajó estão sendo raptadas, tendo seus dentes quebrados para facilitar sexo oral e alimentadas com comida pastosa para sexo anal, a repercussão é imediata. Denúncia, transgressão e pedofilia. Seu nome ganha impulso nas redes sociais.
A denúncia é falsa, o efeito que ela causa não.
Quem recebe a mensagem sente-se indignado, quer reprimir os culpados, orienta seu ódio, para quem? Aos seus adversários políticos. Ou seja, primeiro inverte-se a função da hetera, em inimizade, deslealdade e intriga, depois inverte-se a função de denúncia da pornói, que em vez de revelar os excessos das entranhas do poder, persevera no poder pela denúncia.
O discurso bolsonarista desde sempre foi um discurso pornográfico: não te estupro porque você não merece, o carnaval do golden shower, chocolates gays, pintou um clima (pedófilo) com as imigrantes venezuelanas, imbrochável e incomível, a jornalista queria dar o furo, troca-troca com o Salles, o pênis pequenino.
Menos que um adereço misógino, sexista ou uma marca linguística de classe, a pornografia é método no interior do discurso bolsonarista. Método organizado por Olavo de Carvalho, que ao mesmo tempo advogava um retorno conservador e tradicionalista ao passado pré-moderno em um formato conhecido pela detração pornográfica de seus adversários.
Ora, no debate que tive com Bianca Santana e Michel Guerman, por ocasião do lançamento do livro deste último, "O Judeu não Judeu" [3], ficou evidente a função fundamental do argumento de impostura.
O pseudo-intelectual, o petista mentiroso, o falso-professor, são exemplos de como no centro do método pornográfico encontramos a ideia de que o adversário não é o que ele é.
Na análise das conferências de Olavo na Hebraica de São Paulo e de Bolsonaro na Hebraica do Rio de Janeiro, fica patente a estratégia que diz que há judeus que são mais judeus que outros, e que estes outros são responsáveis pelo infortúnio de que aquele povo padece.
O discurso da pornografia explora a insegurança identitária das pessoas, que em situação de transição, mudança e complexidade social começam a duvidar de si, de suas crenças e de suas comunidades.
O homem que sente não é mais homem como um dia foi, ou como se esperava difusamente que ele fosse.
O patrão que não sabe mais ser patrão.
O macho que teme a perda de seu desempenho sexual.
O cristão que não sabe mais onde está a verdadeira fé.
O amigo que não confia mais nos seus amigos.
Ora, essa insegurança é real. Por isso, o discurso que a denuncia parece subjetivamente verdadeiro.
É esse caráter irresistível da mentira, como realização gozosa de uma verdade invertida. Ao denunciar que o outro goza, que suas mulheres são sujas, que há merda e ânus por todo lado, este discurso incita a transgressão. Afinal, quando "autoridades" falam deste jeito isso só pode significar que elas são autênticas e poderosas, que elas não estão mais divididas entre o que se pode dizer e falar em públicos e o que se reserva ao domínio privado.
Ora, ao criar e multiplicar assim as pseudopessoas, podemos entender como este discurso se apoia em dois pilares.
De um lado está a flexibilidade identitária, trazida pelo novo regime neoliberal de produção e consumo, que propõe mudanças sazonais e permanentes de regras, de escolhas perpetuamente renováveis.
De outro está o tema necropolítico de que algumas pessoas "infelizmente" têm que morrer, na melhor das hipóteses, assumindo sua própria pseudoexistência, ou seja, elas não morreram propriamente, mas se suicidaram.
Suicidaram-se ao se tornaram fracas, ao não investirem na própria empregabilidade, ao se meterem em assuntos escusos, ao se envolverem com drogas.
A obsessão com o tema dos trans, da pedofilia e do ensino gay é exemplo de como se pode objetivar a insegurança identitária, mostrando que até mesmo nossa posição de gênero, nossa orientação sexual e a das crianças "pode mudar".
Com tantas mudanças assim, como nos reassegurarmos que pelo menos alguém é o que é.
O último traço do método pornográfico em política é o exibicionismo.
Um sujeito lambendo a ponta de um rifle, em perfeita alusão ao sexo oral, um assassino que grita "aqui é Bolsonaro" antes de atirar, motociatas e demais pirotecnias que nos acostumamos a acompanhar dia a dia.
No fundo, não importa muito que as acusações, denúncias e bravatas sejam falsas, afinal todos sabemos que os atores da cena pornográfica estão fingindo.
Não importa que na denúncia "eles" sejam tratados como uma massa indiferenciada de corruptos mal-intencionados, desde que "nós" estejamos gozando com o que vemos, seja sob forma da indignação, seja como ódio, seja por meio de fake news.
Ao esgotar a fórmula invertida de heteras e pornói, a lealdade e a denúncia são inutilizadas politicamente.
Criando a sensação de um mundo no qual todos denunciam todos por tudo, todos são uniformemente iguais, lados indiferentemente iguais de uma mesma moeda sem valor algum.
O discurso pornográfico na política brasileira contemporânea usa a linguagem do sexo para incitar a libido para depois poder reprimi-la, no outro.
REFERÊNCIAS
[1] Flores, Moacyr (2005) Mundo Greco-romano: Arte, Mitologia e Sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS
[2] Maingueneau, Dominique (2010) O Discurso Pornográfico. São Paulo: Parábola
[3] Guerman, Michel (2022) O Judeu Não Judeu. São Paulo: Fósforo.
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