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OPINIÃO

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IA e redes sociais retomam estratégia do Império Romano de abalar crenças

Júpiter e Juno no Monte Ida (1773), de James Barry - Reprodução
Júpiter e Juno no Monte Ida (1773), de James Barry Imagem: Reprodução

18/05/2023 04h00

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A expansão do Império Romano envolveu supremacia militar e estratégias de conquista e colonização cultural. Por exemplo, pouco antes de uma batalha decisiva ou durante um longo cerco a um território estrangeiro erguia-se um templo e convocava-se os deuses do inimigo a visitá-lo. Desta forma, os deuses bárbaros podiam visitar os deuses romanos sem compromisso, eventualmente mudando de domicílio, ao perceber as vantagens oferecidas.

A astúcia deste procedimento consistia em disseminar a dúvida entre os combatentes, instalando o espírito de hospitalidade e misericórdia com o qual os derrotados seriam acolhidos.

A suspeita de que nossos deuses podem nos abandonar, que eles são mais fracos do que os de nossos adversários, pode ser aquele elemento decisivo que faz a diferença capaz de mudar o plano e o destino da guerra.

Podemos perder a batalha das crenças porque nossos deuses são mais fracos ou ainda porque nós não acreditamos tanto assim neles ou porque elas perdem a força de ligação entre nossas narrativas míticas e práticas rituais.

O caso romano do templo aberto aos inimigos ilustra como nossas crenças dependem muito de como interpretamos as crenças alheias.

A forma como supomos que o outro acredita naquilo que ele crê interfere na consistência de nossa própria crença.

A estratégia romana era muito eficaz pois atingia o núcleo da estrutura da crença. Ela evita a solução mais simples e equivocada para o problema da concorrência entre crenças, que consiste em gritar:

Tenham medo de nós, nossos deuses são mais fortes.

Coisas que podemos pensar, mas que berradas três oitavas acima só revelam nossa fragilidade.

Verbalizações deste tipo são tentativas de reforçar nossa autocrença e reprimir o medo da derrota.

Contudo, seu efeito prático é inverso, pois o despeito gerado pela ameaça pode fazer o outro lutar com mais vigor. Afinal, se seus deuses são mais fortes, eles não precisam do apoio dos seus gritos, certo?

Daí a superioridade da estratégia que consiste em sussurrar, como aliás o diabo gosta de fazer:

Será que seus deuses te amam tanto assim?

A popularização das redes sociais e a chegada da inteligência artificial para as massas retomam o antigo jogral do Império Romano:

Tragam seus deuses para nosso altar digital, todos eles serão acolhidos.

Mas nas entrelinhas estão a murmurar:

Ou então espere pelo pior quando for devorado e substituído.

A combinação destes dois dispositivos promete rever não apenas o conteúdo de nossas crenças, que podem continuar mais ou menos os mesmos, mas a forma como acreditamos no que acreditamos, nas pessoas que veiculam e nas instituições que representam nossa fé.

Se as redes sociais são onipresentes, a inteligência artificial é a promessa de que a onisciência é possível.

Inteligência artificial em tempo real significa que toda informação pode ser checada, verificada ou qualificada. Com o passar do tempo qualquer um pode ter o conteúdo da sua mensagem checado.

O problema então se deslocaria para os erros e para a nossa confiança no sistema da inteligência artificial como um todo.

Uma consulta ao estado da matéria no momento, como fiz algumas semanas atrás, mostrará um nível de desinteligência artificial muito alto, incluindo erros factuais difíceis de entender, que se comprovaram no baixo desempenho nas simulações com provas de seleção universitária.

Neste sentido, nossos deuses continuam vencendo, mas nós "acreditamos firmemente" que as forças do Império levarão a melhor com o passar do tempo.

Com isso poderemos finalmente prescindir do antigo sistema piramidal de coerência e congruência entre teses, práticas e valores.

Será que nesse momento chegaremos ao ideal nietzscheano de que nossos deuses estão realmente mortos? Ou será que neste caso chegaremos ao mesmo estado de descrença e indiferença, pelo qual os gregos criavam e perpetuavam mitos nos quais eles não acreditavam mais?

É ver para descrer.