Psicólogo traz seu popular (e equivocado) discurso antifeminista ao Brasil
Jordan Peterson, um dos psicólogos mais conhecidos e lidos no mundo hoje, passará pelo Brasil em sua turnê mundial. Ele tornou-se conhecido pela recusa a aceitar a C-16, uma recomendação canadense que obrigava o uso do pronome do artigo "rhe" em vez do "she" ("ela') ou "he" ("ele"), no contexto da ampliação dos direitos ligados a gêneros. Seu discurso faz algum sucesso, particularmente no mundo anglo-saxônico, porque ele consegue dar uma acabamento científico a um conjunto de ideias mais ou menos consensuais na história da moralidade americana. Isso cria o efeito de que as últimas novidades neurocientíficas ou da psicologia evolucionária confirmam e autorizam coisas que as pessoas comuns já pensavam, ou seja, de que o futuro seria feito do passado.
Por exemplo, em "12 Regras para a Vida: Um Antídoto para o Caos" (Alta Books), ele nos lembra de receitas clássicas dos manuais de autoajuda:
- Comece pela postura corporal;
- Seja responsável;
- Escolha bem seus amigos;
- Compare-se consigo mesmo, não com os outros;
- Não deixe seus filhos fazerem coisas que fariam você desgostar deles;
- Procure as coisas que possuem sentido;
- Diga a verdade;
- Admita que a pessoa com quem você está falando sabe algo que você desconhece;
- Seja amigo dos animais e;
- Não atrapalhe a diversão das crianças.
Há apenas uma regra que não poderá ser encontrada na tradição da filosofia moral dos estoicos, na tradição bíblica ou no moralismo iluminista: seja preciso na sua fala.
E de fato este parece ser o ponto sobre o qual as suas ideias tem se popularizado, seja através do Youtube, seja em debates, por exemplo, como o com Cathy Newman.
Dizer que ele é um dos intelectuais mais influentes do momento se ajusta melhor ao fato de que seu último livro vendeu bem do que pelo impacto das suas ideias e conceitos.
Parece surpreendente que um intelectual conservador como Peterson, cuja bandeira mais visível é a crítica da militância LGBTQ, apareça justamente no Canadá, país de tradição liberal nos costumes. Guardadas as devidas proporções, Peterson, com seu apego aos valores tradicionais, representa a mesma desilusão popular com as "elites liberais" que associamos com a emergência do conservadorismo global.
Mas é preciso notar que o Canadá, apesar de ser uma cultura muito liberal e cosmopolita, sofre historicamente com uma espécie de complexo de falta de identidade. Seus muitos imigrantes e a extensão de seu território combinam com a disposição genérica para a tolerância.
Note que a popularidade de Peterson está muito associada à ascensão de Trump e a crítica, que concerne inclusive a pensadores liberais como Marc Lilla, de que há um excesso de pensamento sobre a identidade e de que isso tem prejudicado a esquerda em suas pretensões eleitorais.
Peterson é o verniz de autoridade e ciência necessário para neutralizar o rancor da reação antifeminista, que geralmente associamos com a figura do brutamontes desajeitado, reivindicando que seu lugar teria sido tomado por estrangeiros e efeminados.
Como um acadêmico polido e erudito, ele é capaz de falar com a outra face do Canadá: a face cristã e fortemente religiosa. Não há raiva ou exagero em seus argumentos. Ele segue o padrão mais consensual, hoje em vigor na psicologia tradicional: procura fundamentos biológicos neuroevolutivos —neste caso, as diferenças entre os gêneros— e fundamentos na linguagem —neste caso, as narrativas míticas e religiosas— para nossas necessidades sociais de regulação de emoções. Com isso ele obtém o efeito de despolitizar a questão, deixando sua própria ideologia se apresentar como "não ideológica".
O problema que isso deixa de lado é exatamente a crítica do caos e das identificações arcaicas de grupo, bem-sucedidas na própria cultura americana: gosto pelo combate, merecimento dos mais fortes, autodeterminação e sacrifício. Todos estes valores são razoáveis para muitos, mas não para todos. Eles se tornam perigosos quando externalizam um fundamento natural, que não pode mais ser criticado.
Se as lagostas têm um cérebro semelhante ao nosso, se elas reagem aos nosso antidepressivos e se elas possuem um sistema de hierarquia definido, portanto, nós temos que aceitar isso como um padrão humano incorrigível.
Se mulheres são mais propensas a cooperação (agreeableness), em acordo com a teoria dos cinco fatores de personalidade, então poderíamos entender porque elas têm um gap salarial e menor presença em cargos de comando, uma vez que a cooperação não é um fator, empiricamente determinante, para ocupação de cargos de elevados.
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Quero receberEsta mistura entre sociobiologia, de Herbert Spencer a Edward Wilson, psicologia da significação, de Kierkegaard a Jung, tomando as narrativas míticas como suporte e as regras de educação moral como consequência é uma fórmula ideológica que sempre retornará quando encontrar o solo fértil da insegurança social.
O discurso de Peterson faz eco ao combate do que ele chama de "ideologias" como o neomarxismo, o politicamente correto, o pós-modernismo e o movimento woke que, segundo ele, são responsáveis pela decadência do Ocidente e pelo estado de desorientação que atinge hoje os indivíduos do sexo masculino, especialmente os mais jovens.
Contra a "ideologia", Peterson sempre recorre à biologia, afirmando que as estruturas hierárquicas e o comportamento masculino não são construções sociais, mas naturais e incontornáveis.
Peterson pertence a uma antiga tradição americana dos pregadores moralistas, que tomam o antimarxismo como receita imbatível para qualquer um que queira ganhar a opinião pública.
O tema da juventude pouco vigorosa e atacada pelo inimigo ideológico é um clássico do fascismo: basta lembrar a juventude hitlerista, a ginástica compulsória de Mussolini, assim como a fixação de Stalin com a figura do bom soldado que exibe sua masculinidade como orgulho nacional.
Peterson encontrou aqui um inimigo interno ideal: as mulheres feministas que conquistam e submetem estes jovens machos desorientados, criando casamentos infelizes e trazendo falta de sentido para a vida.
Confundir feminismo com marxismo é um erro proposital e pouco aceitável para alguém que declara que se não for possível dizer a verdade é importante ao menos não mentir.
Reunir estas duas tendências de pensamento, que às vezes se exteriorizam em práticas militantes, com um movimento estético e de interpretação da cultura, mais ou menos datável, que é o pós-modernismo, que em vários contextos pode defender posições de direita, no fundo parece estar a serviço de uma estratégia muito bem-vinda, aliás nos momentos de ascensão totalitária, ou seja, o ataque mais ou menos desordenado a intelectuais, universitários e artistas. Isso é necessário para garantir que o que nós convencionamos reconhecer como um saber instituído, um bem coletivo e comum, está nas mãos de impostores interessados em realizar seus planos secretos, justificando indiretamente que o senso comum, com os seus preconceitos e virtudes deveria nos orientar.
A etologia e a psicologia comparada amparam-se na teoria da evolução para investigar o possível valor filogenético de certos comportamentos, mas é uma regra há muito consolidada por este tipo de método que as aproximações devem envolver mediações justificadas e precisas, que aumentam sua validade, por exemplo, conforme a proximidade desenvolvimental entre as espécies.
Fazer ilações entre lagostas e o ser humano, contando com analogias sobre o sistema nervoso é um erro típico na história desta ciência.
Também quando se fala na comparação com primatas, há dois modelos concorrentes, que nos estariam mais próximos, os chimpanzés e os bonobos, que possuem estruturas sociais muito distintas do ponto de vista da hierarquia, mas que no argumento de Peterson são eliminadas pois ele está interessado em acentuar o caráter natural, logo fixo, logo não alterável deste comportamento.
Ora, além de ser um erro à luz de seus próprios pressupostos esta tese desconhece o papel fundamental da linguagem humana e das trocas simbólicas na formação da autoridade e da transformação da hierarquia
A emergência de um intelectual como Peterson representa uma resposta reativa e simétrica da crise da masculinidade que costuma-se associar com a mudança da posição social da mulher, mas também com a emergência de um questionamento do excesso de determinação das performances de gênero.
Peterson parece ter se dirigido ao público de homens héteros e cis para os quais esquerda parece ter virado as costas.
O interessante é que isso é feito pela retomada de valores e atitudes que são amplamente aceitáveis: responsabilidade para com a própria vida, engajamento em processos transformativos, insubmissão à condição de sofrimento e luta pelo reconhecimento. Assim como no discurso da pós-verdade não são as teses tomadas independentemente ou os fatos coligidos que são falsos em si, mas a relação de implicação entre eles e a evitação de contradições.
Em suma, o metadiagnóstico elaborado por Peterson é correto: há uma resposta generalizada de infantilização que acomete nossos modos de criação, as relações entre gêneros e o nosso desejo excessivo de adequação e conformidade. Daí que seja preciso maior responsabilização com relação ao sentido que se produz para nossa vida, bem como mais esforço para realizar os sonhos que ela envolve. Posto desta forma isto é um truísmo óbvio. Agora dizer a mesma coisa como uma espécie de resposta ao feminismo, ao marxismo, à pós-modernidade e assim por diante é o que torna a afirmação ao mesmo tempo pirotécnica e equivocada.
Peterson se apresenta como uma espécie de "figura paterna" ou "psicólogo público" para homens jovens que se sentem enfraquecidos no mundo "pós-moderno" e se dá dicas para "empoderá-los", como um pai das antigas, amoroso e rígido, defensor da ideia que os "homens devem ser homens".
A emergência de substitutos para o cargo vago de pai, como elemento que ligaria miticamente o poder, o saber e a origem da autoridade, é uma patologia política muito conhecida. Mais recentemente isso tornou-se também um estilo de gestão administrativa: produzir medo permanente para oferecer segurança, criar desordem e anomia para enriquecer com os espólios da guerra, estimular guerras para vender armas para os dois lados.
Um psicólogo não deveria ocupar este lugar, mas trabalhar para que as pessoas possam ser felizes e conduzir suas vidas sem precisar de um lugar assim.
Como psicanalista só posso dizer que é este tipo de abordagem que nos leva a dizer que não somos como os psicoterapeutas. Não queremos oferecer uma educação mais qualificada, porque temos uma sabedoria que escapa aos pacientes, mas extrair o saber e a verdade que eles já têm e da qual eles já sofrem.
Modelar comportamentos, agir como um coach para aumentar os resultados e a produtividade confunde psicoterapia com educação. Em geral isso tem um efeito colateral que as pessoas frequentemente questionam: dependência, submissão e perda de autonomia.
A demanda de recompor o pai que um dia miticamente tivemos é o que liga da pior maneira possível um pensamento como o de Jung com as piores aspirações religiosas, um pensamento como o de Nietzsche com as mais rasteiras aspirações de um empreendedor social. Esta fórmula apareceu anos atrás na figura de livros de autoajuda que nos sensibilizavam com histórias interessantes e eliciavam nosso sentido de união espiritual, para logo em seguida dizer: e além de tudo isso nos levará ao sucesso e ao aumento dos resultados no fim do mês.
Empoderar é uma palavra derivada do vocabulário crítico empregada aqui em sentido reverso e simétrico. Mais ou menos como aquela pessoa que acha que o feminismo é o oposto do machismo, e que se as mulheres podem ser feministas, defendendo seu lado, os homens estão livres para reforçar seu machismo, afinal este é o partido deles. Esquecendo-se que as feministas lutam pela equidade de gênero e tornando os argumentos uma batalha com leis iguais para todos, quando a realidade não os distribui igualmente, o que Peterson revela é sua incapacidade para criticar sua própria realidade social.
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