O que está certo ou errado sobre os afetos exibidos em 'Divertida Mente 2'
ATENÇÃO: texto pode conter spoilers do filme "Divertida Mente 2"
Entre o primeiro "Divertida Mente" ("Inside Out", 2015), clássico da Disney-Pixar, e sua continuação lançada agora ("Inside Out 2", 2024), passaram-se nove anos, em tempo real, mas apenas três anos na vida da protagonista. Ou seja, quem assistiu à primeira versão com dez anos hoje tem 19. Essa difração temporal permite que reinterpretemos as diferenças vividas por Riley, como já tendo ficado para trás.
O efeito combinado entre o marco simbólico representado pelo filme, para pais, filhos e famílias, e a renovação da problemática, para nós, já vivida, da grande transformação da puberdade e adolescência pode ser agora reconstruída.
Este recuo permite entender melhor a matéria-prima ideológica da qual "fomos feitos", mas também os resíduos discursivos, narrativos e significantes pelos quais lemos o mundo hoje.
Isso é ainda mais crucial na medida que, diferentemente da primeira versão, que comentei em 2015, "Divertida Mente 2" envolve uma teoria da transformação, na verdade uma concepção de como aconteceu isso tudo pelo qual nos tornamos o que hoje somos.
Portanto, não se trata apenas de saber se as cinco emoções são universais ou não, se elas são invariáveis e independentes de um vocabulário mentalista ou neurocientífico.
Essa teoria é bastante curiosa, pois ela reflete muito mais como a criança é vista pelos adultos do que o processo como ele foi vivido pelo próprio sujeito.
A pacífica, cordial e gentil Riley acorda, de um dia para outro, sem razão, motivo ou causa, irascível, gritalhona e intolerante. Nenhum sonho, nenhuma crise interna, nenhum encontro capaz de gerar um estranhamento e surpresa, desafiando as capacidades simbólicas de subjetivação é mencionado.
Ora, reencontramos aqui aquilo que parecia apenas uma imprecisão sem grande importância em "Divertida Mente" de 2015 mostrar sua verdadeira função.
Qualquer um que tenha estudado os textos clássicos sobre teoria das emoções, seja os de Charles Darwin, Paul Ekman ou Wallace Friesen, seja ainda a antiga tradição dos tratados filosóficos sobre as paixões da alma, sabe que as emoções andam aos pares e que classicamente elas são em número de seis e não cinco como o filme nas duas versões, assume como ponto de partida.
Ora, a emoção narrativamente suprimida chama-se surpresa. Ela está associada com a atitude de espanto e admiração curiosa que caracteriza a pequena criança como uma mistura de filósofo, lúdico e explorador de mundos.
Não é de admirar que que na segunda fase apareça uma emoção fenomenologicamente pertinente com a descrição que fazemos da adolescência "entediada", pois tédio parece ser a perda, pelo menos em aparência, da capacidade de ser afetado e de ser surpreendido pelo outro e por si mesmo.
Portanto, quando tudo muda, de um dia para outro, sem razão ou aviso, não devemos nos espantar.
Em "Divertida Mente" 1 supõe-se que a novidade seja interpretada afetivamente como alegria ou tristeza, medo ou raiva, ou a emoção que ficou sem par chamada "nojinho".
Em "Divertida Mente 2", a coisa piora, porque em vez da surpresa temos: ansiedade, inveja, vergonha, tédio, além da repudiada e constantemente empurrada de volta para o armário "nostalgia". Além de dissolverem seu funcionamento aos pares, temos agora duas versões do mesmo afeto, ou seja, ansiedade e tédio são versões ativa e passiva da angústia.
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Quero receberVergonha e inveja de fato formam um complexo de emoções "sociais", mas justamente falta o par mais típico da vergonha, ou seja, a culpa, assim como falta a derivação mais importante da inveja, que é o ciúme.
Para completar o quadro de negações das emoções, a nostalgia representa, na verdade, uma propriedade comum de todas as emoções, que é a sua capacidade de ser transformada quando a retomamos, sob forma de memória, quer para rememorar, comemorar ou reviver.
Ou seja, as emoções não podem ser entendidas sem uma teoria da sua historicidade, por isso a chance de reprisar "Divertida Mente" para um público que "cresceu" é uma grande sacada. Ajuda a nos reencontrarmos com nossas bobagens, "bobeiras" e infantilidades, agora transformadas e renovadas em novas formas de sentimento.
Aqui se encontram as duas falhas mais graves da teoria da mente de "Divertida Mente", ou seja, as emoções não se transformam, elas só se combinam entre si e se reapresentam, sem que a "mente dos outros" exerça um papel importante nisso.
Duas exceções notáveis aqui. A cena crucial, que deveria ser um dos desencadeantes da puberdade, e não posterior, quando as três meninas estão no carro e Bree e Grace revelam que vão estudar em outra escola, o que leva Riley ao conflito entre perda (tristeza) e deslealdade (raiva), confiança de que continuarão amigas (alegria) e solidão iminente (medo).
Ora, a dinâmica que se passa na mútua interpretação "daquele olhar" envolve a leitura do que está se passando na mente das amigas, com o acréscimo decisivo: ela foi surpreendida pela notícia. E isso só aconteceu porque elas mantiveram a informação em segredo até que ela "escapou" em um comentário. Junta-se a isso o processo decisivo de estar sendo "exclusiva" do processo afetivo das amigas, da qual se considerava íntima.
Sem contar a cena final, na qual o cérebro dos pais é mostrado em "crise" diante de tédio e da recusa de Riley em contar o que havia se passado no acampamento de hóquei, a segunda cena onde a intersubjetivação e o transitivismo dos afetos é bem representado, diz respeito ao momento em que a alegria "desiste" de procurar uma solução "mágica" para o abismo das emoções suprimidas, e converte-se chorosamente em desamparada.
Nessa hora a raiva, que antes era representada como um impulso a dar "pancada" nos outros, se concilia com a alegria. A raiva, que tinha se voltado "contra a própria" pessoa, destruindo sua alegria, agora pode voltar-se novamente para o outro, mas agora advertida de suas limitações, enganos e ilusões.
O melhor do filme são as suas cenas paralelas:
- O rio da consciência (Husserl, pai da fenomenologia, já dizia que a consciência é um fluxo temporal de significações);
- O abismo do sarcasmo (Kierkegaard já dizia que só temos uma escolha na vida, pular ou não);
- O cofre com os super-heróis de infância e com o grande segredo (Freud já dizia que os pais da primeira infância são reestabelecidos por nossos heróis novelescos);
- A máquina de supressão de afetos (Freud de novo) e a incrível formação do cristal do "si mesmo" (como queria a Psicanálise do Ego), depois desfeita e substituída pelo que os outros esperam de você (Winnicott e o falso self);
- Eu sou uma boa pessoa ou eu não sou uma boa pessoa (Klein e a integração entre esquizo-paranoide e depressão);
- A angústia como afeto central (Lacan).
Ou seja, depois de toneladas de material neurocientífico ainda são as hipóteses clássicas que vemos aparecer na ilustração mainstream de nosso funcionamento mental.
Com uma exceção das exceções ...
Ora, a causa, razão e motivo da grande destruição, que no filme surge do nada, tem relação direta com o afeto suprimido da surpresa e com o não desdobramento da surpresa em culpa na adolescência. Ela tem tudo que ver com a recusa da nostalgia como mecanismo de historicização dos afetos, especialmente aqueles que cercam o personagem crucialmente ausente no filme: a sexualidade.
Para gerações que cresceram a base de Teletubbies e Pokémons que se reproduzem de forma assexuada, "Divertida Mente 2" é o spin-off e a arqueologia da Barbie.
Emoção, evolução, transformação sem sexo. Aqui também tudo gira em torno da luta para recompor o narcisismo abalado, reencontrar a essência do que somos, sem pensar nunca que isso tem que ver com nosso desejo, ainda que seja o desejo de vencer e ser reconhecido pela superstar Valentina Ortiz.
Às vezes o personagem mais importante da história, aquele que liga todos os seus pontos improváveis e desconectados, é aquele que não aparece.
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