O que sexo e estranhamento em 'Pobres Criaturas' revelam sobre quem somos?
O filme "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos e roteiro de Tony McNamara, é basicamente uma reescritura de Frankenstein, mas desta vez colocando como protagonista uma mulher (Emma Stone).
Todos conhecemos Frankenstein como personagem gótico e vitoriano, reconstituído a partir do cadáver de pessoas diferentes, devolvido à vida graças às propriedades incríveis da energia elétrica. Mas em 1818, no texto de Mary Shelley, a criatura é nomeada apenas como o monstro ou a "criatura". Mas como o destino da coisa é perguntar por seu criador e, portanto, descobrir seu verdadeiro nome, nós deslocamos a resposta para chamar o monstro sem nome de Frankenstein, afinal o cientista que o criou chamava-se Victor Frankenstein.
Sabe-se que Mary Shelley escreveu a novela um uma aposta, feita em uma noite de trovões e tempestades, respondendo à provocação sobre quem escreveria a melhor história de terror.
Mas sabe-se também que ela estava passando por um doloroso luto ocasionado pela perda recente de um filho. Durante o processo ela tivera um sonho onde uma criatura voltava à vida, mas tinha um aspecto insólito e inumano que a deixava devastada.
Lanthimos é conhecido por sua capacidade de criar mundos heterotópicos, ou seja, mundos definidos por relações paradoxais com o mundo hegemônico no qual vivemos.
Barcos, aviões ou espaçonaves são suportes ideais para espaços heterotópicos, pois eles de fato são meios que conectam mundos diferentes, alguns deles incompatíveis entre si. Não é por outro motivo que, até o século XVI, se embarcava os loucos em navios, como que a devolvê-los para o outro mundo de onde eles supostamente vieram.
Também os primeiros contos de horror na modernidade envolvem marinheiros, como na canção do "Ancient Mariner" (depois transformado em música pelo Iron Maiden) e o navio-fantasma da mítica holandesa.
Mas existem heterotopias mais simples, como um espelho, que combina realidade real e realidade virtual em um sistema de correspondências. O sonho que combina duas experiências por meio das portas de entrada e de saída que são o adormecer e o acordar.
Há heterotopias de crise em que os mundos não podem se comunicar, como, por exemplo, o motel ou a sauna para certas práticas sexuais.
Há heterotopias temporais, como museus. Espaciais, como filmes e livros de ficção. E há heterotopias de desvio e purificação, como prisões, hospitais, templos sagrados.
Há heterotopias onde a consciência sabe da realidade contingente que está experimentando, como quando nossa própria consciência diz que estamos sonhando e há estado de indeterminação onde a consciência duvida da realidade que está vivendo.
Depois de Luis Buñuel, Terry Gilliam, Kim Ki-duk e David Lynch, não há diretor mais heterotópico do que Yorgos Lanthimos.
"O Lagosta" (2015), com Colin Farrell e Rachel Weisz, se passa no futuro, onde pessoas são proibidas de viverem sozinhas. Quando se tornam solteiras são encaminhadas a um hotel onde podem ficar por até 45 dias. Lá elas são incentivadas a todo tipo de situação para encontrar um novo parceiro para toda a vida. Caso contrário são transformadas em um animal "de sua própria escolha" e viver solto na natureza.
Em "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017), uma família de cirurgiões recebe o filho de um ex-paciente, morto durante uma cirurgia conduzida pelo pai de família. O que deveria pertencer a duas realidades distintas —a do filho órfão e a do assassino— vão sendo lentamente fusionada pela convergência insólita de interesses em torno da vingança.
Em "A Favorita" (2018), ele explora a perfídia e o jogo de interesses na corte britânica do século XVII, no fim da dinastia dos Stuarts.
Se Freud estivesse vivo diria que Lanthimos é um mestre do Unheimliche, palavra heterotópica que designa em alemão ao mesmo tempo o que é familiar e o que é estranho.
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Quero receberO sentimento de estranhamente familiar ou familiarmente estranho depende de um conjunto de torções cognitivas entre espaços múltiplos que costumamos ordenar aos pares: casa versus rua, próximo versus distante, segredo versus oculto, vivo versus morto.
O estranhamento acontece quando temos três pares de oposições funcionando normalmente, ou seja, homotopicamente, e pelo menos um deles aparecendo de forma invertida.
Por exemplo, em "Pobres Criaturas", Bella Baxter (Emma Stone) vivia dentro de casa, estava proibida de sair, era como uma criança que não sabia se comportar lá fora (oposição casa e rua). Ela era fruto de uma operação sigilosa, cujos planos são descobertos por seu auxiliar Max McCandles (Ramy Youssef) (oposição segredo e revelação).
Aliás, os nomes dos personagens são estranhos porque seguem esta lógica, por exemplo, o confronto entre a forma antiga de iluminação de Max "McCandelabro", contrasta com os poderes da eletricidade e da cirurgia dominados pelo doutor Godwin, literalmente "Dr. Deus Vence", provavelmente uma homenagem a Mary Wollstonecraft Godwin, o nome de Mary Shelley.
Bella viaja para lugares distantes como Portugal, rediviva e mágica como uma mistura de caravelas do século XVI com bondes elétricos aéreos do futuro (o próximo e o distante, no espaço e no tempo).
Mas é o sexo como mediana entre vida e morte, que perturba a oposição, criando a heterotopia e o efeito de estranhamento definitivo do filme.
Ela trabalha em Paris como prostituta até regressar à vitoriana Londres. Descobre, por experiência própria, que o sexo é algo que reúne e separa os pares de opostos que definem cada perspectiva de mundo. Resta a relação incógnita entre sexo e morte que define o próprio destino de Bella, mas você terá que ver o filme para descobrir qual é.
O Prometeu antigo foi condenado a ter seu fígado comido por um abutre, todo dia, porque roubara o fogo dos céus para dar aos homens. Na novela de Mary Shelley, o Prometeu moderno se perguntava pelo sentido da existência em um mundo governado pela técnica. A nova Prometeia não se pergunta sobre seu criador, nem por seu nome verdadeiro, mas investiga o que sobrou de nós enquanto pobres coisas. Coisas trepantes, coisas trepanadas, coisas quase animais que se reproduzem.
Nisso é imperdível o diálogo sobre sexo travado por Bella no navio de luxo com uma velha senhora rica. Na verdade, trata-se de Hanna Schygulla, a musa de Rainer Werner Fassbinder, representante do melhor cinema alemão sobre deslocados e heterotópicos, desde Robert Wiene e "O Gabinete do Dr. Caligari". É um diálogo heterotópico, entre dois tempos, sobre nós enquanto coisas sexuais.
Mas o maior impacto que o filme me trouxe deveu-se ao fato de que voltei recentemente da Hungria onde visitei a casa do mais heterotópico dos psicanalistas da primeira geração: Sándor Ferenczi.
Numa manhã fria fomos recebidos pela presidente da Sociedade Húngara de Psicanálise, e naquilo que restou da vila adquirida por Ferenczi, ao final de sua vida, ela nos contou sobre as dificuldades seguidamente vividas pelo povo húngaro em sua luta por liberdade e autonomia. Invadidos por romanos, otomanos e mongóis, anexados por Habsburgo, entregues ao papado, sufocados pelos soviéticos, ocupados pelos nazistas, sem falar no atual e opressivo regime de Orbán.
Tudo aquilo que tínhamos acompanhado um dia antes visitando a Casa do Terror, museu instalado na sede da antiga polícia secreta e lugar de tortura sistemática, agora nos ajudava a entender a estranha mistura entre dureza e tristeza, de rudeza e profundidade, que escorriam por nossos encontros húngaros.
Lanthimos é um neobarroco, assim como o que melhor se pode encontrar na arquitetura húngara. O filme "Pobres Criaturas" é um tratado sobre nossas estruturas de ficção, combinado com o Real, em excesso surrealista. Foi rodado em Origo Studios, em Budapeste, seus personagens secundários são feitos por magiares e o figurino especula com as roupas e objetos eslavos. Os mares, os céus e o chão aparecem sempre como se tivessem sido pintados à mão, coloridos de maneira a ressaltar detalhes em movimento, mas sem nenhum realismo fílmico, apenas aquela solidão criada pelo excesso de realidade, como nas pinturas de Edward Hopper.
Um dos trabalhos mais heterotópicos de Ferenczi, tirando o clássico "Confusão de Línguas entre Adultos e Crianças" é "Thalassa: Ensaio sobre a Teoria da Genitalidade", de 1923. Thalassa é a deusa grega que personificava o mar Mediterrâneo, e o texto foi escrito enquanto Ferenczi servia em um hospital militar durante a Primeira Guerra Mundial.
Assim como o cinema de Lanthimos, Ferenczi recebeu comentários dúbios sobre sua obra. Para uns ele estava ficando psicótico, para outros tinha fundado um novo paradigma em psicanálise (as relações de objeto).
Temos exemplos vívidos de conceitos como falha básica, thrilling, e erotismo lúdico em "Pobres Criaturas". Temas como o ato sexual (ele mesmo), o trauma do nascimento e a filogênese animam tanto a bioanalítica de Ferenczi quando o cinema de Lanthimos.
O Amphioxus lanceolatus, peixe originário, ancestral filogenético dos vertebrados, segundo o psicanalista húngaro, combina admiravelmente com o inesquecível "galiporco" de Lanthimos. Vigora aqui a ideia ferencziana de que o Eu pode se tornar não apenas outro humano, mas também um animal de outra espécie (como um peixe), um órgão corporal (pênis, útero), uma substância (excremento, sêmen), até mesmo uma paisagem ou meio ambiente (oceano, terra).
Exatamente como encontramos em "Thalassa", o cineasta grego descreve o ato sexual com riqueza de detalhes, envolvendo movimentos, sensações e secreções, fora as interpretações "estranhas", como convém aos estados heterotópicos, crepuscular e transitório, que governam a cópula.
Múltiplas perspectivas trabalham nos dois autores, por colagem de imagens por meio de lentes que arredondam a realidade, mostrando como a ilusão está sendo construída pela nossa própria tendência ao cone óptico. Método de abertura e combinação de perspectivas teóricas que Ferenczi chamou de utraquismo, ou pensamento por misturas (anfimixia).
Vale também para ambos a ideia de que os dois sexos se misturam, mas sem síntese [1].
Sendo a criança uma alquimista do erotismo, como nesta versão feminina de "O Enigma de Kaspar Hauser", filme de 1974 de Werner Herzog, podemos perceber a atualidade de Lanthimos e suas lagostas, cervos, cabras e demais híbridos, e como nós mesmos nos entendemos muito mais homotópicos do que realmente somos.
REFERÊNCIA
[1] "O erotismo uretral empresta as qualidades de precipitação e emissão, enquanto o erotismo anal determina as qualidades de paragem e retenção. O erotismo oral, por sua vez, confere o ritmo dos movimentos que são desencadeados no coito. A mistura destes três modos no erotismo genital confere ao mesmo graus variáveis de precipitação, retenção e ritmo - graus variáveis que dependem da quantidade de que cada modo de erotismo foi empregada. A geometria dos erotismos misturados desenvolve, neste sentido, a coreografia da dança que o genital e o corpo empreendem durante o ato sexual." Camara, Leonardo Cardoso Portela e Herzog, Regina. Um prefácio imaginário para Thalassa. Estud. pesqui. psicol. [online]. 2018, vol.18, n.1 [citado 2024-02-13], pp. 244-260.
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