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Blog do Dunker

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

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Imagem: Getty Images

17/12/2022 04h00Atualizada em 19/12/2022 08h21

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Scott Galoway é um psicólogo clínico, professor na NYU de Nova York e empresário, indicado pelo World´s Economics Forum como uma das cem pessoas, com menos de quarenta anos de idade, com maior "potencial de impacto sobre o futuro próximo".

Consultor de dezenas de empresas, tornou-se milionário ao mostrar como a estruturação de metadados, gerada pela globalização digital, requer leituras e interpretações de alto impacto subjetivo, para os quais os métodos tradicionais da psicologia social experimental, mostraram-se obsoletos.

Conhecido por suas conferências, em linguagem acessível, por seus compromissos políticos com a transformação social e por ter criado uma escola para discutir suas ideias, Galoway ataca sistematicamente o uso de dados privados, pelas quatro grandes empresas que formaram um trust internacional, sem precedentes na história humana: Apple, Meta (dona do Instagram, WhatsApp e Facebook), Amazon e Alphabet (a dona do Google).

Elas não apenas dispõem de uma vantagem estratégica sobre a "mente dos consumidores", como criam deliberadamente estratégias narrativas sobre modelos econômicos, conceitos autoperformativos de liberdade e democracia e justificativas estéticas e morais que servem aos seus próprios interesses de expansão.

Muito além de governar os algoritmos que nos governam, tal estado de coisas parece reproduzir o crescente fechamento de fronteiras para aqueles que querem ter acesso, qualificado e crítico, a este saber. Ele se indispõe assim com as universidades americanas que em regra aumentam suas mensalidades muito acima do que vem sendo a curva histórica de crescimento dos salários.

Se Jordan Peterson é o emergente conservador da Psicologia, e se Slavoj Zizek é seu grande adversário à esquerda, Scott Galloway parece ser o melhor representante daquilo que se poderia chamar de tradição liberal crítica.

Professor Scott Galloway em palestra durante o evento SXSW 2022, realizado em Austin (Texas), EUA - Phillie Casablanca/Flickr/cc-by-2.0 - Phillie Casablanca/Flickr/cc-by-2.0
Professor Scott Galloway em palestra durante o evento SXSW 2022, realizado em Austin (Texas), EUA
Imagem: Phillie Casablanca/Flickr/cc-by-2.0

Ao contrário dos psicólogos tradicionais que são reservados quanto a prognósticos, Scott considera que abrir-se para previsões é uma maneira simples de controlar as metodologias mobilizadas. Suas asserções sobre o futuro fazem parte de uma boa análise do passado.

Seguindo esta linha, ele tem dito que: o metaverso será uma experiência muito mais ligada ao acústico do que ao visual, que o turismo espacial é um negócio furado e que a Amazon tende a se transformar em um gigantesco negócio de cuidados em saúde.

Na mesma linha ele sugeriu que as ações ligadas a jogos de videogame iriam subir vertiginosamente, como subiram em 2022.

Este tipo de asserção não procede das famosas modelagens econométricas, nem dos futuristas de marketing, mas da apreciação de transformações simples nos modos de vida das pessoas envolvendo forte ênfase na interpretação, qualificação e crítica dos dados, cada vez mais estruturados pelas plataformas digitais.

Isso permite analisar tanto as grandes tendências quando resistências, micro movimentos, contra tendências, nos afastando da tradicional e genérica construção de "tipos ideais", "perfis" e "protocolos".

Estas últimas, frequentemente endossadas pelo metodologismo, muitas vezes refletem estratégias de normalização, tornando o que é (no sentido descritivo do termo), no que deveria ser (no sentido prescritivo e político do termo), procedimento que quando realizado massivamente, com procedimentos de alto impacto, se vê confirmado "na prática".

A quantidade de dados brutos, produzidos de forma errática, disponíveis para todos a baixo custo, explicitam e reforçam que a habilidade do cientista está cada vez mais no gesto de escolha, no esforço de justificação, na verificação crítica de conceitos e na continuidade das séries argumentativas produzidas.

Gallaway coloca-se assim como crítico da força autoperformativa das notícias científicas. Por exemplo, um professor nutre certas informações negativas sobre determinado aluno. Ele age de modo preventivo, defensivo para lidar com o potencial "perigo". O aluno reage a esta atitude, confirmando que ele é "realmente" problemático.

Vemos processos análogos a este em auto confirmação permanente de sua auto verdade nas querelas digitais.

Genericamente, a antecipação subjetiva multiplica e acelera preconceitos, discriminações e segregações, que por sua vez se apresentam como "provas objetivas" e "evidências" do que já se saiba. Opondo-se a isso o autor de "Os Quatro" argumenta que previsões deste tipo não valem nada e prejudicam o que já estava obscuro. No entanto o exercício de prever, a prática de perspectivar o futuro é essencial para entender o momento presente e fazer as perguntas necessárias para o passado (que é o que os dados mostram), de tal maneira que eles possam desconfirmar a obviedade do futuro.

Faz parte desta nova geografia digital a observação de que hoje nós trabalhamos ou muito mais ou muito menos do que nós, avós. Contudo, a maior parte do tempo residual não tem se revertido em qualificação da experiência, mas em solidão e isolamento.

Tomemos o problema do esvaziamento das relações entre pais e filhos como um exemplo.

Para nosso autor a obrigação etológica mínima, legada na tarefa parental, é tornar-se um pai ou uma mãe um pouco melhor do que seus próprios pais. Mas isso começou a ser medido por parâmetros de ajustamento e critérios de desempenho vital cada vez mais indiferentes à qualidade da convivência efetivamente realizada.

Muita ocupação, horror ao vazio, pouca presença real, trivialização da comunicação, indiferença ao abismo cultural. Ou seja, pais formados em uma civilização orientada para o consumo, tem dificuldade para entender uma ganância cada vez maior por presença significativa entre pessoas.

Criados para uma paternidade baseada na proteção de riscos e na oferta de objetos eles são percebidos como pessoas desinteressantes pelos próprios filhos. Estes, por sua vez, já acham suas existências perigosamente desinteressantes, comparadas como as vidas digitalmente heroicas. O equívoco se vê confirmado pela dificuldade intergeracional de manter uma conversa oral, em tempo real com demandas e modulações de afeto imediato.

Na linha de valorização da palavra e das relações, Galoway tem insistido na formulação de que a decisão mais difícil e de maior determinação para o futuro das pessoas, são tomadas entre os 20 e 30 anos de idade. Mas contrariamente ao que as próprias pessoas dizem, tais escolhas não se referem a profissão, nem o local de moradia, mas aos seus "partners".

Quando se pergunta como tais escolhas foram feitas a resposta também surpreende. Tendemos a colocar em primeiro plano a atratividade "química' e a convergência de valores. Estas são de fato duas condições importantes, mas elas não são tão preditivas sobre o futuro quanto um outro quesito banal, mas pouco estudado, ou seja, como elas lidam, conjuntamente, com dinheiro.

Isso vai muito além de quem ganha mais ou como dividimos a conta mo restaurante. A forma como lidamos com o dinheiro é um indício consistente de que como lidamos com diferenças em geral, de como compartilhamos vulnerabilidades, de como interpretamos injustiças sociais e de como criamos o futuro. É melhor aproveitar agora ou guardar para o futuro? É melhor assumir dívidas em conjunto, ou cada um cuida de seu dinheiro? As heranças são individuais e vamos contabilizar centavos ou colocamos tudo num mesmo caldeirão de miséria ou prosperidade?

O fator preditivo de uma boa relação é sua capacidade de "tomada de risco não confortável", sua reconstituição depois de crises ou fracassos, a insistência e compromisso com o que poderíamos chamar de "desejo". Ora, riscos deste tipo, tomados em sucessão levam quase sempre a decepções e problemas, no fundo estes são o fundamento "econômico" do amor.

O número de pessoas que vê seus amigos todo dia caiu pela metade nos últimos 20 anos, aumento simétrico e inverso em nosso sentimento de solidão.

Nos Estados Unidos uma em cada três mulheres não fizeram sexo nos últimos 12 meses e um contingente cada vez maior de pessoas relata não lembrar a última vez que foi tocado por quem quer que seja.

A relação entre a crença em padrões de sucesso e desempenho com níveis de descontentamento com a vida parece direta. Uma sociedade do cansaço líquido, da indiferença de afetos e da relação instrumental com o dinheiro, parece estar ruindo.

Em seu lugar há sinais de uma revolução subjetiva. Ainda que errática, mal liderada, composta por irrupções difusas de comportamentos, muitas vezes apoiada em suportes discursivos delirantes, tal revolução caminha par e passo com a desistência e repúdio com relação ao consenso global indiscutível sobre a felicidade.

Uma análise típica de Galloway aparece em suas conjecturas sobre o Brasil. Por exemplo, 66% dos brasileiros concordam que "Criptomoedas são o futuro do dinheiro", contra 23% nos Estados Unidos e 55% no México.

A leitura óbvia do "dado" reforça a imagem do brasileiro como alguém disposto a acreditar em qualquer novidade que possa confirmar a teoria do grande plano, pela qual o jogo da vida se resolve numa tacada só.

Para o autor de "A álgebra da felicidade" (2020) (não é um problema de tradução, o título é péssimo assim mesmo) isso tem mais a ver com nosso ódio a tudo que seja institucional.

Nossa tendência a valorizar de forma combinada anonimato privado e exclusividade pública. Na mesma linha seremos vítimas perfeitas dos "luxecoins", ou seja, signos de luxo ligados à produção de bens ou símbolos escassos: marcas de acesso reduzido, objetos de produção restrita, viagens de roteiros customizados. Tudo se passa como se nosso esporte predileto tivesse que passar pelo verbo "excluir" e como se aquilo que fosse "para-todos" recoberto pelo manto do descrédito e desconfiança.

Tinder, Grindr e aplicativos de encontro fazem grande sucesso no Brasil. Em parte isso fala de como a lógica nacional dá "match" com algo bem específico destes processos de mediação, aproximação e produção de "relacionamentos.

Primeiro vem o dado brutal: 80% dos homens menos atraentes estão competindo por 22% das garotas mais atraentes.

Pior, nesta competição eles escolhem dizer coisas como: "sou um cara legal, preocupado em tratar bem as mulheres", em vez de procurar a zona de risco desconfortável, onde a pessoa se apresenta na conjunção entre "coisas que os outros te pagam para fazer", "coisas escrotas que você não faz" e "coisas nas quais talvez você seja realmente bom".

Novamente o dado em si diz muito pouco. Na verdade, o truque que ainda não aprendemos a levar em conta. nas nossas estratégias de apresentação digital, consiste em evitar a escolha por padrões óbvios de atratividade, riqueza e valores de afinidade.

Quando comparamos a desigualdade de oportunidades num aplicativo de relacionamento, com a curva de Gini, que mede a concentração de renda e a injustiça social entre países, nosso "país imaginário" do Tinder fica ao lado das nações mais desiguais e concentracionárias do mundo, como África do Sul e Brasil. Isso significa que se você entra num aplicativo em busca do "bonitão, rico e bom moço" sua chance é mínima.

Se você é: "meia boca, remediado, mas não escroto" considere evitar o golpe que consiste em pedir do outro o que você mesmo não pode entregar. Considere agora, que talvez os grandes matches que a vida te proporciona, na verdade passam muito, mas muito longe destes três atributos óbvios.

Em outras palavras as razões que justificam sua escolha imediata não são, nem boas, nem más preditoras, do que será uma relação real. Eles são pretextos para o que virá. Por isso, daqui a cinco ou quinze anos você perguntará, com razão: o que eu fui ver mesmo nesta pessoa?

Moral da história: relações interessantes têm menos que ver com a qualidade intrínseca dos personagens, do que com a trama que eles formam juntos. Considere finalmente, se esta não é a mensagem exatamente contrária daquela que nos acostumaram a receber, diariamente, nos aplicativos e nas redes sociais.

Então, o que vai ser: personagem ou real action?