Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como o ódio funciona? Por que não faz sentido controlar esse afeto
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O ódio é uma experiência muito mais vasta do que nossas vãs tecnologias podem domesticar.
No entanto, como todo afeto, ele está sujeito ao que os pesquisadores chamam de regulação.
Como observou Freud há mais de um século, afetos são qualidades, por isso sempre seriam mais ou menos conscientes.
A produção da qualidade dos afetos não se dá toda de uma vez, mas em uma espécie de sequenciamento.
Primeiro os afetos são percebidos como prazerosos ou desprazerosos, conforme sua intensidade ou variação.
A forma mais simples e menos qualificada dos afetos é a angústia.
O termo é de ampla conotação semântica, incluindo termos como estresse, inquietude, perturbação, transtorno ou mal-estar, justamente porque ela é uma espécie de primeiro sinal mais genérico de alerta, que convoca a atenção para perigos e demandas do ambiente.
Por isso, o processo de qualificação do afeto envolve uma espécie de decisão psíquica, por meio da qual aquilo que nos afeta demanda uma resposta ativa, também chamada ação específica, envolvendo a motricidade, na forma compatível com uma emoção: medo ou raiva, alegria ou tristeza, surpresa ou nojo.
Mas há o caso no qual esta decisão não procede e é adiada ou desenvolve-se em dúvida, hesitação ou inibição.
Há também o caso no qual a resposta é uma ação inespecífica: choro, grito, reflexo ou reação generalizada de angústia.
Só depois de todos estes processos um afeto pode alcançar sua qualificação como disposição para ler a realidade, como por exemplo, tédio ou aflição, familiaridade ou estranheza, temporalidade ou realidade.
Este último processo é regulado por nossas formações de humor, que filtram nosso horizonte de expectativas do mundo, como a depressão ou a exaltação, mas também pela determinação de sentimentos interpessoais, como o amor, o ódio e sentimentos sociais como a culpa e a vergonha.
Contudo, a mais difícil regulação dos afetos é aquela que acontece no próprio sujeito, ou seja, como ele percebe, nomeia e interpreta o que está sentindo.
A autorregulação dos afetos decide:
- Como um afeto se transforma em outro;
- Quais afetos serão reprimidos ou inibidos em seu desenvolvimento;
- Como eles podem ser investidos, por exemplo, de amor em ódio;
- Quais serão compatíveis com o desejo, como ciúmes ou inveja;
- E quais serão ressentidos, ou seja, atribuídos ao Outro.
A autorregulação dos afetos está subordinada a outros processos, relativos aos sistemas de ideais, de incorporação da lei, de articulação dos desejos e da economia libidinal do sujeito.
A combinatória de variações em jogo na determinação dos afetos é tão grande que se afigura impossível considerar todos os casos.
Daí que uma teoria da produção social do ódio, voltada para a detecção de sua instrumentalização política, tenda a apoiar-se na tipificação jurídica dos crimes da palavra (injúria, calúnia e difamação) e na proteção de populações historicamente depositárias da discriminação, segregação e preconceito (racismo).
Outro caminho é limitar a regulação ao uso da palavra em espaço público, ao seu caráter de incitação coletiva ou a sua ligação com comportamentos específicos que caracterizem violência e transgressão. Ainda nesta direção encontraríamos o ainda mais enigmático sentimento do ódio em relação a si mesmo.
Observemos que o termo "regulação" adquiriu agora um duplo sentido, como conceito psicológico e como ação normativa, dotada de força de lei.
Neste sentido, a regulação por meio de políticas públicas só pode ser compreendida como mais uma forma de mediação e, em tese, aquela que se faz necessária em função de um fracasso relativo das anteriores.
Com isso se quer deixar claro que todos os afetos têm direito a cidadania, inclusive o ódio, sendo a tentativa de suprimir qualquer um deles, além de autoritária, em regra é ineficiente e indutora de efeitos indesejáveis.
Portanto, não se trata de perseguir ou de erradicar um afeto, mas de mediar algumas de suas traduções, por exemplo, a violência.
Presume-se assim que a violência nunca aparece toda de uma vez, mas ela é ensaiada desde a agressivização dos laços sociais, desde o cultivo e a sanção de afetos pervasivos de humilhação, desrespeito e injustiça.
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