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Opinião

Existe uma mente moralista por trás da tal geração ansiosa

Jonathan Haidt, autor de "A Geração Ansiosa", está no centro do debate sobre uso de tecnologia, especialmente vídeo games e redes sociais. Ele compilou, de forma ágil e acessível, uma série de estudos e observações empíricas que mostram uma correlação, com forte pretensão causal, entre uso de tecnologia e crise de saúde mental.

O fato já era percebido e estudo por muita gente, inclusive aqui no Brasil, conforme os dados do livro:

  • A depressão grave em meninas aumentou 145% e em meninos, 161% entre 2010 e 2020.
  • Os diagnósticos de ansiedade (134%), depressão (106%), transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (72%), bipolaridade (57%), anorexia (100%), abuso de substâncias (33%) e esquizofrenia (67%) não param de crescer, sendo os dados só até 2018.
  • Quanto mais jovem maior a probabilidade de transtorno mental, com destaque para a automutilação e o suicídio.

Neste mesmo período, também só cresceu o tempo de uso e o acesso ao celular, que contam cada vez mais com câmera frontal, melhor conexão de rede e qualidade de ligações. Houve uma dispersão globalizada.

Muitos autores argumentam que há outros macrofatores que poderiam explicar a crise da saúde mental, representada pelo crescimento de diagnóstico e pelo aumento da percepção social de sofrimento: a guerra ao terror, os ataques armados em escolas, o desemprego, a crise financeira, mudança climática.

Mas cada um destes fatos é cuidadosamente excluído quando traçamos comparações com outros países e culturas.

Baseando-se nisso Haidt desenvolve uma série de leituras e proposições sobre como podemos mudar o curso deste acontecimento:

  • retorno ao livre-brincar,
  • proibição de celular em escolas,
  • idade limite para cada tipo de uso,
  • controle jurídico sobre políticas de credenciamento, perfis falsos e anonimato.

O que as redes sociais provocam na nossa mente

As redes sociais patrocinam amplamente as distorções cognitivas descritas por psicólogos como Beck, Seligman e Aronson:

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  • pensar por tudo ou nada,
  • generalização excessiva,
  • pensamento mágico,
  • filtro mental,
  • desqualificação,
  • negativismo,
  • precipitação (leitura mental de intenções dos outros, do futuro),
  • ampliação (catastrofização) ou minimização ("passar o pano") do valor ou peso de uma mensagem, fato ou perspectiva,
  • identificação entre emoções e verdade,
  • culpabilização como substituto da causalidade ou determinação.

Não podemos desconsiderar o papel da raiva narcísica e dos vieses como o enquadramento forçado, a visão em retrospecto e a confirmação ou auto conveniência.

O uso errático de linguagem digital afetaria nossos sistemas básicos de apego (nossa disposição filogenética à aprender vinculação social por meio de interação lúdica), enfatizando nossos sistemas de defesa em vez de abertura, indagação e curiosidade sobre o mundo.

Nem sempre isso se baseia na redução do tempo de contato com pais ou cuidadores. Nosso modo de criação está cada vez mais orientado por medo, horror ao risco e mensagem de que o outro (indeterminado) é potencialmente perigoso, inclusive em termos de julgamento moral.

Isso resultaria em uma infantilização como atitude genérica de prevenção contra um perigo mal localizado e mal entendido.

É como se estivéssemos corrompendo um certo modo natural de educar, cuidar e socializar.

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Corrempendo por que há uma adultização precoce, trazida pela vida "pornográfica" na rede, ao mesmo tempo em que há uma infantilização estendida.

Privação do brincar, privação social, privação do sono e fragmentação da atenção. Isso vira um ciclo que tende a se repetir como uma dependência (ciclo comportamental) e que poderá ser reconhecido por seus gatilhos.

O que há de precário no argumento de Haidt

Apesar de ser um defensor da importância crucial do brincar em crianças e adultos, e ainda que concorde com certos limites de uso, especialmente em contexto escolar, não posso deixar de indicar uma certa precariedade do argumento genérico de Haidt.

Ele afasta as conexões entre a crise de saúde mental e a maneira como estamos trabalhando, consumindo e estudando.

Olha para essas experiências como causa de privações —atacam o sono, as interações lúdicas e o contato com a natureza. E entende o aumento de diagnósticos como expressão de déficits de funcionamento em nível de atenção, linguagem e cognição.

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Ocorre que estes dois sistemas, de diagnóstico e de funcionamento social, já são aspectos essenciais do sistema digital, tais como a razão "algorítmica" (cheia de vieses de raça, gênero e classe), a monetização do ódio (narcísico), a aceleração de resposta (precipitação) e a bipolarização (tudo-ou-nada).

Ou seja, é porque estamos em uma moralidade "super-atencional" que os desvios atencionais se tornam tão visíveis e, ao mesmo tempo, tão importantes e intolerados.

Esquecemos que os transtornos mentais não são naturais, como os outros grupos diagnósticos da medicina.

Esquecemos que eles são compostos por uma espécie de convenção, onde excluímos de saída a definição pela causa.

É por isso que depois precisamos procurar causas em outra entidade genericamente definida como "social".

A mente moralista da geração ansiosa

Curiosamente, outro livro de Haidt ("A Mente do Moralista") explica a coincidência entre desvios cognitivos e uso da linguagem digital, assim como a combinação entre aumento de diagnósticos e o crescimento no uso de tecnologia.

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Lealdade, autoridade e pureza, com seu correlato mundo de hierarquia, punição e religiosidade, teriam sido "descobertos" como processos psicológicos no interior da linguagem digital.

Isso significa que o conteúdo não importa muito, desde que se consiga mobilizar uma força de convergência unificada envolvendo crer, pertencer e agir.

Isso engendra funcionamentos de grupo onde cada pessoa torna-se uma pessoa tipo uma pessoa-grupo. Uma vez reconhecida desta maneira, ela passa curiosamente a se comportar assim.

Processos de identificação deste tipo são essenciais para que cada um de nós se considere e opere como uma empresa.

Pessoas que operam em "estrutura de empresa" se tornam possíveis não apenas porque o neoliberalismo assim o exige, mas porque quando isso acontece não há mais diferença entre economia e psicologia.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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