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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como fantasias inconscientes dão origem ao preconceito contra a diversidade

Contribuição da psicanálise para o combate ao racismo pode estar no entendimento de como funcionam as fantasias inconscientes - Freepik
Contribuição da psicanálise para o combate ao racismo pode estar no entendimento de como funcionam as fantasias inconscientes Imagem: Freepik

19/04/2023 04h00Atualizada em 19/04/2023 14h01

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A teoria da interseccionalidade teria sido proposta pela jurista Kimberlé Crenshaw, em 1989, para descrever como sistemas de opressão e preconceito se sobrepõem de modo a potencializar a segregação de um lado e concentrar ainda mais recursos sociais e simbólicos de outro lado.

Determinações de identidade —como gênero, raça, classe, capacidade, orientação sexual, religião, etnia e idade— interagem em níveis múltiplos e simultâneos, potencializando injustiças sociais e desigualdades.

Isso ajuda a entender por que racismo, sexismo, classismo, colonialismo, patriarcalismo, machismo, capacitismo, xenofobia, homofobia, transfobia e etarismo tendem a se acumular, confirmando os estudos seminais de Adorno sobre a personalidade autoritária e seu principal conceito diferenciador, a escala F (de fascismo).

Ou seja:

  • Assim como existe uma espécie de contágio cumulativo entre preconceitos, discriminações e segregações, acontece uma acumulação de desvantagens sobre, por exemplo, a mulher, negra, trans ou homossexual, de uma certa etnia e sobretudo pobre.

Lacan estudou o problema da intersecção ao pesquisar aquilo que ele chamou de lógica do fantasma e como esta impõe uma espécie de escolha forçada àqueles que são comandados por uma mesma economia libidinal.

O fantasma é uma espécie de ponto de convergência entre as fantasias inconscientes do sujeito, que frequentemente confundimos com nossos devaneios conscientes, sejam eles de natureza erótica ou não.

Talvez a contribuição que a psicanálise possa dar ao enfrentamento do racismo contemporâneo e às suas variantes intersecionais resida mais no entendimento de como funcionam nossas fantasias inconscientes, do que no impulso a políticas de identidade, às quais ela não se opõe, ainda que discuta a noção de sujeito que lhes é subjacente.

A intersecção presume o ponto de recobrimento entre dois ou mais conjuntos.

Por exemplo, entre o conjunto formado pelos números {1,2, 3} e o conjunto definido pelos números {2,4,6} o ponto de intersecção é o {2}.

Portanto, a intersecção é uma figura do que se poderia chamar, em termos sociológicos, o comum.

Assumindo-se que cada pessoa tem uma fantasia diferente, um modo de gozo particular, definido pela sua história e pelas contingências de sua corporeidade, temos então a hipótese de que esta fantasia baseia-se no equívoco de imaginar que a maneira como cada qual obtém prazer é e deve ser a maneira "comum" de obter prazer ou desprazer.

É isso que confere a nossas fantasias uma valência política, pois será tentador aproveitar-se desta propriedade genética das fantasias, que é a ilusão de que existe algum tipo de satisfação comum, universal, natural ou necessária, para incitar medo contra certas populações, depois ódio preventivo e ao final perseguição ostensiva.

Não é por outro motivo que as ditaduras sempre se caracterizaram pela preocupação com o uso dos prazeres e as práticas sexuais não convencionais.

Desde a inquisição medieval até a perseguição contemporânea das sexualidades "desviantes", persiste esta relação entre a moralização dos costumes sexuais e a restauração da hierarquia e da ordem social.

Ora, se a fantasia cria um "falso comum", é por isso também que ela se presta a impor uma modo de gozo aos outros e a desconfiar de que se o outro goza diferente de mim, ele representa por si só uma ameaça à minha própria satisfação, a minha forma de vida e no fundo a essência do que eu sou e mais especificamente aquilo que representa o índice de pertencimento a minha comunidade, seja ela a família, a raça, a classe, o gênero a etnia e assim por diante.

Contudo, se o fantasma "obriga" o sujeito a encontrar satisfação de uma forma e não de outra, se ele não pode ser transformado pela boa vontade, pela fé ou pelas disciplinas de ajustamento, mas apenas pelo próprio processo de investigação, exploração e descoberta, mobilizado pelo próprio sujeito, ele se caracterizará pelo redução de nossas escolhas a uma espécie de falso binário:

  • Ou isto ou aquilo
  • A bolsa ou a vida
  • A independência ou a morte
  • O ser ou o sentido
  • A verdade dolorosa ou a mentira confortável

Pergunte-se quais são as alternativas radicais e inegociáveis que você se impõe a sua vida e terá uma noção de por onde passa sua fantasia.

É neste ponto que Lacan lembra que existem dois tipos de intersecção:

A intersecção exclusiva

Do tipo: se escolho a vida terei uma vida privada da bolsa, uma meia vida, uma vida sem dinheiro, mas se escolho a bolsa, perco a vida e com ela todas as bolsas serão igualmente perdidas. Logo, parece obrigatório e coercitivo entregar a bolsa e preservar a vida.

Desta maneira o fantasma define o tudo menos isso de uma vida. A identificação com nossas próprias fantasias vai tornando óbvio e monótono que só existe esta alternativa, ou pior, só existe esta maneira de produzir alternativas.

Logo, todo aquele que pensa o contrário, só pode estar louco, mal-intencionado ou ter a pretensão arrogante de possuir uma verdade superior (incógnita aos mortais).

Este estado básico do fantasma nos ajuda a entender porque em uma dada comunidade, grupo ou família prospera o imperativo de que só é possível gozar desta maneira (estipulada pelo fantasma do líder). Todos aqueles que são "gozo-divergentes" devem sair.

Mas olhando de perto perceberemos que esta homogeneidade é bem aproximada e mesmo entre os mais próximos a identidade de gozo é precária, revelando diferenças, em geral perturbadoras.

Daí vem o complemento fantasmático: precisamos nos unir mais ainda atacando, destruindo e reduzindo a pó aqueles outros lá fora, que não são como nós, apesar de serem nossos vizinhos, cujo gozo excessivo, espalhafatoso, estranho está perturbando a "nossa ordem"

Contudo, existe um outro tipo de alternativa, ou seja, aquela que não é exclusiva, mas inclusiva.

A intersecção inclusiva

Neste caso, a alternativa não se resume a isto ou aquilo, mas a presença de um resíduo comum entre os dois polos.

Isso ocorre se invertermos negativamente a escolha para nem isto, nem aquilo. Esta inversão cria espaço para algo que deveria ser comum, mas que não se apresenta como uma identidade, mas como um vazio, uma falta ou uma ausência indeterminada.

Ora, neste outro tipo de comum, o gozo não me afeta, mas me é relativamente indiferente. Isso acontece porque ele não é um comum que me constituiu, semelhante ao "somos todos irmãos porque viemos do mesmo pai", mas é um comum incógnito que está a nossa frente, e que aparece como tarefa por descobrir, inclusive do ponto de vista erótico.

Observemos que é só neste segundo caso que a diversidade me enriquece, em vez de me ofender.

Por isso, a interseccionalidade baseada em dados positivos, pode ser tão mais perigosa do que aquela que nos cria um campo comum, ainda que estratificado de experiências como o sofrimento.

Por isso, sofrimentos não se somam, não se hierarquizam, não se distribuem, não criam privilegiados e vítimas, conforme a lógica de uma justiça cujos perigos subjetivos indicamos acima.