Não se engane em nome de Deus: Bíblia dá base ao PL Antiaborto por Estupro?
Muitos argumentos estão sendo mobilizados contra o PL 1904, que penaliza gravemente a prática do aborto, ultrapassando até mesmo a pena reservada ao estupro. Contudo, há uma dificuldade nos argumentos correntes que contestam sua legitimidade.
Em regra, eles recorrem ao consenso universal, em matéria de direitos humanos, defendem a igualdade de direitos entre homens e mulheres, valorizam o direito a determinação do próprio corpo e relevam as dificuldades econômica de criação e sustentação da maternidade, como jovem mãe solo.
Também já se observou que por trás do referido projeto de lei há majoritariamente homens, brancos, em situações de conflito com a lei. Argumentar que a proibição do aborto é uma atitude conservadora, anacrônica, desrespeitosa e contraproducente com os avanços culturais, no sentido da equidade de gêneros.
Mas tudo isso é uma crítica que reforça a posição destes que se orgulham de conservadorismo sem medo e de anacronismo sem vergonha. Agem em nome do programa de retorno aos velhos tempos senhoriais, onde tudo estava em seu lugar e estávamos livres de conflitos.
Portanto, se trata de mostrar que, mesmo aos olhos da escritura e da dos ensinamentos de Jesus, Moisés ou Maomé, há algo muito errado e irremediável na PL 1904.
Por exemplo, o Deuteronômio (22:25-27) afirma que diante do estupro a mulher deve ser considerada inocente ao passo que o estuprador deve morrer sob apedrejamento. Uma passagem mais "branda" da mesma lei afirma que o estuprador deveria pagar uma multa vitalícia para a ofendida.
Em outra passagem justifica-se que Absalão tenha assassinado o príncipe Amnon, porque este violou sua irmã Tamar. Sabe-se que para o Antigo Testamento "a sexualidade da mulher pertence, primeiramente, a seu pai e depois a seu marido", justamente por isso as penas para o intercurso sexual, não autorizado, são claramente hierarquizadas, segundo a classe a qual pertence a mulher:
- Mulher casada que consente.
- Jovem virgem prometida que consente.
- Jovem virgem prometida que não consente.
- Jovem virgem não prometida que não consente. [1]
Portanto, quando o projeto de lei equaliza as penas, desconhecendo que a descoberta da gravidez tende a ser tardia em menores de idade, assim como a realização frequente da violência e do estupro intrafamiliar, ainda mais em condições de vulnerabilidade, ele vai contra o espírito da lei bíblica.
Mas a coisa complica ainda mais quando consideramos o caso da Virgem Maria. Ela não foi propriamente consultada pelo anjo Gabriel acerca da fecundação pelo Espírito Santo. Estaria ela então, no rol das casadas que consentiram ou não consentiram? Não fosse Duns Scotus, a absoluta inocência de Maria não seria uma convicção cristã, o que só aconteceu no século XIII. Valendo a lei anterior e primeira, como os que se orgulham de pertencer aos tempos bíblicos, a Virgem Maria e quiçá seu filho estariam fora da proteção leal da lei.
Quando examinamos a questão do aborto a questão se torna ainda mais problemática, pois não há nenhuma, repetimos, nenhuma passagem que mencione o aborto como uma prática criminosa, proibida ou sequer moralmente condenável em todo o texto bíblico.
Considerando os usos e costumes mais frequentes das populações semíticas, das culturas da antiguidade clássica e dos povos originários, o mais frequente é que o aborto tivesse sido uma prática legítima e trivial.
Considere-se as dificuldades de criar um filho de forma solitária e indesejável, em condições de escravidão, exílio ou errância por desertos, perseguições e fome.
Considere-se o número de práticas alimentares, vestuárias, rituais, cosméticas e médicas, presentes amplamente no texto bíblico.
Considere-se que o texto da Bíblia é direto e cristalino ao vetar, por exemplo, pedir divórcio, fazer juramentos, comer frutos do mar, usar roupas rasgadas (jeans inclusive), cortar o cabelo ou barbear-se, agir por vingança, comer carne de porco, fofocar, fazer carícias em si mesmo, divertir-se com quem bebe demais, trair, ir a igreja menstruada, amaldiçoar, manter relações sexuais fora do casamento, comer caracóis, plantar duas sementes na mesma terra, misturar tecidos diferentes, misturar leite e carne, não ajudar o marido em uma briga, adivinhar o futuro, cobrir ou não cobrir a cabeça durante as orações, fazer tatuagens, falar na igreja (só para mulheres) .
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Quero receberCom uma lista assim 'idiossincrática", como justificar a ausência de um menção direta sequer ao aborto?
Faça você mesmo uma consulta Google. O resultado é nulo, "nix", nada de aborto na bíblia.
Tudo o que os religiosos tentam dizer para você depende, portanto, de ilações, indiretas, amplamente sujeitas aos interesses dos intérpretes e as conveniências do mundo.
O máximo que se consegue fazer para defender a proibição do aborto está em:
- "Antes que te formasse no ventre, te conheci; e antes que saísses da mãe, te santifiquei". (Jeremias, 7)
- "Os teus olhos viram o meu corpo ainda informe". (Salmos, 139)
- "Assim diz o Senhor que te criou e te formou desde o ventre materno e que te ajuda" (Isaías, 44,2)
- "Todo aquele que derramar o sangue humano terá seu próprio sangue derramado pelo homem, porque Deus fez o homem à sua imagem" (Gênesis 9,6).
- "Não matarás" (Êxodo, 20,13).
Não há nenhuma declaração de que a vida começa antes ou depois do ventre.
Se formos rigorosos o texto fala de que alguém pode ser reconhecido "antes da concepção" (Jeremias).
Quando se fala em "corpo informe" isso não significa "corpo matável".
O estado de ventre não implica vida humana constituída.
Ora, na ausência de evidências, não se pode concluir. Convém, portando, deixar que os humanos e humanas decidam, segundo argumentos que prescindem e dispensam a Bíblia como suporte nesta matéria.
Neste assunto o mais certo é que o texto bíblico não discute, nem assevera quando começa a vida. Ele também não se importa com o que você ou a ciência de nossa época, acha a respeito disso.
Se você é realmente cristão, evite usar a Bíblia neste caso. Decida por sua própria consciência. Sem se deixar manipular ou enganar por falsos manipuladores de texto.
Se for protestante, seja protestante de verdade. Evite remeter ao texto o que não está nele. Evite ser enganado em nome de Cristo.
REFERÊNCIA
[1] Detiene, Claude (2009) Estuprar e apagar: violência e mulher na Bíblia hebraica. Fragmentos de Cultura,Goiânia, v. 19, n. 1/2, p. 39-50, jan./fev. 2009
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