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Opinião

'Tagueamento': como funciona o novo perigo que envolve o uso de palavras

Esta semana estive em Londres e Paris fazendo conferências e lançando a tradução francesa de meu livro "Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma". Tinha passado pela Inglaterra no fim da pandemia e já dava para sentir que muita coisa havia mudado desde o Brexit, mas agora estas pequenas coisas ficaram mais tangíveis.

Movimentos que já foram mais fáceis agora se tornaram novamente complexos. Pagar um táxi com cartão de crédito, entrar e sair de aeroportos, pedir informação no metrô, até mesmo achar uma garrafa de vinho por um preço razoável, tudo ficou um pouco mais trabalhoso desde que o número de pessoas disponíveis para ajudar os não locais diminuiu drasticamente.

O fenômeno parece com outras coisas que parecem ter voltado no tempo desde que "avançamos" com a tecnologia. Por exemplo, de tempos para cá tornou-se uma aventura achar um filme no streaming, sem que ele esteja na lista dos "recomendados". Ou seja, o mundo parece estar cada vez mais organizado em torno de "tagueamentos" que envolvem usos muito específicos de termos, com sentidos pressupostos muito mais exatos do que poderíamos esperar.

Essa antecipação de "facilidades que são dificuldades" para os não perfeitamente integrados, leia-se estrangeiros, idosos e outros excluídos digitais, talvez seja um efeito na nova periculosidade que envolve o uso de palavras.

Tagueamento é um conceito-chave para entender a inteligência artificial, a distribuição de posts e o tipo de leitura que os algoritmos farão de seu "consumo de linguagem" para poder oferecer novos segmentos de consumo, de agrupamento ou soluções antecipadas para demandas potenciais.

A atribuição de termos descritivos aplicáveis a textos ou imagens definem destinatários, emissores, canais e códigos, tipo de nexo fático (ou psicológico) e até mesmo a poética e a metalinguagem contida em uma mensagem. Finalmente o tagueamento define quem, como e porque algo ou alguém será monetizado, bem como serão produzidas suas métricas de resultados e curvas de preferências de consumo,

Em termos lacanianos, é como se o significante tivesse triunfado completamente sobre o conceito, mas ao mesmo tempo o discurso tornou-se cada vez mais definido por palavras-chaves. Como se a conversa tivesse se padronizado ao modo dos artigos científicos; classificados por títulos, definidos palavras-chaves, lidos no resumo e resultado, largamente ignorados nos detalhes do texto estendido.

O significante é a imagem acústica e material da palavra, corresponde ao seu termo de uso, na língua específica no interior de um discurso específico. Resulta que o consumidor precisa apenas bater olho no autor, identificar o discurso e escolher um significante para fixar o significado. O significado, por sua vez, reduz-se cada vez mais ao juízo de aprovação ou reprovação.

Por exemplo, quando usamos termos em inglês para nos referirmos a operações complexas não é porque não exista um "similar nacional", que represente o mesmo conceito, mas porque o conceito ele mesmo parece ser menos importante do que a cadeia significante e o discurso onde ele ocorre. Isso ocorre porque parece mais fácil estabelecer regras de ação e antecipações de sentido a partir da palavra (tal qual ela é usada) do que a partir do conceito (tal qual este se apresenta como uma ideia).

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Mas um conceito não é um significado e um significado está longe de ser uma categoria, classe ou "caixinha". Detestamos ser "categorizados", porque isso significa ser integrado a um discurso, ter seu valor definido e sua mensagem pré-definida, geralmente por "categorias" que definem identidades. Por outro lado, adoramos encaixar, agrupar e definir pessoas, que não são como nós.

Este processo há muito conhecido pela psicologia social ganha um novo impulso quando o tagueamento adquire valor de mercado. Um algoritmo, por exemplo, capta e organiza palavras como significantes, não como conceitos, nem como significados. Ele cria um discurso organizado por tagueamentos associativos, em árvore, em série ou em nuvem de ocorrência.

Meu primeiro editor francês rejeitou meu livro, conhecido no Brasil por ter introduzido a ideia de lógica do condomínio, porque seu termo-chave não tinha um bom equivalente em francês. Não é que não existam condomínios na França, como existem hoje em qualquer outra parte do mundo, mas no Brasil ele se refere a um conceito diferente, pois traduz nossas gramáticas específicas de segregação, racismo, classe. O discurso da segurança e da política linguística nem sempre é o mesmo.

Quando me encontrei com os manifestantes que ocupavam a Universidade de Manchester, na luta pela causa Palestina, trouxe um retrato da recepção brasileira do problema e discuti um exemplo, ao qual sempre volto, sobre uma iniciativa da qual participei na Cisjordânia ocupada, perto de Ramallah, onde palestinos e israelenses voltavam a trocar palavras entre si, depois de 40 anos de hostilidades silenciosas, desconfiança e indiferença.

Discutimos o sentido de reparação e de resistência neste contexto, bem como o uso da psicologia e da psicoterapia para adaptar pessoas, resigná-las diante do conflito e reduzir artificialmente a demanda de transformação social, neste caos representado pela urgente necessidade de reconhecer o estado Palestino e conferir cidadania e condições de vida plena a todos os seus habitantes.

Compreensivamente reticentes, eles testemunharam graves violações no interior das práticas de acolhimento e suporte psicológico, tanto por parte de organismos internacionais quanto das psicologias israelenses a serviço do exército. Percebi então que termos como "diálogo", "paz", "genocídio" e "cessar-fogo" haviam sido fortemente tagueados. "Psicanálise" também fazia parte deste repertório de palavras usadas pelo inimigo. "Reconhecimento" só podia ser empregado em um sentido cuja iniciativa caberia ao outro.

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O debate aconteceu no dia do mais forte ataque israelense a Rafah, e as barracas que cercavam o campus estavam na iminência de uma invasão da polícia. Aqui novamente a palavra "diálogo" se tornava radioativa. Significava concessão, derrota e continuidade do processo tal como ele se encontra. A geografia do conflito parece prescrever que qualquer negociação, acordo ou pacto representará uma traição de princípios.

A experiência do encontro real, de corpo presente com manifestantes, ensinou algo mais. Há um funcionamento complementar entre a invisibilidade dos corpos tagueados, que nos impede de sabermos com quem estamos falando no mundo digital, e uma força inversa que nos faz saber demais com quem estamos falando, quando há atribuição visível de presença de personalização. Como se a identidade em presença criasse uma destagueamento proveniente da fala em primeira pessoa, com efeitos de identidade, autenticidade e autoridade do falante "incorporado" contra a força de tagueamento anônimo, e seus efeitos de periculosidade, suspeita e decisionismo do sentido do escritor digital "desincorporado".

O último livro de Francisco Bosco, "Meia Palavra Basta" (Record, 2024) aborda este tipo de descompressão narcísica, ou de embolia digital, por meio de aforismos e máximas, algumas divertidas, outras irônicas e outras ainda provocativas. Nesse mesmo dia em que conversei com os palestinos acampados as redes sociais repercutiam a declaração de meu amigo Francisco Bosco, dizendo que Olavo de Carvalho esteve certo pelo menos uma vez na vida ao dizer que as universidades brasileiras têm um viés à esquerda. Todos sabem que eu mesmo tive vários embates com Olavo, que chegou a me processar juridicamente pelas colunas críticas que escrevi contra ele. A declaração de Bosco é de certa forma trivial, mas desagradará a todos por infringir quatro regras da gramática do tagueamento:

  1. Nunca saia de seu condomínio discursivo. Se a esquerda crítica Olavo, ele nunca pode ter razão. Ainda que um relógio parado acerte as horas duas vezes jamais e sob nenhuma circunstância reconheça os termos do inimigo.
  2. Ignore momentos irônicos, paródicos e provocativos. Decida por você mesmo o que o outro quis dizer. Se ele não se fez compreender, levantou ambiguidades ou indeterminação de sentido, explore esta brecha para atacar. Nunca reconheça razões usando significantes, conceitos e discursos do inimigo, nem no além-túmulo, nem no post mortem.
  3. Nunca jamais ou em tempo algum sente-se com o inimigo. Se você está entre eles, se sua imagem aparece em contiguidade metonímica com um deles, você se tornou um deles. Se você se senta em uma mesa com dez fascistas, logo são onze fascistas na mesa, simples assim.
  4. Aquele que se coloca entre um e outro será atacado pelos dois. Tagueamentos ambíguos, cruzados ou de mediação são justamente os mais procurados para ataque pois eles situam-se na fronteira da geografia imaginária. E na fronteira se acumula o sentimento de que estamos influenciando mais ainda a decisão das pessoas. Elas sentem que estão participando de um processo maior, de construção ou de combate, quando se colocam como deliberantes, daí que qualquer um que se apresente como juiz qualificado, será reduzido a mais um opinador, diante do qual temos que mobilizar mais uma decisão.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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